sábado, 31 de março de 2012

Emil Cioran, in Pensar Contra Si Próprio


Devemos a quase totalidade das nossas descobertas às nossas violências, à exacerbação do nosso desequilíbrio. Mesmo Deus, na medida em que nos intriga, não é no mais íntimo de nós que o discernimos, mas antes no limite exterior da nossa febre, no ponto preciso em que, confrontando-se a nossa ira com a sua, se produz um choque, um encontro tão ruinoso para Ele como para nós. Ferido pela maldição que se liga aos actos, o violento só força a sua natureza, só se ultrapassa a si próprio, para a ela regressar, furioso e agressor, seguido pelas suas empresas, que o punem por as ter feito nascer. Não há obra que não se volte contra o seu autor: o poema esmagará o poeta, o sistema o filósofo, o acontecimento o homem de acção. Destrói-se quem, respondendo à sua vocação e cumprindo-a, se agita no interior da história; apenas se salva aquele que sacrifica dons e talentos para, desprendido da sua qualidade de homem, poder repousar no ser. Se aspiro a uma carreira metafísica, não posso por preço algum conservar a minha identidade: terei de liquidar o menor resíduo que dela possa guardar; se, pelo contrário, escolho a aventura de um papel histórico, a tarefa que me cabe é a de exasperar as minhas faculdades até explodir eu próprio com elas. Parece-se sempre pelo eu que se assume: ter um nome é reivindicar um modo preciso de ruína.

Emil Cioran, in 'Pensar Contra Si Próprio'

domingo, 18 de março de 2012

Por uma esquerda aristocrática

Camille Claudel

Texto de Bruno Cava

Tem esquerdista que adora falar em povo. Essa entidade misteriosa, quase sempre estereotipada: o povo é trabalhador, honesto, humilde, feliz, gente de fé e coragem. Passa necessidades e provações, mas não desiste nunca. Gente orgulhosa de nosso país que encontra forças para fazer dos contratempos uma ocasião para rir, dançar e fazer samba. A sensibilidade no seio do povo pode ser dura, às vezes severa, mas não carece de compaixão e generosidade. Com sua vitalidade, a nação se fortalece no sentimento popular, encontra a verdadeira alma, sinceramente povoada das pequenas felicidades e grandes paixões que nos preenchem de sentido.

Frases assim poderíamos estender até escrever um livro, tão singelo quanto vazio. Intelectuais e artistas, acadêmicos e militantes, na literatura, música, artes plásticas e cinema, na sociologia e na antropologia, não cansam de invocar o povo e opor o popular à elitização, a cultura popular à alta cultura. Dirigem-se ao povo para colher a expressão generosa, num banho de realidade capaz de superar o elitismo de nossa sociedade. É preciso trair a classe, estar perto do povo, falar a linguagem do povo, comportar-se como ele, lutar e sobretudo sofrer com os populares, numa comunhão de solidariedade. Se o populismo direitoso promete cuidar do povo para conservar a ordem e governar a massa, o populismo esquerdista pretende colocar-se em seu nível, horizontalizar-se com ele. Eis um compromisso ideológico: abjurar dos vícios pequeno-burgueses e mergulhar na simplicidade e franqueza de quem é verdadeiramente povo, na cultura e linguagem populares. Quanto mais à esquerda, mais povo.

O que, no fundo, quem diz povo está tentando fazer? Qual a realidade do povo nas práticas e discursos de quem o invoca? O esquerdista, quando apela ao povo, entre profissões de compromisso e carteirinhas de militante, que significa?

