Por Augusto Patrini Menna Barreto Gomes
FFLCH – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Universidade de São Paulo - USP
Introdução
Cuba o último país a se libertar do julgo colonial na América possui uma história rica e controversa. Pontuada por revoluções, golpes, grande parte da historiografia parece se interessar prioritariamente aos fatos políticos do país. Porém, muitos aspectos ainda podem ser abordados pela historiografia, como, por exemplo, costumes, mentalidades, saúde, alimentação, cultura, sexualidade e arte. São aspectos da sociedade cubana ainda pouco explorados pela historiografia.
Um dos temas relevantes levantados e sugeridos por Reinaldo Arenas em seu livro “Antes do Anoitecer”[1] é a questão da sexualidade e de que forma os Cubanos lidam com ela. Em seu livro fica bastante evidente a repressão, neste caso com relação à homossexualidade, e como esta é empregada em sua narrativa como forma subversiva de contestação ao regime pós-revolucionário.
Baseado neste livro abordarei em meu trabalho o controle e a repressão exercidos sobre a (homos)sexualidade em Cuba, durante a revolução Cubana, mas principalmente durante a ditadura “socialista” instaurada por Fidel Castro. Além deste tema – as formas de controle sobre a sexualidade na Cuba pós-revolucionária, serão abordados tangencialmente: a questão do mito da virilidade “política” na simbologia revolucionária cubana e o tema da resistência pela a sexualidade, que foi usada como subversão e como forma de ação antiautoritarismo.
1. Conceituando e contextualizando.
Homossexualidade, bissexualidade, heterossexualidade são categorias definidas socialmente, criadas e transformadas no transcurso da história humana. Na verdade sabemos desde Freud, que a sexualidade é extremamente fluída. No decorrer dos séculos a homossexualidade e outras formas de sexualidade alternativas à heterossexualidade foram tratadas de formas diversas, dependendo da época e do lugar. Em muitos lugares e épocas foram consideradas pecados graves, em outros tratadas como patologia médica, e, ainda, em outros tempos e sociedades consideradas apenas mais uma das formas de se amar e exercer a sexualidade.
Quando os europeus chegaram à América, encontraram aqui muitas tribos indígenas, que respeitavam a homossexualidade. Alguns índios brasileiros chamavam os gays de tibira e as lésbicas de sacoaimbeguira. A idade média foi marcada por violenta perseguição a gays e lésbicas. Países islâmicos como Irã, Arábia Saudita e Sudão punem, ainda na atualidade, a homossexualidade com a pena de morte. Outras sociedades, como algumas indígenas da América e muitos países europeus da atualidade, aceitam e respeitam outras formas de sexualidade, além da heterossexual, com maior naturalidade. Já países, como por exemplo, o Brasil, apesar de não possuírem uma legislação repressiva à prática homossexual, apresentam ainda um quadro de grande opressão social e inúmeros casos de abusos e violência contra os que praticam a homossexualidade.
De qualquer forma, como afirmam Peter Fry e Edward MacRae:
“A partir da constatação de que os papéis sexuais de ‘homem’ e ‘mulher’ variam de cultura para cultura e de época para época, é agora lugar-comum observar que cada sociedade, classe e região têm a mulher e o homem que merece. Ninguém hoje em dia acredita que as diferenças de comportamento entre os dois sexos possam ser explicadas apenas em termos de diferenças biológicas, pois se reconhece que os papéis sexuais são forjados socialmente” [2]
O preconceito e a repressão são após a antiguidade, talvez com o aumento da influência judaico-cristã no ocidente, uma constante ao longo da história. Alguns estudiosos atribuem ao crescimento do cristianismo o aumento da discriminação contra os homossexuais, pois, a partir deste, a prática da homossexualidade, além de condenada socialmente é punida de forma severa. Na idade média, centenas de mulheres consideradas lésbicas foram queimadas como bruxas e os homossexuais usados como lenha para as chamadas fogueiras “purificadoras da Santa Igreja”.
