sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Moral como Antinatureza



Por Friedrich Nietzsche


I

Todas paixões têm uma fase em que são meramente desastrosas, em que aviltam sua vítima com o peso da estupidez – e uma fase posterior, muito posterior, em que se casam com o espírito, se “espiritualizam”. Antigamente, em vista da estupidez na paixão, declarava-se guerra à própria paixão, conspirava-se pela sua destruição; todos os velhos monstros da moral concordavam quanto a isto: il faut tuer les passions.[1] A fórmula mais famosa para isso encontra-se no Novo Testamento, naquele Sermão da Montanha, onde, diga-se de passagem, as coisas não foram de modo algum olhadas do alto. Nele é dito, por exemplo, particularmente em relação à sexualidade: “Se teu olho te escandaliza, arranca-o fora”. Felizmente nenhum cristão age de acordo com esse preceito. Destruir as paixões e os desejos, simplesmente como uma medida preventiva contra a estupidez e as conseqüências desagradáveis dessa estupidez – hoje isso se apresenta a nós apenas como outra forma aguda de estupidez. Não admiramos mais os dentistas que arrancam dentes para que não doam mais. Para ser justo, deve-se admitir, entretanto, que sobre o solo no qual o cristianismo se desenvolveu, o conceito de “espiritualização da paixão” nunca poderia formar-se. Afinal, a Igreja primitiva, como todos sabem, lutou contra os “inteligentes” em favor dos “pobres de espírito”. Como se poderia esperar dela uma guerra inteligente contra a paixão? A Igreja combate a paixão através do aniquilamento em todos os sentidos: sua prática, sua “cura” é a castração. Ela nunca pergunta: “como se pode espiritualizar, embelezar, divinizar um desejo?” Em todos os tempos colocou a ênfase da disciplina na extirpação (da sensualidade, do orgulho, do desejo de dominar, da avareza, da vingança). Mas um ataque às raízes da paixão significa um ataque às raízes da vida: a prática da Igreja é hostil à vida.

II

Os mesmos meios na luta contra um desejo – castração, extirpação – são instintivamente escolhidos por aqueles que possuem uma vontade fraca demais, degenerada demais, para poderem impor a moderação a si mesmos; por aqueles que necessitam de La Trappe, para falar figuradamente, ou (sem figuras de linguagem) alguma espécie de declaração definitiva de hostilidade, um abismo entre eles e a paixão. Meios radicais são indispensáveis apenas para os degenerados; a fraqueza da vontade – ou, falando de modo mais preciso, a incapacidade de não responder a um estímulo – é em si apenas outra forma de degeneração. A hostilidade radical, a hostilidade mortal contra a sensualidade é sempre um sintoma merecedor de reflexão: ela nos permite fazer suposições concernentes ao estado geral de quem é excessivo desta maneira.

Essa hostilidade, esse ódio, a propósito, alcança seu clímax apenas quando esses tipos carecem mesmo da firmeza suficiente para a cura radical, para a renúncia a seu “Diabo”. Deveria-se examinar toda a história dos sacerdotes e dos filósofos, incluindo a dos artistas: as coisas mais venenosas aos sentidos foram ditas não pelos impotentes, nem pelos ascetas, mas pelos ascetas impossíveis, por aqueles que realmente tinham uma necessidade enorme de ser ascetas.

III

A espiritualização da sensualidade é chamada amor: representa um grande triunfo sobre o cristianismo. Outro triunfo é a nossa espiritualização da hostilidade. Ela consiste num profundo reconhecimento do valor de se ter inimigos: em suma, significa agir e pensar de modo oposto ao que outrora era a regra. A Igreja sempre desejou a destruição de seus inimigos; nós, imoralistas e anticristãos, encontramos nossa vantagem nisto: que a Igreja existe. No âmbito da política a hostilidade também se tornou mais espiritualizada – muito mais sensível, muito mais pensativa, muito mais ponderada. Quase todo partido compreende que é de interesse à sua própria autopreservação que seus opositores não percam toda a força; o mesmo vale para políticos poderosos. Uma nova criação em particular – um novo Reich, por exemplo – necessita mais de inimigos que de amigos: somente na oposição ele sente-se necessário, somente na oposição ele torna-se necessário. Nossa atitude perante o “inimigo interior” não é de modo algum diferente: aqui também espiritualizamos a hostilidade; também aqui reconhecemos seu valor. O preço da fecundidade é ser rico em oposições internas; permanece-se jovem enquanto a alma não relaxa e anseia pela paz. Nada nos parece mais estranho que aquele desejo dos tempos antigos, o desejo cristão: a “paz da alma”; nada nos causa menos inveja que a vaca moral e a felicidade gorda da boa consciência. Renuncia-se à vida grandiosa quando se renuncia à guerra.