Uma perspectiva: o povo como institucionalização da (má) consciência da classe média que se esquerdizou. O povo é o Grande Outro do esquerdismo, a representação de seus nortes mais gerais e crenças mais íntimas sobre a prática política. O pequeno burguês se sente culpado pelos privilégios de elite de que desfruta, não consegue evitar uma pontada de vergonha (entre mil outras culpas e vergonhas) ao falar tão persistentemente do povo e sobre o povo. Quem não consegue esquecer a traição (de classe ou não), carrega a consciência de dívida, e procurará se aliviar com compensações. No plano da organização política, surgem grupelhos esquerdistas de faces consternadas e falas abatidas, obcecados com a própria consciência e a conscientização. Pautam-se pelo ascetismo militante contra a frivolidade, o consumismo, o supérfluo, a sofisticação e a erudição. Limitam-se a repetir à exaustão como os pobres são explorados, as mulheres violentadas, os negros discriminados; como se os resistentes mesmos, — que nunca precisaram de ideologia para orientar a ação política, — já não soubessem de sua condição. Toda uma sensibilidade decorre daí.

Burguesia e pequeno-burguesia são palavras que ainda não voltaram à moda. Mas deveriam. No Brasil, as conquistas de direitos, renda e voz política têm gerado como contraefeito o aburguesamento das esquerdas. Quando falo burguês, falo trabalho, família e progresso: mais empregos subordinados, mais esforço individual, mais carreiras e méritos individuais, mais patrimônio a constituir, e a velha moral de almoço de domingo. O desenvolvimento forja com discurso impermeável e muitos tratores o povo brasileiro: honesto, diligente, cumpridor da lei, respeitável e pai ou mãe de família. Em 2012, o jogo da representação nos governos e partidos está cada vez mais reduzido à oscilação entre pulsões burguesas reacionárias e pulsões burguesas progressistas. O reacionário e o progressista não se excluem: mutuamente se apóiam e se revezam sobre o solo burguês, que é consenso cada vez mais emparedado. O noticiário e as redes sociais se nivelam entre reflexos emotivos e imaginários simbólicos, num comentário geral do irrelevante.

Ao invocar o povo, o esquerdista não está se distanciando do consenso burguês. Como os populistas russos da época dos czares, os narodniks, os esquerdistas querem salvar-se com os seus mujiques. Deus e a esquerda hão de ajudar o povo e aí a revolução virá dos mujiques… Mas primeiro têm de inventá-los. Ao falar do povo, para o povo e com o povo, acreditam prestar-lhe homenagem (como se precisassem). Porém sua falta de imaginação e ressentimento terminam por ofendê-lo. As premissas implícitas, — “descer” à linguagem do povo, “nivelar-se” com eles, conscientizá-los — esse tipo de percepção só pode ofender qualquer criatura minimamente sensível. Pressupõem uma superioridade mental (e moral) de que não têm direito e uma missão conscientizadora a que não foram chamados. O povo que o esquerdismo representa é o povo do ponto de vista burguês. Só se limita a inverter o sinal da representação. Sem mudança real de conteúdo, as mesmas qualidades desprezadas pelo burguês reacionário se tornam valorizadas pelo esquerdista.

Não sustento que o povo não exista, em absoluto. Abstrações podem ser reais e têm o seu papel e riqueza de determinações, para que a ordem social seja conservada. Sustento, na realidade, que o povo não queira existir. Lute para não existir, para ausentar-se, para abolir-se como abstração real. As mobilizações e tumultos constituintes acontecem para recusar o povo, para sublevar a própria realidade burguesa, — suas representações artísticas ou teóricas e seu senso comum, — onde uma entidade como o povo possa ter lugar, inclusive na versão esquerdista. Na América do Sul, há séculos quem vem pintando o povo são os colonizadores. Macunaíma não fala povo. Oswald de Andrade já pressentia a sua revolta existencial, os tropicalistas aprofundaram a intuição e agora os pós-modernistas sistematizam. Jamais fomos modernos. Mas nós já sabíamos há um tempão. O século 20 inteiro soubemos, e a esquerda burguesa não podia aceitar.