No entanto, podemos também compreender a origem desta opressão a formas sexuais homoerótica por meio dos argumentos de CASTELLS (2000) quando afirma que:
“O patriarcalismo exige heterossexualidade compulsória. A civilização conforme é conhecida historicamente, é baseada em tabus e repressão sexual. Segundo Foucault, a sexualidade é construída socialmente. A regulamentação do desejo está subordinada às instituições sociais, canalizando assim a transgressão e organizando a dominação. Quando a epopéia da História é observada pelo lado oculto da experiência, nota-se a existência de uma espiral infinita entre o desejo, repressão, sublimação, transgressão e castigo, responsável em grande parte, pela paixão, realização e fracasso. Este sistema coerente de dominação, que liga as artérias do Estado à pulsação da libido pela maternidade, paternidade e família, tem seu ponto fraco: a premissa homossexual. Se essa premissa for questionada, todo o sistema desmorona: a relação entre o sexo controlado e a reprodução das espécies é posta em dúvida (...), solapando a coerência cultural das instituições dominadas pelos homens”. [3]
A (homos)sexualidade parece ter começado a libertar-se da moralidade judaico-cristã somente no século XIX. No final deste século, mais precisamente em 1897, surgiu na Alemanha o Comitê Científico e Humanitário (CCH), com a proposta de promover diversas atividades relacionadas ao estudo da sexualidade. Porém, em meados de 1933, o CCH foi duramente perseguido pelos nazistas. Anteriormente, este Comitê foi responsável, por abaixo-assinados, palestras e atividades públicas em favor dos homossexuais.
Conforme relatos de João Silvério TREVISAN, em Devassos no Paraíso (2000), antes do século XVIII, qualquer forma alternativa de sexualidade que não visava a reprodução era considerada delito moral grave:
“Na segunda metade do século XIX, foi um militante ‘uranista’ (Assim se chamava o homem que praticava sexo com homem) quem criou o termo ‘homossexualismo’ – visando a legitimar biologicamente a ‘vocação’ homossexual e isentar a culpa de seus ‘vocacionados’(...) Isso deu início a uma importante mudança de postura da ciência, que passou de condenação à curiosidade científica perante uma anomalia, digamos, moralmente neutra. [porém] Partindo do pressuposto eugênico de que os homossexuais eram anormais incuráveis, como loucos e aleijados, o nazismo estigmatizou-os com o triângulo ‘rosa’ e determinou a sua eliminação como corolários obrigatório para a boa saúde da sociedade”.[4]
De acordo com Hiro Okita (1980), uma das primeiras posições governamentais favoráveis aos homossexuais surgiu na Rússia Revolucionária. A atitude dos revolucionários russos em relação aos homossexuais foi declarada em um panfleto escrito pelo médico Grigori Batrkis, diretor do Instituto Moscovita de Higiene Social, onde afirmava que:
“A atual legislação sexual da União Soviética é obra da Revolução de Outubro. Esta Revolução é importante não somente como fenômeno político que garante o governo político da classe trabalhadora, mas também porque as revoluções que emanam desta classe chegam a todos os setores da vida (...) Declara a absoluta não interferência do Estado e da Sociedade nos assuntos sexuais, sempre que não lesem a pessoa alguma e não prejudique os interesses de ninguém. A respeito da homossexualidade, sodomia e outras várias formas de gratificação sexual, que na legislação européia são qualificadas de ofensas à moral pública, a legislação soviética as considerava exatamente igual a qualquer outra forma da chamada relação ‘natural’. Qualquer forma de relacionamento sexual é um assunto privado somente quando se emprega a força ou coação, e geralmente quando se ferem ou se lesam os direitos de outra pessoas, existe motivo de perseguição criminal”.[5]
Segundo Okita, esse progresso da revolução russa foi destruída por reformas posteriores. O autor cita como exemplo, na edição de 1971, a ‘Grande Enciclopédia Soviética’, em que se lê: "homossexualidade é uma perversão sexual consistente em uma atração antinatural entre pessoas do mesmo sexo. Dá-se em pessoas de ambos os sexos. Os estatutos penais da URSS, dos países socialistas e inclusive alguns estados burgueses, castigam a homossexualidade (...)"[6].
