Por Guilhermo Breytenbach B.de Mont Serrat
"Disso que me aconteceu, lembro só de fragmentos descontínuos que.
Que - não há nada depois desse que dos fragmentos - descontínuos"
Caio Fernando Abreu - "Primeira Carta para Além dos Muros"
Caio Fernando Abreu - "Primeira Carta para Além dos Muros"
1. Ou uma carta de amor
Escrevo-lhe, esta carta João por que sei que nunca a enviarei, e você nunca poderá respondê-la. Talvez eu nem esteja mais aqui. O véu é fino, e uma vez lá não se pode mais voltar. O silêncio também é um comprimido que engulo a seco. Sinto agora náuseas e quero vomitar – como naqueles dias que você, depois de exagerar na cerveja ou no gim com gelo, vomitava na beira da calçada. Mas desta vez o vomito não vem da boca do estomago. Vem do que vejo no mundo, vem de onde éramos juntos. Vejo mundo e quero pensar que.
Estou suspenso – vejo-me lá e aqui e quero vomitar. Vomitar até encontrar de novo algo que me diga assim, forte e incontrolavelmente louco: “viva”. São os “7 Seconds” em que retorno sempre. No tempo do “não sei mais o que” – e “eles querem que eu não veja mais tanta cor”. Vomito por que quero aceitar toda dor, cor e amor. Não quero negar. Você sabe: quando amo, sofro, perdidamente. Perdido entre margaridinhas vagabundas e sacos de lixo. Como um cão sujo ou um gato.
Entre “Feel It” e os “Bombons Chineses” de Mian Mian – minha cabeça gira – confuso, entre o abismo lindo e misterioso e nosso antigo (ou talvez futuro) destino simples e terno. Como já disse, não sei o que quero e nem quem sou – grito.
- Sabe as coisas simples da vida, como se ter um ofício e um lar, e tudo isso? Os planos e as idéias que as pessoas têm? Pois, eu, não sei nada – não quero e pronto. Quero mais, tolamente profundo e forte. Além disso, quero o fogo e a brasa que queima - dor, amor, perdição, fuga e sonhos toscos-bobos, cheios de espinhos e flores. Como os canteiros de rosas da tia judia de nossa rua, lembra?
Estou dividido entre o que quero ser e o que serei se for tragado pela vida – quero mais – forte – vibrar – além deste tempo todo; cheio de cores e cuspe – um arco-íris iluminado e tenso. Bocas úmidas e penas. Deuses e monstros, os sonhos e as mentiras de Franco e deliro, pois me perdi entre o tempo e a escolha. Sinto que vou pirar.
Mas vivo, continuo cheio de vícios e amores. Profundamente, sei que nasci para a margem – para o esgoto dos que pairam sobre homens e celulares – carros e gás fumegante dos canos. Penso. Tenso. Quero amar além, na sarjeta e na chuva, entre o céu estrelado de porra e margaridas livres e vadias. Você sabe do que estou falando? Sabe? Responda-me? Se souber, desculpe-me, tente esquecer, eu sou sempre “o que se perdeu” – sempre assim. “Knotchi” sempre está retornando em minha tola vida, que às vezes, parece mais lanchonete suja de beira de estrada – cheia de bichos e baratas, com aquela luz fraquinha.
Você quer saber mais? Não sei mais o que! Nem o porquê. Não aceito simplesmente “é assim”. Foda-se tudo, principalmente que tenha celulares e oxigenadas megeras – e os que tentam matar nossos sonhos. Estou cansado de trabalhar para poder vadiar – quero vadiar agora e hoje – enlouquecidamente vadio e louco, pois me perdi assim, por acaso agora, entre uma noite de tédio e uma manhã de maio. E que assim seja, que a força selvagem e pura da vida proteja todos os vadios.
Cuide-se. Não pise nas margaridinhas.
2. Disso que nos aconteceu
Ou uma carta de amor II
João, penso nisso que nos aconteceu.
Lembrei de um dia – o sol sobre um bambuzal e um riacho escorrendo, por entre pedras, um cheiro de verde no ar e sombras e luz sobre as águas.