Por isso, um aliado contra o aburguesamento não pode ser o popular que lhe serve de má consciência, mas o aristocrático. O aristocrata como subjetividade cevada no ócio, na reapropriação do tempo para livros, discos, pessoas, filmes, amores, ódios, polêmicas, blogues e amizades. Ele não mediocritiza o mundo: irresigna-se diante do pior e só lhe interessa melhorá-lo, a partir de si mesmo, sem concessões ou meio termo ao aburguesamento, o inimigo mortal. Para a revolta dos dândis contra a massa burguesa, numa recusa radical da representação, da identidade e da propriedade, de todas as pulsões burguesas no esquerdismo e jornalismo, nas forças reacionárias ou progressistas dos governos, grupos religiosos e do “peemedebismo sociológico”. O aristocrata se erigiu inteiro como personalidade de caráter e capricho, e sabe e admite disso, a sua trans-individualidade persistida. Se ele quer o melhor de si, este de si não se resume ao ego e ao narcisismo do burguês (que é em si e para si) , mas o sicomo força criativa comum, coalhada de outros, com quem elege e partilha de afinidades.

A moral aristocrata confronta a mediocridade que está na base do aburguesamento, com ódio antimoderno ou reinvenção pós-moderna, suas duas maiores expressões históricas. Porque o burguês é o medíocre. Não teria tempo para não sê-lo. O seu tempo de vida no principal ele já sacrificou ao trabalho, à carreira, à família, à acumulação de patrimônio e narcisismo, a sua felicidade de comercial de margarina. Todo o resto não passa de acessório que degenera em atividade mediocritizada: do lazer cultural à leitura dos jornais e jornalistas, das visitas aos museus ao turismo, da impostação “apolítica” anticorrupção à vaga indignação humanista. O senso comum é a propriedade da massa burguesa. O burguês é anti-ócio, criminaliza-o como vagabundos e vadias, sejam eles beatniks ou sambistas, punks, anarcos ou comunistas. Afinal, ao reapropriar-se do tempo vendido, o dândi começa a revolução.

O aristocrata nada tem de afetado ou esnobe (sine nobilitate, sem nobreza), que são modos com que o burguês esconde a sua mediocridade. Faz isso multiplicando títulos, currículos, gongorismos e clichês acadêmicos e profissionais, numa postura arrogante em sua posição de poder e status contra a base da cadeia alimentar capitalista. Ou então falando de cima pra baixo como esquerdista, acadêmico ou não, numa arrogância travestida de condescendência. Se a moral aristocrata não dispensa a erudição seletiva e uma poética guerreira, despreza o academicismo e o tom pacífico e comportado, que tendem a ser aburguesados. O aristocrata não fica acumulando e capitalizando, ele põe tudo em jogo a cada vez, sem medo de cometer a húbris, ou seja, tocar o rebu. Sua produção é para poucos somente no sentido que o bom texto é necessariamente para poucos, e vai ampliando e esgarçando lentamente o rol de leitores na medida em que os cria e se cria pelo bom encontro, em vez de pôr tudo a perder tentando agradar a todos, texto fadado ao “leitor médio” implícito no seu desejo motriz.

É claro que o esquerdismo procura nivelar o aburguesamento com a moral aristocrata que o ameaça. Acusá-la de elitismo, quando, na verdade, pode consistir num antídoto contra a subjetividade das elites, de que o esquerdismo não passa de pulsão. A moral aristocrata ergue barricadas subjetivas à consciência esquerdista de que é preciso descer do dandismo para falar a língua do povo e instaurar a tirania do homem médio, o deserto, a miséria, a cabeça do colonizado. Ela é superabundante, excessiva, desmedida e agressiva, de gestos generosos e sem caridade. O aristocrata não quer ser povo nem não-povo. Nesse sentido, o aristocrata dos trópicos faz luta de classe e é anticolonial.