O período enfocado pelo livro de Arenas vai dos anos 1960 até meados da década de 80. Este período foi farto em transformações políticas e sexuais no ocidente. O que influenciou certamente os círculos literários de Cuba dos quais Reinaldo Arenas fazia parte. Entre os fatos que transformam a forma de encarar a sexualidade no ocidente estão Maio de 68 (França) e revolta homossexual de Stonewall (EUA). Esta última acontece em 28 de junho de 1969 marcou para sempre a luta contra a discriminação aos homossexuais.
2. Cuba Socialista: Três tradições repressivas
A América Latina será parcialmente afetada por estas lutas políticas e pela mudança nas mentalidades referentes à sexualidade, ambas em curso nos anos 60 no mundo ocidental. O caso de Cuba, no entanto é bastante particular, pois inscrita após sua revolução, em um contexto de Guerra Fria, na área de influência da União Soviética. Este país terá além de uma enorme influência econômica sobre Cuba, também influência política, cultural, moral e pedagógica.[7] As transformações posicionamentos e regulamentação com relação à sexualidade neste país têm, portanto, influência na forma como o Estado e a sociedade cubanos percebem a homossexualidade. O posicionamento da sociedade soviética, expresso na legislação e na moral, não era muito favorável a qualquer expressão homossexual. É bastante esclarecedor o relato de Wilhelm Reich, em “A Revolução Sexual”, que confirma que a partir da ascensão do stalinismo estabeleceu-se intensa repressão à sexualidade entre pares do mesmo sexo.[8] Segundo Reich, Gorky nesta época escreveu um artigo sobre “humanismo proletário”, onde abordava a questão homossexual da seguinte maneira:
“Ao passo que nos paises do fascismo a homossexualidade, que estraga a juventude, age impunemente, no país em que o proletariado valente e masculamente (grifos meus) conquistou o poder estatal é declarado como crime social e castigado severamente. Na Alemanha já se criou um lema: ‘Exterminais os homossexuais e o fascismo desaparecerá.”[9]
É claro que o Cuba já guardava neste momento (60-80) uma tradição “moral” ligada às tradições espanholas e católicas, heranças de sua história. Estas tradições são aquelas que, como abordei acima, consideram a homossexualidade um desvio moral. Podemos lembrar também que dentre a mitologia política cubana já há, anteriormente a revolução, um culto a masculinidade. Durante o debate que travou José Martí com os “anexionistas”, estes eram tradicionalmente relacionados com traços femininos ou homossexuais, enquanto a independência de Cuba era relacionada aos traços masculinos dos que defendiam esta alternativa. Dizia José Martí[10]: “Hay hombres varrones y hay hombres hembras”[11]. Esta tradição certamente manteve-se após a revolução, e somou-se às duas outras tradições repressivas, a tradição católica e a tradição stalinista na repressão à homossexualidade.
