Querido J.
Meu coração extra-identitário - extra-ordinário se estraçalha mais uma vez em escrever-te, mais que preciso, como dizia Clarice Lispector em alguns de seus livros saber “Onde aprender a odiar para não morrer de amor?". Você me dizia que não agüentava meu ceticismo isso por que - eu negava a realidade objetiva da causalidade, das coisas e do mundo e do eu; Mas nem ao certo percebia o quão cético é você: nem mesmo têm certeza do que é você e daquilo que quer. Mas o teu fingimento é tão fingido, mesmo não sendo poeta, engana-te a ti mesmo ETERNAMENTE- como um hábito. Eu cansei de fingir: “Tudo está aos pedaços, toda coerência desaparece, toda justa provisão, toda relação. Príncipe, Súdito, Pai, Filho, são coisas esquecidas."[1]
Entretanto eu sei do porquê, quando te encontrei pareci gritar-me em mim algo errático e violento: “Dá-me a tua mão desconhecida que a vida está me doendo e eu não sei como falar - a realidade é delicada demais, só a realidade é delicada, minha irrealidade e minha imaginação são mais pesadas”[2]. Mas estendeste pouco disso, e isso te desesperava, e cada vez entendia menos do que eu era e do que sou. E mesmo assim, eu procurei por você e pelo mundo ser e estar em alguém que eu não era. Eu sempre fui e serei esta legião inconformada que grita: “Onde está? Qual a razão? Onde está o absoluto e o sublime?” Pois bem, parece que por não aceitar esta busca por algo além do que está posto no mundo, algo interior, misterioso e sombrio, eu mergulhei em um poço sem fundo, e o que para você parecia doença ou transtorno mental, para mim era uma crise existencial profunda, dolorida e ao mesmo tempo dançante. Essa crise estelar, durante anos me permitiu estar vivo, apesar de meus constantes e imorais flertes com a morte – foram três encontros que me trouxeram para mais longe do mundo exterior e mais para dentro de mim – e não entendias nada, o que se passava, e você me abandonou aos poucos, para me deixar languidamente entregue a médicos e aos medicamentos. Mas tudo bem, pois que tua simulação é tanta e bem disfarçada que te engana mesmo, e por algum tempo a mim, ou parte de mim. Mas, eu já não quero. Não quero, deixar-me enganar por teu fingimento, pelo meu fingimento – e ai está meu; de novo, rugir que te assusta e que te bota medo, e que ao mesmo tempo te dá medo e te cansa, porquanto se tornou um hábito rugir dentro de mim. Rugir esta legião de gritos tornou-se cotidiano para mim, e bem, você só queria a rotina e a segurança estáveis. E eu aqui, todo tonto, elíptico, e herético – te causava vergonha? Ou pior, tédio. Não sei, eu que não sei nada, nem quem sou e nem o que quero não arisco uma resposta para o que não está em mim, mas em ti. Mas não apreendo, pois não posso mais. Pois como já dizia Clarice "não comprender é mais vasto". Quem sabe o mundo exterior seja tão exterior a mim, que eu não posso outra vez me relacionar com algo de fora, além destas mil vozes que gritam dentro de mim, uma multiplicidade de “Eus” e de possibilidades.
“Os sofredores são todos horrivelmente dispostos e inventivos, em matéria de pretextos para seus afetos dolorosos; eles fruem a própria desconfiança, a cisma com baixezas e aparentes prejuízos, eles revolvem as vísceras de seu passado e seu presente, atrás de histórias escuras e questionáveis, em que possam regalar-se em uma suspeita torturante, e intoxicar-se do próprio veneno de maldade – eles rasgam as mais antigas feridas, eles sangram cicatrizes há muito curadas, eles transformam em malfeitores o amigo, a mulher, o filho e quem mais lhes for próximo”. (#15, p.117)[3]. Está posto, que ambos nos tornamos castos e sofredores. Quando eu me revoltei contra o estado do mundo, para nos ressuscitar da dor e do marasmo, e transformaste meus atos em dolorosas nodoas e chagas, e eu mesmo assim acreditei sempre em ti. Por que já do amor e do querer viver não podia mais acreditar na vontade reativa de vingança, pois que o passado – estranhamente, para mim, já não era o único tempo estático – certo e definido – e podia, pelas minhas novas forças tornar-me uma ficção vivificante de loucuras e aspirais temporais. Mesmo assim, das palavras e das coisas, e até de ti, me vieram o surdo e acético tom: auto-controle, e justiça – e desejo de ordem. E Eu como um cavalo louco somente queria brincar de estrela e rodopiar e isso para você e para o mundo era uma afronta, e por isso todos os remédios e a imposição de que eu devia voltar ao trilho da “ordem e do progresso” sem sair navegando em mares perigosos e doidos. Até você quis me resgatar da “abnormalidade”, mas que de doente e fraco – justamente ao que tudo fazia crer não era eu – era você e a sociedade “democrática” normalizante destes homens – do tipo pequeno e mesquinho, que não se importa com o que é mais com o que têm.
Sinceramente, penso que perdemos todos. Cansei-me de tentar ser quem eu não era para alguém que nem sabia quem nós éramos, e por isso, prefiro matar a morrer. Posso ser indigno e tosco a ponto do parricídio – como assim foi, mas não sou mais aquele disposto a deixar-me entregar-me a falta de vida e à mortificação segura de todos os dias. Pois que o inseguro, e o abismo são muito mais vastos e criativos: a eles me entrego sem medo, meu único pesar é por ti, e por estas chagas que carregas ainda e que não esqueces. Eu que de meus fantasmas aprendi, não me livrar, mas conviver com eles, e com eles criar fic-cionar minha vida e meu tempo, meu passado e meu futuro – e já não me importam com as vozes que de longe vociferam: “louco”! Ou ainda aquele “Fique são”, pois bem, já que escuto essas vozes dentro e fora de mim, torno-me aos poucos nada mais que isso, e de mim faço uma linda e bela ficção.
Com amor
João
PS: Preocupa-se em demasiado, em trinta anos, todos nós estaremos mortos.
[2] Clarice Lispector: A Paixão Segundo G. H.
[3] Ascese: terceira dissertação da Genealogia da Moral.
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