Se a América do Sul foi revirada pela revolução dos últimos tempos, com a conquista inédita de direitos, renda e voz política, foi graças às esquerdas aristocráticas. Jamais às pulsões burguesas progressistas. A revolução molecular vem da última aristocracia que atravessou o subcontinente: a multidão macunaíma que recusou a ser proletária, massa e povo, articulada singularmente no Partido dos Trabalhadores da década de 1980 (a última composição multitudinária claramente identificável). É Lula discutindo de igual pra igual com Félix Guatarri. Um exército leninista de dândis que fez tudo pra hoje o um milhão de “fundadores do PT” dizerem “yes, bananas!”. Uma força histórica cujo ciclo constituinte agora se engessa, com esse governo “de chegada” que Dilma representa. A massificação dos gostos, o kratos do demos, a dita “Classe C” almejada para o novo povo, não pode radicalizar a democracia, que só importa quando aristocrática. Outros processos devem ser perscrutados na multidão além do povo. Nem democratismo nem aristocratismo. Democracia aristocrática. Lúmpenaristocracia. Esta é jacobina e bolchevique, tropicalista e zapatista, classista feminista queer lulista, tudo ao mesmo tempo, é a ditadura do proletariado ausente, sovietes e delicatessen. Esquerdismo go home. É outra civilização.

Uma boa dose de aristocratismo não faria mal às esquerdas.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Existe uma estética gay?



Alfredo Fressia, poeta e jornalista uruguaio, correspondente do jornal El País em São Paulo, analisa a possibilidade de existência de uma "literatura gay"
por Alfredo Fressia *



EXISTEM ESTÉTICAS GAYS? Chamo “literatura gay” à obra produzida por uma espécie de “hipergeração” que viveu o homoerotismo em condições que tendem a desaparecer (ou atenuar-se) já há alguns anos. Agregarei a idéia de literatura “postgay”, nome que considero apropriado porque também relativiza a palavra “gay”.

Parece inquestionável a idéia foucaultiana da criação do personagem homossexual em meados do século XIX. O que não passavam de práticas eróticas que não definiam especialmente um indivíduo torna-se, a partir de então, “sintoma” externo desse novo “enfermo” que é o “homossexual”, um personagem que a ciência passa a estudar, analisar, dissecar. Casos patológicos, mas também depravados morais ou criaturas endemoninhadas, os homossexuais sofreram desde então uma perseguição tanto mais implacável quanto mais numerosa era a mão de obra consumidora consumidora de que dependia a prosperidade burguesa. O dispositivo ideológico justificou o crime de que foram objeto os “homossexuais” (com esse nome “científico” desde 1869) (1).

A história desse crime merece um espaço que excede esta nota. No entanto, deve-se destacar a colaboração que a psicanálise prestou, com demasiada freqüência, à demonização homossexual e também aos genocídios praticados desde os anos 30 por Hitler e por Stalin. Até hoje os homossexuais estigmatizados com a estrela rosada, deportados e assassinados nos campos nazistas de concentração, como os ciganos, são freqüentemente esquecidos na história dos genocídios do século 20. A traição stalinista aos ideais de liberdade sexual praticados pela revolução soviética durante os anos 20 se concretizou no assassinato e no confinamento de homossexuais em asilos psiquiátricos, emblemática aliança da repressão com a psiquiatria (2).

Dominique Fernandez (3) toma as datas de 1869 (invenção da palavra “homossexual”) e 1968 (“liberalização” de costumes) como as que encerram o pior período de perseguição contra os homossexuais (4). Numa nota jornalística (5), chamei esse período de “o século obscuro”. Explicava ali que “No terreno literário não se trata, obviamente, de tomar a imensa produção do tema homossexual anterior ao século 19 como um bloco monolítico e idílico. Mais que isso, esse é um modo metafórico e sem dúvida prático de deslindar o século em que essa literatura conheceu a pior repressão.”A repressão literária adquiriu pelo menos duas formas. A primeira delas foi a proibição, a manipulação e a mutilação de obras de tema homoerótico. Naquela nota eu citava o verso de Michelangelo “Resto prigionier d’un cavaliere armato”, deformado na tradução para “Sou prisioneiro de um coração armado de virtude” (6). As traduções decimonônicas da lírica grega e latina mutilaram sistematicamente nomes e pronomes reveladores. Nas primeiras traduções francesas de Walt Whitman, o poeta se dirigia a uma destinatária feminina, manipulação que somente se encerraria devido às denúncias de André Gide.