3. Reinaldo Arenas e a Repressão Estatal a Homossexualidade
Priorizamos neste trabalho a “observação” do modo como a repressão e o controle do Estado Cubano se exerceu sobre os vários domínios dos cidadãos cubanos – no caso deste trabalho, sobretudo no domínio da sexualidade. Usamos como trilha, o relato de Reinaldo Arenas que é paradigmático neste sentido, pois é uma destas representações. No livro de Arenas parece haver dois tipos de repressão sexual, o primeiro ligado muito mais aos mecanismos internos de disciplina e repressão – superego na linguagem freudiana e poder disciplinar no caso da terminologia foucaultiana – e outro exercido por forças externas, sobretudo, o Estado - no caso cubano, empregando uma rede de estruturas disciplinares para submeter os indivíduos. As três tradições repressivas cubanas (a moral católica, o culto político à virilidade e a política stalinista), parecem, no relato de “Antes que Anoiteça” unir-se com o objetivo de reprimir e coibir qualquer tendência ou prática homossexual. A moral católica parece ter contribuído ao longo da colonização espanhola para difundir uma ideologia sexualmente opressora[12] que serviria como base para o estabelecimento das outras duas tradições – o culto político ou revolucionário à virilidade e o totalitarismo stalinista. O poder disciplinar originado destas duas tradições seria fundamental para prescrever a normalidade e reprimir qualquer “desvio”. Não é preciso dizer que as três tradições compreendem a homossexualidade como um tabu (Arenas, p. 15): para o catolicismo, esta é um pecado, para o “culto ao viril” uma perigosa transgressão, para o stalinismo uma tendência pequeno burguesa, contra-revolucionária ou fascista. No entanto, o autor em diversos momentos do livro explicita como as pessoas buscam escapar destas três bases de poder repressivo, e como freqüentemente acabam por fazê-lo.[13]
Existem duas compreensões opostas da homossexualidade retratadas no livro de Arenas: a primeira, apresentada pelo autor ao narrar suas primeiras experiências sexuais ainda na infância e na adolescência é aquela que liga a (homos)sexualidade à natureza e à “natureza” humana. Há uma clara apresentação da sexualidade como algo inato aos homens e animais e, no livro, quando Arenas é iniciado neste mundo, é por meio do contato com animais, com águas dos rios, com a terra, plantas etc. Ou seja, o sexo é apresentado como natural, como um impulso primordial de homens e animais:
“A teoria defendida por certas pessoas a respeito da inocência sexual dos camponeses é completamente falsa; entre eles, existe uma força erótica que, geralmente, supera todos os danos, as repressões e os castigos. Essa força da natureza, impõe-se. Acho que, no campo , raros são os homens que não tenham tido relações com outros homens; entre eles, os desejos do corpo estão acima de todos os sentimentos machistas que nossos pais se encarregaram de inculcar em cada um de nós.” [14]
A outra visão do sexo apresentada no livro é aquela ligada à repressão, tanto aquela encarnada na mãe de Arenas - a repressão sexual de provável fundo cristão - quanto à repressão sexual originada e exercida por parte do Estado Pós-Revolucionário. Talvez seja interessante observar que o Estado Cubano revolucionário acabou absorvendo as três fontes da repressão sexual, expressa em uma legislação e em uma prática policial punitivas.[15] Essa postura repressiva é apresentada por Arenas como anti-natural, anti-humana e afastada de qualquer vínculo real com a terra e forças da natureza (a avó do autor representará talvez uma espécie de ligação entre os dois mundos - o natural das pulsões e o anti-natural da repressão.). A repressão parece ser, conseqüentemente, tão artificial como o Estado Socialista cubano é para Arenas, outra origem de repressão disciplinar.
Parece-me também bastante claro que no livro, Reinaldo Arena nos apresenta a formação de um Estado totalitário, no sentido que esse tenta exercer controle quase absoluto sobre esferas da vida biológica-psicológica como é, por exemplo, a sexualidade. Podemos supor que essa constatação do totalitarismo cubano origina-se justamente da pretensão do regime revolucionário em executar uma suposta finalidade humana inexorável, e concretizar uma “lei histórica” ao estabelecer o “reino da justiça na terra.”(Arendt, 2004)[16]. Parece evidente pelo relato de Arenas que o homossexual não se encaixava, nesta “homem novo”, viril e revolucionário necessário para a realização da pretensão escatológica da “sociedade perfeita”, ou a sociedade comunista.
