Por Augusto Patrini
Estremeceu, o gato preto na escada, os olhos verdes no escuro, uma estrela e o vazio. E então.
Abriu os olhos, o peito confuso, a alma e a cabeça doloridas, o sonho aos poucos mergulhou esquecido no outro lado da consciência. Não quis se levantar, ficou deitado olhando, pálido, o teto, os pontos brancos, as sombras roxas e a poeira no rastro de luz impertinente pela cortina.
Fechou os olhos e nas sombras imaginou o mar, a brisa e o sol. Lento levantou-se tonto. Abriu a cortina e sorveu a brisa fresca da manhã cinza.
Detestou e amou a cidade: Maldita, tão medíocre, mas tão adorável! Amada e repelida. Sufocou.
Lá fora, na manhã de Domingo com ironia à noite mal dormida, ouvia-se uma música distante,... “but We’re thrash, you and me, We’re the litter on the breese, We’re the lovers on the street...” Os olhos verdes, não esquecia, um abraço amigo, um aperto de mão e o adeus triunfante sobre todas as coisas. E a ausência fria. Sufocou, a asfixia opressora das manhãs de Domingo. Solidão. Saiu.
Sobre a xícara de café, um primeiro cigarro turvo, no fundo do peito a saudade da amizade franca, a ânsia de se descobrirem amigos, os mesmos sonhos, o mesmo tempo perdido, e depois aquele – agente não pode lutar... E então.
Andando pela rua, as pedras brancas, assim meio que sem rumo lembrou o dia, ou não talvez a noite – um dia fora do tempo: no bar, Pessah, Hagadá, Moisés e os Hebreus, Ofir e Salomão – mitologia e mito. A discussão fosca, os ânimos exaltados, jovens, e de repente nos olhos verdes a simpatia, os cachos pretos, a amizade. Depois disso as conversas sem fim, os mesmos livros – Baudelaire, Lispector, Rimbault, Pessoa. Os mesmos filmes, as mesmas músicas, os cafés e os cigarros fumados juntos, a mesma poesia.
E meio que sem jeito forma se amando amigos urgentes e sôfregos por que o tempo não lhes pertencia. Sobre o fundo esfumaçado, nas mesas de todos os bares, alheios às festas, absortos a si mesmos.
Chove. Chove. Chove a garoa fina. Entrou na catedral, o altar altivo indigno em toda sua decadência de luz e ouro; pensou. Como viver o presente sem escravizar-se com os fatos do passado. Olhou todos os santos, nos cantos, em sombra, seus rostos complacentes mórbidos de cera. As velas e as preces, luz e desespero ou esperança nas sombras... A Fé como um chacal alimenta-se entre os túmulos...”A garoa lá fora a cidade imensa cinza, plácida, branca, poderosa... dentro, as sombras, as velas, e a branca face de uma virgem morta. Confusão e pânico. Fobia.
Na saudade, a prova do crime tornou-se evidente, difuso na mente, a luz e as trevas nas copas das árvores do Bom Fim em Porta Alegre, a sua infância caleidoscópio de luz terra e sangue. O ouro em sua frente, o altar, tanto sangue, tanta dor e ódio, na pobre miserável História humana. Tudo isso para quê? E por que este miserável deus? Carnívoro não poupa ninguém, nos rouba o tempo, a carne e todos os sonhos.
Tudo tão urgente. A vida lá fora, sob a garoa, passa rápida indiferente e entre dois vazios o presente. A multidão se choca e triste, cega, se ignora.
Mil países dentro de um país se basculam e se ignoram. Todos os Homens com sua vidas a serem vividas, sem escolha, abraçam e também repelem este estranho e maldito paradoxo urbano que lhes devora o coração e chama-se Solidão.
Estava cansado, chega de Solidão e dor. Sem querer lembrou: “Sobre a sombra de um Mundo errado,... murmuraste um protesto tímido”. Pessoa, tão genial. Sentiu vontade de gritar este mundo errado, acordar deste pesadelo fosco e tosco. Sufocou, sufocou e sufocou...
Saiu da igreja, tão humana e tão pouco sagrada. A cidade lá fora continuava cinza. Não se surpreendeu. Não havia mais chuva, só as poças e o ar fresco que aliviou seus pulmões deprimidos. Tomou dois comprimidos e pensou escrever uma carta. Depois desistiu, após o adeus, lembrou, foram muitas cartas que pareciam imunes ao tempo, mas logo o tempo tornou-se mais tempo e logo muito tempo e as cartas rarearam, mais e mais, até que se tornou dolorido manter aquela amizade distante. Como uma foto antiga, amarelou, perdeu a cor, se não fossem as malditas fotos, os rostos teriam se perdido no tempo.