No segundo modo de repressão literária foi a censura e a autocensura, frente à qual Proust transforma Alberto em Albertina (a mudança do gênero da segunda pessoa tornar-se-ia prática freqüentemente revisitada), Jean Cocteau publica “O Livro Branco” (1928) sem o nome do autor, Edward-Morgan Forster não ousa publicar em vida seu livro “Maurice” (terminado, contudo, em 1913), Herman Melville torna tão sutis as alusões em “Billy Budd” (começado em 1888, publicado por seus herdeiros somente em 1924) que o leitor descuidado se despista facilmente.

Dominique. Fernandez assinala que os autores dessa literatura gay nasceram todos em meados do século : “Les fondateurs de cette culture sont tous nés -ce n’est pas un hasard- entre 1844 et 1880: Verlaine en 1844, Loti en 1850, Eekhoud, Rimbaud et Wilde en 1854, Gide en 1869, Proust en 1871, Thomas Mann en 1875, Montherlant en 1876, Forster en 1879, Martin du Gard et Zweig en 1881. Tous liés entre eux par la solidarité secrète des parias, tous errant une ‘lumière à la main’ dans les catacombes de la civilisation industrielle, à la recherche d’un impossible salut”.

Esses autores constituem a verdadeira literatura gay, uma literatura criada sobre o duplo jogo da culpa e da justificação, que tece uma rede infinita de alusões, a qual trabalha sobre a máscara e sobre o travestimento, que se compraz em remissões ao universo mítico, com freqüência greco-romano, que “milita” explícita ou implicitamente e obscurece (e às vezes alegoriza) o significado para burlar a censura, mas também se sabe e se quer decodificada pela parte do público disposta a entendê-la. Balzac não precisava recorrer a esses jogos de estilo e de sensibilidade quando cria Vautrin e Lucien de Rubempré. Em princípio, os autores que hoje em dia criam literatura de tema homoerótico tampouco. As ferozes condições da repressão no século obscuro deram a esses produtos culturais um conjunto de características que nos permite considerá-los como um “corpus” bastante coerente. Constituem o que denomino “literatura gay” (seguindo, assim, parte, dos critérios de D. Fernandez).

No caso uruguaio, mis que um conjunto de obras, o período gay produziu o silenciamento. Com a solitária, porém ambígua, exceção de Armonía Somers, o homoerotismo é um tema quase sempre ausente, ou mencionado desde a perspectiva homofóbica da ideologia dominante (7).

Com o nome “literatura postgay” designo os produtos literários de tema homoerótico posteriores ao século obscuro. Com um esclarecimento nada surpreendente: o século obscuro não se encontra encerrado em quase nenhum âmbito social. Queremos imaginar que todas as formas de repressão acabaram. Na América Latina, queremos crer no fim das perseguições contra os homossexuais em Cuba, no fim das leis repressivas às relações entre adultos no Chile, na aprovação sempre postergada da “união civil” entre pessoas do mesmo sexo no Brasil (e no resto do Continente). Desgraçadamente, a prática demonstra que estamos bastante distantes da realidade desejada, tanto em nível jurídico como no plano sócio-simbólico mais vasto, o que determina que, no momento, a estética postgay oscile entre o gozo das liberdades adquiridas e a reivindicação. Se, por um lado, esta literatura já não necessita burlar a censura oficial, herda da etapa gay a necessidade de afirmação e, com freqüência, de militância. Essa é a encruzilhada exata onde se encontram – para dar um exemplo uruguaio – os relatos de “El ojo en el espejo”, de Alvaro Fernández Pagliano (1997). Também é provável que, depois do século obscuro, todos os produtos estéticos gays levem consigo a memória dos crimes sofridos. A cultura gay também é memória da perseguição (8).