Em muitos casos, certamente, a “paz da alma” é apenas um mal-entendido – algo diverso, para o qual falta um nome mais honesto. Sem mais rodeios ou preconceitos, vejamos alguns exemplos. A “paz da alma” pode ser, para alguém, a suave irradiação de uma rica animalidade no interior da esfera moral (ou religiosa). Ou o começo do cansaço, a primeira sombra da noite, qualquer espécie de noite. Ou o sinal de que o ar está úmido, de que os ventos do sul se aproximam. Ou uma inconsciente gratidão por uma boa digestão (por vezes chamada “amor aos homens”). Ou a obtenção da calma por um convalescente que sente um novo sabor em todas as coisas, e aguarda. Ou o estado que se segue de uma completa satisfação de nossa paixão dominante, o bem-estar de uma rara repleção. Ou a fraqueza senil de nossa vontade, de nossos desejos, de nossos vícios. Ou a preguiça, persuadida pela vaidade a exibir uma aparência moral. Ou o aparecimento da certeza, mesmo da certeza terrível, após uma longa tensão e sofrimento causados pela incerteza. Ou a expressão da maturidade e maestria em meio ao agir, criar, trabalhar e desejar – respirar tranqüilo, a “liberdade da vontade” alcançada. Crepúsculo dos Ídolos – quem sabe? Talvez também apenas um tipo de “paz da alma”.

IV

Reduzo um princípio a uma fórmula. Todo naturalismo na moral – isto é, toda moral saudável – é dominado por um instinto vital; qualquer mandamento de vida é preenchido por um determinado cânone de “deves” e “não deves”; remove-se assim um elemento hostil e inibitório no caminho da vida. A moral antinatural – ou seja, quase toda moral que até agora foi ensinada, venerada e pregada – volta-se, de modo oposto, contra os instintos vitais: é uma condenação desses instintos, ora secreta, ora explícita e impudente. Quando ela diz “Deus observa os corações”, diz Não tanto aos desejos mais baixos quanto aos mais altos da vida, colocando Deus na posição de inimigo da vida. O santo com o qual Deus se encanta é um castrado ideal. A vida termina onde o “Reino de Deus” começa...

V

Compreendendo o sacrilégio que tal revolta contra a vida representa, tal como se tornou quase sacrossanta na moral cristã, também se compreende, felizmente, outra coisa: o caráter fútil, aparente, absurdo e mendaz de tal revolta. Uma condenação da vida pelo próprio vivente no fim continua sendo apenas um sintoma de um tipo específico de vida: com isso a questão de ela ser justificada ou não nem chega ser levantado. Seria necessário posicionar-se fora da vida, e ainda conhecê-la tão bem quanto um, quanto muitos, quando todos que a viveram, para que seja permitido mesmo tocar o problema do valor da vida: razões suficientes para compreendermos que esse problema é inacessível a nós. Quando falamos de valores, falamos com a inspiração, com a perspectiva das coisas que são parte da vida: a própria vida nos força a estabelecer valores; a vida mesma valora através de nós quando estabelecemos valores. Segue-se disso que mesmo aquela moral antinatural que concebe Deus como contra-conceito e condenação da vida é apenas um juízo de valor da vida – mas de que vida? De que tipo de vida? Já dei a resposta: da vida decadente, enfraquecida, cansada, condenada. A moral, tal como até aqui foi entendida – como por fim foi formulada uma vez mais por Schopenhauer, como “negação da vontade de vida” –, é o próprio instinto da decadência que se fez um imperativo. Ela diz: “Pereça!”; é uma condenação pronunciada pelo condenado.