Sentou-se em uma praça, deveria ter ficado em casa, esperando o telefone que não tocaria, a carta que não chegaria, a visita que não viria...
Não, não... Acendeu um cigarro, preciso parar, maldito vicio, pensou. Opressor Domingo, perfeita maldição dos solitários. Uma criança brincando com sua própria sombra entre as poças d’água o distraiu, talvez mais um anjo perdido. Como a sua beleza juvenil me atormenta, me faz sofrer, em sua volúpia ardente de viver a vida. Assim, sem teorizar as coisas apenas viver sem se perguntar, porque afinal, pensou, nunca encontraremos as resposta. A vida não tem razão de ser, talvez tudo seja apenas produto de um glorioso maldito acaso. E talvez a única razão de ser seja apenas isto: nada. O supremo nada, no fundo seria a única meta do homem, apenas no supremo advento da morte atingiria seu significado e razão de ser. A morte, este estranho enigma, talvez seria daí nossa força tola para continuar a existir. Ou talvez o nada seja melhor.
Lembrou-se de uma tarde de outono, o vento e os cabelos emaranhados, as folhas das árvores vermelhas, douradas – Quem os via, via apenas dois jovens amigos, os olhos brilhantes, os cafés e os cigarros, todo prazer, o céu aberto sobre suas cabeças e o futuro tão incerto. Naquela tarde eles tinham visto um filme, um filme francês e conversavam animadamente no Café Central – algo assim comum a seus gostos habituais. Foi então, neste dia, que tudo mudou, pois súbito era tudo tão profundo e aquele olhar olhos nos olhos e uma certo constrangimento. Tudo o céu, os homens, a vida, tudo lhes parecia tão estranho. Irônico. Não conseguiu lembrar-se exatamente como todo resto aconteceu; aquela ironia os aproximava e os separava. Parecia, não sabia ao certo que algo tina acontecido depois; uma noite, muitos copos de vinho, um abraço exultante e um beijo sôfrego e depois e depois... a noite, que tolos resolveram esquecer amigos. Depois foi a separação lenta, por que a lembrança daquela noite os perseguia por dentro, perigosamente linda e medonha – o sonho não iria se realizar. Não, não podiam,...havia tanto medo. E então. O adeus triunfantemente real, físico, e afinal: - Agente não pode lutar... E aquela frustração, sem se completar aquela noite louca, sem desvendar no universo a imensidão daquele amor.
Fechou os olhos, quis tudo esquecer e nada mais lembrar. Sentia-se emocionado e triste. Fechou os olhos, encostou a cabeça sobre o banco e aos poucos adormeceu profundamente magoado.
Estremeceu, o gato preto na escada, os olhos verdes no escuro sobre a estrela e o vazio, riu e falou como se respondesse uma questão:
- Eu sou tudo, eu sou o nada, sou a terra e o fogo, mas não sou ego. Sou a noite e o dia, a salvação e a perdição.
- Não, não e não, você é meu pesadelo, meu vicio minha dor,...
- Não pobre raça de criaturas malditas, você é sua própria dor seu pesadelo, e seu ego sua maldição. Eu sou simplesmente um ator, sou o que você, homem, baniu de seu coração, de ti sou apenas a arte, a música e quando amas, amo junto e teus lábios são também os meus. Sou o sonho humano irracional e selvagem.
E então o caos e a escuridão engoliram tudo.
Acordou assustado: Pânico! Pânico! Pânico!
Acalmou-se aos poucos, umas mocinhas olhavam indiscretas inquisitórias: Monstras, pensou. Prontas para comentar cruéis a vida alheia. De repente teve ódio delas, de si, e do mundo. Obstante a tanta beleza e gloria, o mundo era por demais injusto - Como podem, monstras, ignorar tanta miséria e trapos. Todos os dias passam pelo mesmo mendigo sujo sem nunca o olharem. Não me venham com seus olhares comportamento pré-estabelecido, não me venham com seu moralismo hipócrita.
Tentando se aclamar levantou-se tonto, pensou, é melhor ir para casa este domingo vai de mau à pior. Agora, quase milagrosamente, o sol saia preguiçoso no canto do céu, doce e puro. Reconfortante.