Por outro lado, nem todos os atores culturais vivenciam do mesmo modo esta etapa que deveria tender à liberdade expressiva, e isso se reflete nos produtos culturais. Na literatura postgay uruguaia, se deve constatar sua debilidade na narrativa, em contraste com uma certa exuberância na lírica. Nos últimos quinze anos, a literatura uruguaia conta com pelo menos uma dezena de poetas que abordam o tema homoerótico, enquanto os relatos que tratam o tema não passam de três livros e somente dois o abordam. Como explicar isso? Atribuí-lo a uma espécie de obscura polissemia intrínseca à lírica, onde os criadores se sentiriam com mais liberdade para expressar sem sofrer as sanções ordinárias numa sociedade homofóbica? Ou seria o próprio caráter de gueto que talvez caracterize a produção e o consumo de poesia em nossas condições , com edições limitadas e destinadas a um público que com freqüência os poetas conhecem quase pessoalmente?

Se alguma dessas hipóteses revela-se adequada, ou se ambas o são, ficará ainda mais patente que a literatura postgay não significa em absoluto uma ruptura com os produtos do século obscuro. O peso da tradição gay revela-se também em algumas características da estética neobarroca – definida por Sarduy como kitsch, camp e gay- que exacerba procedimentos estéticos já presentes em muitos produtos da etapa gay. Uruguay Cortazzo, que consagrou um esforço teórico considerável a este tema, resume bem o lado gay do neobarroco: “…A revolta homossexual (é) em grande parte um ataque a esta transcendência que a nega em sua especificidade, em sua imanência e (…) sua cultura (é) de uma provocante superficialidade: um escarnecimento de papéis e atitudes, uma perda de seriedade, uma revolução carnavalesca que altera a ordem da razão social, uma dissolução num ritual gratuito de máscaras e aparências. No neobarroco isto se traduz como um ataque à razão poética patriarcalista. Ao se minimizar o significado, reduzido a puro significante, se está justamente invertendo o sistema: a carne lingüística não está a serviço de um conceito superior: a razão está no próprio corpo, na pele fônica” (9).

Finalmente, me parece importante destacar outra característica da etapa postgay, menos relacionada à criação estritamente literária. Se nenhum fenômeno cultural é totalmente autônomo com relação aos outros fatos sócio-culturais, a estética postgay parece organizar-se sobre a dinâmica do diálogo e da “contaminação”. A cultura postgay “contamina” os produtos culturais de consumo massivo, o que se constata com facilidade nos meios criadores de imagens, em particular a televisão e a moda. O fenômeno é novo, devido, sem dúvida, à relativa novidade da própria inflação de informações a que se assiste. Ou seja, se sempre existiram gays entre os grupos formadores de opinião, na última década sua presença se torna funcional na estrutura da dinâmica cultural. O fenômeno traz consigo o desenvolvimento do consumo de produtos gays, uma indústria que não se limita a camisetas ou a danceterias de moda, mas que inclui, ainda, la disseminação de uma estética é de atitudes comportamentais.

NOTAS

1. O barbarismo “homossexual” (que junta o grego homo e o latim sexus) foi criado pelo húngaro Benkert, que defendia a liberdade dos comportamentos sexuais. Apesar de suas ulteriores conotações médicas, o termo parece hoje inevitável. A palavra gay poderia designar um modo de vida, algo mais amplo que o mero comportamento sexual. Nesta nota escrevo o

termo “gay” em itálico quando designo o período do “século obscuro”, que desvinculo da etapa “postgay”.

2. Todavia em 1971 a “Grande Enciclopédia Soviética” considera a homossexualidade como uma “perversão sexual” e uma “atração contra a Natureza” penalmente castigável.