VI

Finalmente, consideremos quão ingênuo é dizer: “O homem deveria ser de tal ou de tal modo!” A realidade nos mostra uma encantadora riqueza de tipos, uma abundante profusão de jogos e mudanças de forma – e um miserável serviçal de um moralista comenta: “Não! O homem deveria ser diferente.” Esse beato pedante até sabe como o homem deveria ser: ele pinta seu retrato na parede e diz: “Ecce homo!”[2] Mas mesmo quando o moralista dirige-se a apenas um indivíduo e diz “você deveria ser de tal e de tal modo!”, ainda não deixa de ser ridículo. O ser humano, visto pela frente ou por trás, é um pedaço de destino, uma lei a mais, uma necessidade a mais para tudo que há de vir e será. Dizer-lhe “muda-te” é exigir que tudo seja mudado, mesmo retroativamente. E realmente houve moralistas conseqüentes que desejavam tornar o homem diferente, isto é, virtuoso – desejavam-no reformado à sua própria imagem, como pedante: e, para tal fim, negavam o mundo! Nenhuma pequena loucura! Nenhum modesto tipo de imodéstia!

A moral, à medida que condena por sua própria causa, e não a partir dos interesses, considerações e pontos de vista da vida, é um erro específico pelo qual não se deve ter compaixão – uma idiossincrasia de degenerados que causou danos imensuráveis.

Nós outros, nós imoralistas, pelo contrário, fizemos de nosso coração uma morada para todo tipo de entendimento, compreensão e aprovação. Não negamos facilmente; encontramos honra no fato de sermos afirmativos. Cada vez mais, nossos olhos se abrem a uma economia que necessita e sabe utilizar tudo que a sagrada insensatez do padre, a doentia razão do padre, rejeita – aquela economia na lei da vida que encontra alguma vantagem mesmo nas espécies mais repulsivas de pedantes, padres e virtuosos. Que vantagem? Mas nós mesmos, nós imoralistas, somos a resposta.

Notas

  1. É necessário matar as paixões.
  2. “Eis o homem!”

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Le bateau ivre



Comme je descendais des Fleuves impassibles,
Je ne me sentis plus guidé par les haleurs :
Des Peaux-Rouges criards les avaient pris pour cibles,
Les ayant cloués nus aux poteaux de couleurs.

J'étais insoucieux de tous les équipages,
Porteur de blés flamands ou de cotons anglais.
Quand avec mes haleurs ont fini ces tapages,
Les Fleuves m'ont laissé descendre où je voulais.

Dans les clapotements furieux des marées,
Moi, l'autre hiver, plus sourd que les cerveaux d'enfants,
Je courus ! Et les Péninsules démarrées
N'ont pas subi tohu-bohus plus triomphants.

La tempête a béni mes éveils maritimes.
Plus léger qu'un bouchon j'ai dansé sur les flots
Qu'on appelle rouleurs éternels de victimes,
Dix nuits, sans regretter l'oeil niais des falots !

Plus douce qu'aux enfants la chair des pommes sûres,
L'eau verte pénétra ma coque de sapin
Et des taches de vins bleus et des vomissures
Me lava, dispersant gouvernail et grappin.

Et dès lors, je me suis baigné dans le Poème
De la Mer, infusé d'astres, et lactescent,
Dévorant les azurs verts ; où, flottaison blême
Et ravie, un noyé pensif parfois descend ;

Où, teignant tout à coup les bleuités, délires
Et rhythmes lents sous les rutilements du jour,
Plus fortes que l'alcool, plus vastes que nos lyres,
Fermentent les rousseurs amères de l'amour !

Je sais les cieux crevant en éclairs, et les trombes
Et les ressacs et les courants : je sais le soir,
L'Aube exaltée ainsi qu'un peuple de colombes,
Et j'ai vu quelquefois ce que l'homme a cru voir !

J'ai vu le soleil bas, taché d'horreurs mystiques,
Illuminant de longs figements violets,
Pareils à des acteurs de drames très antiques
Les flots roulant au loin leurs frissons de volets !

J'ai rêvé la nuit verte aux neiges éblouies,
Baiser montant aux yeux des mers avec lenteurs,
La circulation des sèves inouïes,
Et l'éveil jaune et bleu des phosphores chanteurs !

J'ai suivi, des mois pleins, pareille aux vacheries
Hystériques, la houle à l'assaut des récifs,
Sans songer que les pieds lumineux des Maries
Pussent forcer le mufle aux Océans poussifs !