Esta sociedade perfeita e inevitável foi, segundo esta compreensão, guiada por “homens de vanguarda”, presentes no livro de Arenas nas figuras mesquinhas e repulsivas dos vários burocratas e servidores do regime castrista – bastante distanciados pelo autor do ideal do “homem novo” revolucionário, puro, abnegado e altruísta. Essa é uma estratégia de Arenas que ao distanciar os homens “revolucionários” apresentados no livro - mesquinhos, individualistas, hipócritas e que muitas vezes apresentam uma sexualidade ambígua ou veladamente homossexual[17] – do revolucionário másculo e idealizado, para romper com o mito da “ditadura do proletariado” casta, perfeita e solidária. Esse aspecto hipócrita da sociedade revolucionária de Cuba é bastante destacado por Arenas, que chega a relatar abusos sexuais nas escolas “revolucionárias”, e a constância de práticas homossexuais entre “autênticos revolucionários”. A intenção talvez seja também demonstrar que apesar do impulso repressor da Estado cubana, impulso este anti-natural para Arenas, a sexualidade, e particularmente a transgressora homossexualidade, estava muito viva e pulsante entre os homens da “nova sociedade sem-classes”. É também por isso, que Arenas faz questão de apresentar ao leitor toda e qualquer transgressão – seja ela econômica ou política – pois elas esvaziam a sacralidade do mito revolucionário que ainda possui parcialmente o regime cubano.
Outra questão importante para o autor, é que a repressão do Estado cubano é representada como um poder totalitário, onde um líder, no caso Fidel Castro, controla de forma pessoal uma rede repressiva auxiliar que exerce pressão sobre todos os setores da vida dos cubanos.[18] Não há, segundo o livro, uma separação clara de poderes, nem direitos nem garantias constitucionais realmente operantes, há um simulacro de legalidade e um permanente estado de exceção, com julgamentos sumários, campos de concentração, prisões políticas, banimentos e expurgos. No livro de Arenas, o regime revolucionário não parece cumprir nem ao menos as regras criadas por sua própria instituicionalidade, já que existem muitos indivíduos que burlam as leis constantemente. É, por exemplo, por isso, para demonstrar a dimensão totalitária e ingerência estatal em todos os âmbitos da vida que o escritor deixa claro que a geração de literatos e “jovens de talento” de sua geração foram quase completamente destruídos, acabaram assassinados ou exilados.
Talvez seja importante fazer um parêntese para lembrar que Arenas, em seu livro, não esquece de criticar a repressão do regime capitalista de Fugêncio Batista, e sua repressão de ordem política e moral. Ao fim do livro, ele também aborda criticamente o capitalismo, percebe um esvaziamento no ato sexual e melancolicamente clama por uma “volta à natureza”[19].
Outro aspecto interessante é que a homossexualidade parece ser destacada por Arenas, que além de evidenciar sua ligação com a natureza do homem, parece utilizá-la como elemento subversivo. É como se fizesse uma contra-afirmação: “apesar de toda repressão e hipocrisia, exercemos nossa sexualidade mesmo assim”. Essa exaltação ao sexual parece ser justamente empregada para esvaziar a eficácia da repressão e desmoralizar o regime ao mostrar a (homos)sexualidade velada e reprimida de alguns seus “servidores”[20]. Repetidas vezes Reinaldo Arenas representa no livro a ambigüidade repressiva dos agentes do Estado cubano.[21]