3. “1869-1968: il faut situer entre ces deux dates ce qu’on appelle la ‘culture homosexuelle’. Avant 1869, les textes qui parlent d’homosexualité relèvent plutôt de la littérature anecdotique, de la petite histoire. Aucun homosexuel ne songe à se raconter,

parce qu’aucun ne se sent ‘différent’. Après 1968 la différence devient à la mode et alimente le marché de l’édition. Par culture homosexuelle, nous entendons donc la culture de ceux qui, mis au ban de la société par les nouvelles lois bourgeoises, ont essayé de se ressaisir, de se comprendre, de retrouver une identité grâce à l’oeuvre d’art. Culture clandestine par force et qui oscille entre la honte et la revendication.” “Grandeur et décadence de la culture homosexuelle”, Prefacio de “Les amours masculines. Anthologie de l’homosexualité dans la littérature” de Michel Larivière. Lieu Commun. Paris, 1984. (pág. 18).

4. Deve-se considerar a data 1968 como meramente emblemática. No cinema, por exemplo, se 1968 é o ano de “Teorema” de Pasolini, é também o de “Z”, de Costa-Gavras, um filme que atribui a condição homossexual a um assassino fascista. (A mesma atitude homofóbica se encontrava em “Roma, Cidade Aberta”, 1945, de Roberto Rosselini, que apresentava uma lésbica torturadora. Também Visconti, cuja obra revela un homossexual angustiado pela culpa, pinta a homossexualidade na ascensão do nazismo em “O Crepúsculo dos Deuses”, isto em 1969).

5. “Brecha”. 2 de agosto de 1996.

6. Extraí este dado, assim como muitos outros, do ensaio “La rapt de Ganymède” do mesmo Dominique Fernandez (Grasset, Paris, 1989): “Les poèmes de Michel-Ange ne sont publiés qu’après sa mort. Le plus célèbre de ses vers, ‘Resto prigionier d’un cavaliere armato’, est une allusion on ne peut plus claire à la passion du poète pour le jeune Tommaso dei Cavalieri.

L’arrière-petit-neveu de Michel-Ange, qui s’est chargé de la publication posthume, dénature ce vers, qui devient: ‘Je reste prisionnier d’un coeur armé de vertu’. Il a fallu attendre jusqu’à 1897 pour qu’un érudit allemand examinât les manuscrits et restituât le jeu de mots provocant.” (p. 222).

7. Verdade que existe o ensaio “Alexis ou o significado do temperamento urano”, de Alberto Nin Frías, Javier Morata editor, Madrid, 1932. O interesse do ensaio reside na estratégia com que Nin Frías negocia com a homofobia (que é ali sazonal, não especialmente uruguaia) o reconhecimento do “uranismo” de vários gênios da arte universal (Virgílio, os gregos, o

Renascimento florentino, Shakespeare, França, a Espanha moderna). O resultado é um documento bastante mais útil para entender a época de sua produção que um eventual “significado do temperamento urano”. Do mesmo autor se deve assinalar

também o relato “La fuente envenenada” (1911). Também devemos versos de tema homoerótico ao poeta Angel Falco (“Vida que canta”, 1908) que incluí em minha colagem “Amores impares” (1998).

8. O tema da memória das perseguições é constitutivo de quase todos os grupos de militância gays no Brasil (a experiência latino-americana que conheço melhor). Vários grupos relevam e repertoriam anualmente os assassinatos cometidos contra homossexuais no país. O “Grupo Gay da Bahia” funciona como “central” dos dados que são apresentados à ONU. Não é

casual que seu presidente, o antropólogo Luiz Mott, seja um especialista na Inquisição lusobrasileira.

9. “Jaque”. 6 de maio de 1987.

(*) Alfredo Fressia (Uruguai, 1948). Poeta e ensaísta. Autor de livros como “Noticias extranjeras” (1984), “Frontera móvil” (1997) e “Veloz eternidad” (1999). Tem sido colaborador frequente do suplemento El País Cultural (Uruguai) e da Banda Hispânica (Brasil). Contato: alfress@uol.com.br

(Texto traduzido da revista eletrônica Agulha, com permissão do autor)

Conto: "O Michê Álex viu Jesus?"