J'ai heurté, savez-vous, d'incroyables Florides
Mêlant aux fleurs des yeux de panthères à peaux
D'hommes ! Des arcs-en-ciel tendus comme des brides
Sous l'horizon des mers, à de glauques troupeaux !

J'ai vu fermenter les marais énormes, nasses
Où pourrit dans les joncs tout un Léviathan !
Des écroulements d'eaux au milieu des bonaces,
Et les lointains vers les gouffres cataractant !

Glaciers, soleils d'argent, flots nacreux, cieux de braises !
Échouages hideux au fond des golfes bruns
Où les serpents géants dévorés des punaises
Choient, des arbres tordus, avec de noirs parfums !

J'aurais voulu montrer aux enfants ces dorades
Du flot bleu, ces poissons d'or, ces poissons chantants.
- Des écumes de fleurs ont bercé mes dérades
Et d'ineffables vents m'ont ailé par instants.

Parfois, martyr lassé des pôles et des zones,
La mer dont le sanglot faisait mon roulis doux
Montait vers moi ses fleurs d'ombre aux ventouses jaunes
Et je restais, ainsi qu'une femme à genoux...

Presque île, ballottant sur mes bords les querelles
Et les fientes d'oiseaux clabaudeurs aux yeux blonds.
Et je voguais, lorsqu'à travers mes liens frêles
Des noyés descendaient dormir, à reculons !

Or moi, bateau perdu sous les cheveux des anses,
Jeté par l'ouragan dans l'éther sans oiseau,
Moi dont les Monitors et les voiliers des Hanses
N'auraient pas repêché la carcasse ivre d'eau ;

Libre, fumant, monté de brumes violettes,
Moi qui trouais le ciel rougeoyant comme un mur
Qui porte, confiture exquise aux bons poètes,
Des lichens de soleil et des morves d'azur ;

Qui courais, taché de lunules électriques,
Planche folle, escorté des hippocampes noirs,
Quand les juillets faisaient crouler à coups de triques
Les cieux ultramarins aux ardents entonnoirs ;

Moi qui tremblais, sentant geindre à cinquante lieues
Le rut des Béhémots et les Maelstroms épais,
Fileur éternel des immobilités bleues,
Je regrette l'Europe aux anciens parapets !

J'ai vu des archipels sidéraux ! et des îles
Dont les cieux délirants sont ouverts au vogueur :
- Est-ce en ces nuits sans fonds que tu dors et t'exiles,
Million d'oiseaux d'or, ô future Vigueur ?

Mais, vrai, j'ai trop pleuré ! Les Aubes sont navrantes.
Toute lune est atroce et tout soleil amer :
L'âcre amour m'a gonflé de torpeurs enivrantes.
Ô que ma quille éclate ! Ô que j'aille à la mer !

Si je désire une eau d'Europe, c'est la flache
Noire et froide où vers le crépuscule embaumé
Un enfant accroupi plein de tristesse, lâche
Un bateau frêle comme un papillon de mai.

Je ne puis plus, baigné de vos langueurs, ô lames,
Enlever leur sillage aux porteurs de cotons,
Ni traverser l'orgueil des drapeaux et des flammes,
Ni nager sous les yeux horribles des pontons.

Arthur Rimbaud
poète français (1854 - 1891)

Para baixar em audio: http://migre.me/3jbDi

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Mistério D'Amor



O Livro D'Ele (Mistério D'Amor)
por Florbela Espanca

Um mistério que trago dentro em mim
Ajuda-me, minh'alma a descobrir...
É um mistério de sonho e de luar
Que ora me faz chorar, ora sorrir!


Viemos tanto tempo tão amigos!
E sem que o teu olhar puro toldasse

A pureza do meu. E sem que um beijo

As nossas bocas rubras desfolhasse!

Mas um dia, uma tarde... houve um fulgor,
Um olhar que brilhou... e mansamente...
Ai, dize ó meu encanto, meu amor:

Porque foi que somente nessa tarde
Nos olhamos assim tão docemente
Num grande olhar d'amor e de saudade?!

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A liberdade de amar não está à venda


O socialismo não se refere apenas ao fim de toda opressão e exploração. É também uma luta para que nos libertemos de todos os preconceitos e toda a repressão que distorcem e destroem a nossa sexualidade.