Essa forma de subversão pelo e para o sexo já havia sido inaugurada em maio de 68. Esta data foi significativa na história não por suas passeatas e piquetes, mas porque justamente foi o momento em que o homem contemporâneo ocidental trouxe questões como o sexo, o amor e as relações pessoais para a política, rompendo parcialmente entre as esquerdas com o monopólio do Partido Comunista e com, digamos, a “grande” política – aquela dos gabinetes. Deste então, o que fica de maio de 68 é que tudo é política, até comer, andar, amar, sonhar etc. Lembremos que logo após maio de 68 o filosofo francês, Guy Hocquenguem, fundador da Frente Homossexual de Ação Revolucionária, chega a afirmar em uma frase de efeito: “[...] o buraco de nosso cu não é nem vergonhoso nem pessoal, é público e revolucionário.”[22] Parece que a sexualidade homossexual teve para Arenas[23] um sentido similar àquele defendido por Hocquenguem[24]. Talvez seja nesse sentido que Arenas busque explicitar a sua sexualidade e a do Outro em “Antes que Anoiteça”. Para ele a liberdade em praticar sua homossexualidade está diretamente relacionada com a liberdade e com o sentimento de liberdade, uma vez que mesmo internamente o homossexual tem de se libertar dos mecanismos internos repressivos, para poder sentir-se pleno e livre em sua sexualidade. É por isso, que quando relata sua prisão em “El Morro” ele deixa claro que não exerce mais sua sexualidade, pois esta está profundamente ligada à liberdade e a capacidade de escolha. Para ele a experiência na cadeia foi bastante destruidora, justamente por marcar sua incapacidade real em desfrutar das liberdades mais básicas, como aquelas que dizem respeito à afetividade e à vida fisiológica.[25]
Talvez seja justamente por meio da sexualidade e da literatura que Reinaldo Arenas possa, no livro expressar alguma forma de plenitude e realização. Mesmo no exílio Reinaldo Arenas expressa uma certa impossibilidade em realmente se sentir livre, pois neste momento a repressão política já havia tirado-lhe aquele sentido de ligação com o natural e com a vida. O exílio não significa uma libertação, mas sim uma impossibilidade em se viver plenamente. Infelizmente para ele, a repressão parece continuar no exílio, por meio de opositores políticos, uma impossibilidade econômica e produtiva e principalmente pelas doenças decorrentes da AIDS. Parece-me que ao longo do livro há uma luta cotidiana para romper qualquer tipo de opressão, seja ela interna, estatal ou mesmo econômica. Parece que Reinaldo Arenas concordaria com a frase de Joseph Prouhon: “Quem quer que seja que ponha as mãos sobre mim, para me governar, é um usurpador, um tirano. Eu o declaro meu inimigo”.[26]
Bibliografia:
· Arenas, Reinaldo. Antes que anoiteça. Rio de Janeiro: Record, 1994
· Barreto, Teresa Cristófani. A libelula, a pitonisa : revolução, homossexualismo e literatura em Virgilio pinera. São Paulo : Iluminuras, 199-
· Trevisan, João Silvério. Devassos no paraíso. Rio de Janeiro : Editora Record, 2000
· Hocquenghem, Guy. A contestação homossexual. São Paulo: Brasiliense, 1980.
· FRY, P. MACRAE, E. O que é a homossexualidade. 7º edição. São Paulo: Brasiliense, 1991
· CASTELLS, N. O Poder da Identidade. 2º ed. São Paulo, Paz e Terra, 2000
· OKITA, H. Homossexualismo: da Opressão à Libertação. São Paulo: Proposta Editorial, 1981
· Reich, Wilhelm. A Revolução Sexual. RJ: Editora Guanabara, 1988
· Jerez Mariño, Hubert, El cantar de Martí, Plantation, Jerez Publishing Inc., 1999
· MARTÍ, José, La verdad sobre los Estados Unidos, 1894 in http://www.josemarti.org/jose_marti/obras/articulos/laverdadsobreEEUU/laverdadsobreEEUU01.htm.
· Arendt, Hannah, Origens do Totalitarismo,São Paulo: Cia das Letras: 2004.