Penso disso que nos aconteceu, das lágrimas e de algum néctar alcoólico de arroz que bebi, para suportar a dor que intuitivamente senti e – que entre os fragmentos de fogo, luz, pedras, água e abismo, confirmou que somos apenas crianças (languidos-doces-perdidos-apavorados) - se amando entre as flores da praça e com algum gengibre nos dentes – e sempre buscando.
Estávamos recortados e depois com mais esses meses de separação, fomos ao ponto exato (sinceridade para ser perdoado?!) – os dois com nosso medo e nossos sonhos e eu com aquele gosto de peixe na boca.
Tudo isso, para mim, tenho a impressão, acaba sendo parte de um sonho triste e melancólico, que existiu e morreu – (acordamos?) – e uma erupção – claro – que agora se tornou apenas uma lembrança, já meio “distante”. Pronto. Acabou. Por que somos mais e além! Mas até o além estremece e perde-se, às vezes, você sabe. Mas não vamos nos remoer. Quero apenas continuar a sentir a sinceridade de nosso existir juntos.
Por que aprendemos, aos poucos, aceitar a dor. Essa dor dolorida e triste que é estarmos vivos e prontos, aqui e agora, para amarmos e sermos felizes – mas por que não somos e nem amamos tanto – dói um pouco. Perceber entre pálpebras roxas e inchadas que somos bastante tolos e que por pressão, medo ou pavor não podemos amar como gostaríamos. Perdemo-nos nos cantos escuros da vida, sufocados por uma fumaça que vem na verdade de dentro de nós.
Mas aí “estouramos”, por aí, à toa sem saber exatamente o porquê, e choramos (eu, com um rashi na mão, comendo sushi e tomando cerveja ruim e quente – assim com arroz, algas e cevadas fermentadas; colhidas e arrancadas, como um dia também fomos do ventre de nossas mães): mas esquecemos e ponto. E então. Continuamos.
Esquecemos quem somos e o que nos tornamos – um para o outro. Por que, você sabe, não podemos amar mais de um, a multiplicidade do amor está condenada nas sombras – trata-se de uma loucura insana e pura. Socialmente, culturalmente e existencialmente não somos capazes. Mas você sabe que quero amar profundamente, sempre – não me basta os muitos “mais-ou-menos” da vida ou “vamos levando”.
Bom, dentro do riacho que eu vi, dorme um peixe escuro – feito de sombras. São lagrimas frias que escorrem,... Para dentro e no fundo onde ninguém vê ou sente – nem mesmo você ou eu. Dizem, porém que um dia o riacho transforma-se em mar e nos afoga. É o último ponto. Além de qualquer razão, temor e pavor. Somos o que fazemos de nós e fomos o que a terra quis. Entre aquele riacho, o peixe preto e o gosto de gengibre, que às vezes volta na boca – sobra aquele gosto estranho de lágrimas e fogo. E é nesse tempo-momento que sentimos a maresia mórbida que nos afunda o crânio com ferrugem e mostra ao mundo o que realmente somos. Isto é particular e único – não há nada o que eu possa fazer por você e você por mim. A responsabilidade de teus atos pertence somente a você, assim como por meus atos somente eu posso responder. A verdade não muda muita coisa. Eu não posso te perdoar – por que não há nada para ser perdoado – essas coisas simplesmente acontecem – e a culpa é de quem?
Bom, agora quero saber: decidimos estarmos juntos, não? Continuarmos e sermos juntos. Então juntos, seremos o que quisermos – se podemos nos perder – um do outro – só depende de nós.
Fiquei triste com o acontecido, mas sei que não tenho nem o direito de exigir de sua parte essa forma de amar desesperadamente e louca – isto é vaidade de minha parte. Não serei autoritário no amor. Talvez seja importante dizer que, com sua sinceridade abrupta, tive vontade de vomitar, me senti vazio e seco. Foi o momento em que tomei consciência que o sonho tosco que eu construíra par nossa vida aqui (nesta cidade suja e vadia) não poderia ser como eu queria. Mas penso agora que aquele “eu” nem está mais aí – agora o que quero – com você – é procurar um “sonho que seja nosso”, os girassóis no campo e o riso franco das manhãs ensolaradas de domingo. Por enquanto, até o dia que dure, o resto não importa.
Pense nisto: qual será nosso sonho? - os girassóis e o riso?
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