Noel Hallifax -"Gay Liberation and the Struggle for socialism",

Bookmarks, London.


As várias formas de sexualidade convivem juntas desde o princípio da humanidade. No início não havia termos ou nomes para os diversos tipos de expressões sexuais praticadas por homens e mulheres. Homossexualidade, bissexualidade, heterossexualidade são categorias definidas socialmente, criadas e transformadas no transcurso da história humana. Na verdade sabemos desde Freud, que a sexualidade é extremamente fluída, e não necessariamente marcada por categorias. No decorrer destes muitos séculos, a homossexualidade e outras formas de sexualidade alternativas à heterossexualidade foram tratadas de formas diversas, dependendo da época e do lugar. Em muitos lugares e momentos foram considerados pecados graves, em outros tratadas como patologia médica, e, ainda, em outros tempos e sociedades consideradas apenas mais uma das formas de se amar e exercer a sexualidade.

Quando os europeus chegaram à América, encontraram aqui muitas tribos indígenas, que respeitavam a homossexualidade. Nossos índios chamavam os gays de tibira e as lésbicas de sacoaimbeguira. A idade média foi marcada por violenta perseguição a gays e lésbicas. Países islâmicos como Irã, Arábia Saudita e Sudão punem, ainda hoje, a homossexualidade com a pena de morte. Outras sociedades, como a indígenas da América e muitos países europeus da atualidade, aceitam e respeitam outras formas de sexualidade, além da heterossexual, com maior naturalidade. Já países, como por exemplo, o Brasil, apesar de não possuírem uma legislação repressiva à prática homossexual, apresentam ainda um quadro de grande opressão social e inúmeros casos de abusos, discriminações e violência contra os que praticam a homossexualidade, bissexualidade ou qualquer outra forma de sexualidade além dos padrões socialmente estabelecidos.

De acordo com alguns especialistas a opressão homossexual e a violência contra os homossexuais, podem em parte ser explicada historicamente a partir da introdução da religião cristã, e das transformações causadas pelo surgimento do capitalismo. Seguindo a linha de raciocínio, estudiosos, atribuem ao crescimento do cristianismo o aumento da discriminação contra os homossexuais, pois, a partir deste, a prática da homossexualidade, além de condenada pela sociedade é punida de forma severa. Na idade média, centenas de mulheres consideradas lésbicas foram queimadas como bruxas e os homossexuais usados como lenha para as chamadas fogueiras “purificadoras da Santa Igreja”.

A forma com que a sociedade ocidental encara as sexualidades alternativas transformou-se lentamente. Antes do século XVIII, qualquer forma alternativa de sexualidade que não visava a reprodução era considerada delito moral grave. A partir deste século surgem também concepções pseudocientificas, patologizantes – que viam nas (homo)sexualidades uma forma de desvio psicológico e físico, e como tais, achava que deviriam ser tratadas e ou pior eliminadas. Desta concepção resultou a monstruosidade nazista que matou milhares de homossexuais, lésbicas e transexuais. Desde então a forma como as pessoas encaram a homossexualidade tem variado da aceitação total, a tolerância constrangida, até a discriminação e ao ódio. Podemos compreender a origem da opressão contra as formas sexuais homoerótica por meio dos argumentos do sociólogo Manuel CASTELLS (2000) quando este afirma que: “O patriarcalismo exige heterossexualidade compulsória. A civilização conforme é conhecida historicamente, é baseada em tabus e repressão sexual. Segundo Foucault, a sexualidade é construída socialmente. A regulamentação do desejo está subordinada às instituições sociais, canalizando assim a transgressão e organizando a dominação. Quando a epopéia da História é observada pelo lado oculto da experiência, nota-se a existência de uma espiral infinita entre o desejo, repressão, sublimação, transgressão e castigo, responsável em grande parte, pela paixão, realização e fracasso. Este sistema coerente de dominação, que liga as artérias do Estado à pulsação da libido pela maternidade, paternidade e família, tem seu ponto fraco: a premissa homossexual. Se essa premissa for questionada, todo o sistema desmorona: a relação entre o sexo controlado e a reprodução das espécies é posta em dúvida (...), solapando a coerência cultural das instituições dominadas pelos homens”.