· Proudhon, J. P., Do Princípio Federativo, São Paulo: Editora Imaginário, 2001
[1] Arenas, Reinaldo. Antes que anoiteça. Rio de Janeiro: Record, 1994
[2] FRY, P. MACRAE, E. O que é a homossexualidade. 7º edição. São Paulo: Brasiliense, 1991, p.10 e 11
[3] CASTELLS, N. O Poder da Identidade. 2º ed. São Paulo, Paz e Terra, 2000 , p.288
[4] TREVISAN, J. S. Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. Rio de Janeiro: Record, 2000, p.33.
[5] BATRKIS apud OKITA, H. Homossexualismo: da Opressão à Libertação. São Paulo: Proposta Editorial, 1981, p.35 e 36.
[6] Grande Enciclopédia Soviética apud. OKITA, 1981, p.36
[7] “Tínhamos que decorar o manual da Academia de Ciências da URSS, o Manual de economia política, de Nikitin; e Os fundamentos do socialismo em Cuba de Blas Roca.” (Arenas, p.73)
[8] “Em março de 1934 apareceu [na URSS] a lei que proibia e castigava relações sexuais entre homens, assinada por Kalinin. De acordo com um relatório privado, saiu como uma espécie de medida de emergência, pois que modificações da lei somente poderiam ser determinadas pelo Congresso Soviético. De acordo com essa lei, as relações sexuais entre homens eram designadas como “crime social”, que, em casos mais leves, é castigado com três a cinco anos e, no caso da dependência de um parceiro do outro, com cinco a oito anos. Assim a homossexualidade era novamente enquadrada na mesma categoria que outros crimes sociais: banditismo, contra-revolução, sabotagem, espionagem etc.” Reich, Wilhelm. A Revolução Sexual. Editora Guanabara, RJ: 1988.
[9] Gorki apud Reich, Wilhelm. A Revolução Sexual. Editora Guanabara, RJ: 1988.
[10] “Y es de justicia, y de legítima ciencia social, reconocer que, en relación con las facilidades del uno y los obstáculos del otro, el carácter norteamericano ha descendido desde la independencia, y es hoy menos humano y viril, mientras que el hispanoamericano, a todas luces, es superior hoy, a pesar de sus confusiones y fatigas, a lo que era cuando empezó a surgir de la masa revuelta de clérigos logreros, imperitos ideólogos e ignorantes o silvestres indios. Y para ayudar al conocimiento de la realidad política de América, y acompañar o corregir, con la fuerza serena del hecho, el encomio inconsulto-y, en lo excesivo, pernicioso-de la vida política y el carácter norteamericanos, Patria inaugura, en el número de hoy, una sección permanente de Apuntes sobre los Estados Unidos, donde, estrictamente traducidos de los primeron diarios del país, y sin comentario ni mudanza de la redacción, se publiquen aquellos sucesos por donde se revelen, no el crimen o la falta accidental-y en todos los pueblos posibles-en que sólo el espíritu mezquino halla cebo y contento, sino aquellas calidades de constitución que, por su constancia y autoridad, demuestren las dos verdades útiles a nuestra América: el carácter crudo, desigual y decadente de los Estados Unidos, y la existencia en ellos continua, de todas las violencias, discordias, inmoralidades y desórdenes de que se culpa a los pueblos hispanoamericanos.” MARTÍ, José, La verdad sobre los Estados Unidos, 1894 in http://www.josemarti.org/jose_marti/obras/articulos/laverdadsobreEEUU/laverdadsobreEEUU01.htm
[11] Martí, J in Jerez Mariño, Hubert, El cantar de Martí, Plantation, Jerez Publishing Inc., 1999, pp.360-374.
[12] “Em Holgín, respirava-se um ambiente machista que minha família compartilhava e no qual eu havia sido educado.” (Arenas, p. 59)
[13] “Alguns homens vinham com as esposas e sentavam-se na praia para relaxar, mas às vezes entravam na cabine, onde tiravam a roupa e tinham suas aventuras eróticas com algum outro rapaz; depois voltavam para as esposas.”(Arenas, p. 130)
[14] Arenas, Reinaldo. Antes que Anoiteça, p. 41, Record: 2001.