Madrugada paulistana: as portas de aço das lojas da rua Aurora, no centro, recebem uma estranha pichação

Foto: Alair Gomes

Nunca mais Álex, teus mamilos botão-de-rosa que o primeiro resvalar de unha lacera; os dedos rápidos para dentro da minha boca, essa tua mania nunca mais.
Escancarei ontem minha raiva na rua prostituta, lá mesmo onde te encostavas, lagarto lento e venenoso. Em dez portas de aço pintadas de branco deixei o jato preto de spray — O MICHÊ ÁLEX VIU JESUS? JESUS É NEGRO? —, e agora as butiques de roupa de novela lembram, depois das seis, o teu comércio ladino, mesmo quando lá não te encontras. ÁLEX VIU JESUS? Pintei para leres quando passares, como dizias na tua língua sulina, para lembrares que foste, és e serás puta barata.

Teu colega de calçada, que te trouxe pra São Paulo, cantou tudo na primeira espremida. Depois se jogou pra cima de mim (esse nojento nunca!, Álex) e pediu um troco para bater rango. Rindo, o sacana atirou na minha cara: o pastor do tempra bordô te tirou da rua e está te dando boa-vida.

Caralho, Álex! Justo aquele preto-bíblia que eu peguei duas vezes te azarando na esquina da praça? O nojento te botando pra dentro do carro comprado com a grana dos irmãos, adesivo no vidro traseiro para impressionar otário: EU ESTOU COM JESUS, E VOCÊ?, com desenho de dedo apontado como pinto em riste.

E eu, não dava tudo o que você pedia? Motel na estrada para lembrar a roça de onde saíste, uísque rótulo preto, jaco de couro e tênis imaculado todo mês. Até a coroa de ouro para o dente estragado, e aquelas revistas com loiras rampeiras da Dinamarca também. Devias enrolar e enfiar no cu, pelo menos uma vez, porque eu lembro bem, Álex, gostavas, comigo pelo menos gostavas, de avançar a mão por toda a parte e demorar em tudo. A pálpebra adormecendo sobre os olhos de esmeralda clara, e era tudo sempre como na primeira vez. Sorrias derretido e cantavas, no teu sotaque, o meu atraso, que tinhas dispensado a bichona do BMW porque, lembraste!, era o meu dia, e toda essa baba que eu escutava devoto. Afeição de cadela vadia, brincavas de gozar. Porém melhor fingidor que muito artista.

Álex, o de ar desamparado, nunca viu filme de James Dean, só porrada chinesa, mas o cigarro do puto colado no lábio frouxo. Macho-fêmea, doce-amargo, escuta olhando o teto e diz que precisa tempo para pensar. Três vezes por semana, e eu sempre esperando ouvir dizer que a maldita, que a polícia, que a tia do Rio… Mas o negro safado, Álex, sinceramente eu nunca imaginei. De repente o milagre, a revelação: você viu Jesus e ele te deu a bênção. O preto exorcista mandando entregar na quitinete a TV estéreo e a pizza quatro formaggio. Tá na cara, Álex, esse tarado vai dizer que está com Jesus e pedir sem camisinha, e ainda vai comer teu rabo de porcelana chinesa. Bem feito, alguém te algemar e te faturar, e a esta altura você já sabe que é melhor relaxar e pedir creme. Você preso nos quatro cantos da cama, o negro quatro vezes mais forte suando acre no teu dorso, o suor escorrendo e penetrando junto, pela primeira vez, você berra como bezerro desmamado, mas a barba dele arranca a seda da tua nuca, e aí vai ser pancada pura. Tomara, e então nunca mais serás Álex, comigo também nunca mais, mesmo se amanhã, no telefone, Álex, nunca mais

conto de Alvaro Machado