[15] “Exatamente quando se promulgaram todas as leis contra os homossexuais, teve início uma violenta perseguição contra eles e foram criados os campos de concentração; foi quando o ato sexual virou tabu, enquanto se exaltava o “homem novo”e o machismo.” Arenas, p.136
[16] Arendt, Hannah, Origens do Totalitarismo, Cia das Letras: 2004.
[17] “Quase todos aqueles rapazes que desfilavam na praça da Revolução, aplaudindo Fidel Castro, quase todos aqueles soldados de fuzil na mão, que marchavam com ares marciais, depois das manifestações vinham aninhar-se em nossos quartos e lá, sem roupa, mostravam sua autenticidade, e às vezes uma ternura e uma maneira de gozar que dificilmente encontrei em qualquer outro lugar do mundo” (Arenas, p. 136)
[18] “No entanto, entre aqueles jovens praticou-se com certeza o homossexualismo, embora de forma bastante velada. Os rapazes que eram apanhados em pleno ato tinham que desfilar com suas camas e todos os pertences até o almoxarifado, onde, por ordem da direção, deviam devolver tudo; os outros colegas tinham que sair dos alojamentos para apedrejá-los e enchê-los de socos. Era uma expulsão sinistra, pois existia um documento que iria perseguir aquele jovem durante toda sua vida e impedi-lo de estudar em outras escola do Estado – o Estado já estava começando a exercer um controle sobre absolutamente tudo. Muitos dentre aqueles jovens que passavam com suas camas nas costas pareciam bastante viris. Ao ver aquele espetáculo, eu me sentia envergonhado e aterrorizado. “Entendido, é isso que você é”, eu voltava a ouvir a voz do meu colega de turma na escola secundária, e percebia que ser “entendido” em Cuba representava uma das maiores desgraças que podem acontecer a um ser humano.” (Arenas, p. 73)
[19] É interessante notar que Arenas identifica na AIDS um fator não-natural, e chega mesmo denunciar que o surgimento do vírus serviria aos poderosos e à eliminação dos pobres e excluídos.
[20] “[...] havia a bicha régia; um tipo específico dos países comunistas. A bicha régia é aquela que, por vínculos muito diretos junto ao líder máximo, ou de uma tarefa extraordinária quanto à segurança do Estado, ou ainda por coisas semelhantes, goza do privilégio de poder ser bicha publicamente; pode manter uma vida escandalosa e, ao mesmo tempo, ocupar altos cargos, viajar, entrar e sair do país, cobrir-se de jóias e roupas, ter inclusive um chofer particular. O exemplo máximo desse tipo de bicha é Alberto Guevara.” Arenas, p. 108
[21] “Pensamos que podia ser uma armadilha e que a casa estivesse cheia de policiais para nos prender com a mão ‘na massa’; mas certamente não era nada disso; aquele homem que nos perseguira por sermos veados no fundo queria que agarrássemos seu sexo e o esfregássemos, chupando-o ali mesmo. Talvez fosse uma aberração existente em todo sistema repressivo.”
[22] Hocquenguem, Guy, A Contestação Homossexual, Brasiliense: 1980, p. 42
[23] “O prazer sexual entre dois homens era uma espécie de conspiração...” Arenas, p. 136
[24] “O ‘libidinal’existe em todos os níveis da política, a política existe em todos os níveis do ‘libidinal’. Não se trata de sublimação e sim de ligação direta (a luta do povo palestino está libidinalmente associada à nossa luta homossexual).” FHAR apud Hocquenguem, p. 45.
[25] “Devo confessar que nunca me recuperei por completo da minha experiência na cadeia, duvido que alguém que tenha sido preso consiga. Vivia aterrorizado e com a esperança de algum dia fugir do país.” Arenas, p. 305
[26] Proudhon, J. P., Do Princípio Federativo, Editora Imaginário, 2001, SP.
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