Neste contexto surge a realidade descrita no relatório do ano de 2000 da Anistia Internacional (Relatório da Anistia Internacional 2000 in informativo da Anistia Internacional, mar/jun. 2001, pg.16), onde muitos homossexuais foram:

“(...) torturados, maltratados, agredidos sexualmente, forçados a se sujeitarem a tratamento médico ou psiquiátrico, obrigados a fugirem aterrorizados de seus países – por todo o mundo, gays, lésbicas, bissexuais e trangêneros (GLBT) correm maior risco de sofrerem violações dos direitos humanos devido a sua identidade sexual”. O relatório descreve também a situação angustiante de milhares de pessoas que são torturadas e maltratadas por sua sexualidade, real ou imaginada, considerada uma ameaça à ordem social. O relatório inclui exemplos documentados de cerca de 30 países. Em mais de 70 países as relações entre pessoas do mesmo sexo são consideradas um crime e, em alguns casos, podem ser punidas com a morte.

Brasil

A idéia de um Brasil como uma democracia plena está, infelizmente, longe de se realizar. O país apresenta inúmeras dificuldades sociais e políticas ainda graves, que podem ser contatadas diariamente nos principais jornais nacionais, como, por exemplo, grande disparidade econômica e social, alto índice de analfabetismo, desemprego, graves infrações contra os direitos civis e humanos e principalmente grandes setores da população em estado de miséria total e marginalização social. Os gays, lésbicas e transexuais brasileiros também enfrentam grandes dificuldades. A perseguição a orientação sexual ainda é uma constante que se expressa no trabalho, em locais públicos, no lazer. No Brasil as pessoas que praticam formas de sexualidade alternativas enfrentam todos os dias problemas como: a existência de uma ideologia homofóbica (violência simbólica praticada na mídia e em credos neopentecostais fundamentalistas), repressão policial e violência física, discriminação profissional, marginalidade social, o não reconhecimento dos seus direitos civis, associação automática e discriminatória à AIDS, discriminação dentro dos movimentos sociais, políticos e sindicais, uma legislação penal que abre brechas para a repressão ao penalizar os chamados delitos contra os “costumes” e, o mais grave, altos índices de assassinatos de homossexuais.

Segundo Luiz Mott e Marcelo Cerqueira do Grupo Gay da Bahia, somente no ano 2000 foram documentados 130 assassinatos de gays, travestis e lésbicas e 261 casos de discriminação Anti-Homossexual. Este estudo denuncia também que o Brasil continua sendo o campeão mundial de homicídios contra as minorias sexuais: cinco homossexuais são mortos a cada duas semanas. Nem nos Estados Unidos e Inglaterra, países onde os crimes de ódio são freqüentes, nem nos países islâmicos e africanos mais homofóbicos, onde há legislação punitiva contra os praticantes, em nenhum país no mundo, inclusive os da América Latina, são assassinados tantos gays como no Brasil.

Uma das primeiras posições governamentais favoráveis aos homossexuais surgiu sob o poder dos conselhos soviéticos da Revolução de Outubro, conquista que foi destruída depois, sob o totalitarismo stalinista. Entretanto, uma melhora nas condições de liberdade sexual só melhoraria no mundo depois de muita luta e mobilização sexual. Se hoje em muitos países do mundo desfruta-se de relativa liberdade sexual, deve-se isso ao movimento feminista e homossexual, que legou a todos os cidadão frutos da luta pela liberdade sexual. A libertação da sexualidade gay foi extremamente marcada pelo dia 28 de junho de 1969, que iria marcar para sempre a luta contra a discriminação aos homossexuais. Nesse dia, a polícia de Nova Iorque, nos EUA, promoveu uma batida em um bar freqüentado por homossexuais, o Stonewall, em Greenwish Village. Cansados das humilhações e perseguições, os homossexuais do Stonewall, liderados por travestis revoltaram-se e enfrentaram a polícia durante mais de uma semana, criando um verdadeiro cenário de guerrilha urbana. Desde então no aniversário da rebelião, todos aqueles que consideram importante a luta pela livre sexualidade e afetividade marcharam pelas ruas do mundo para lembrar que estão dispostos a seguir lutando pela liberdade de amar.

Desde então, em várias partes do mundo a situação da livre sexualidade, por meio da luta e da mobilização social, alcançou alguns progressos. No Brasil o reconhecimento legal de herança e pensão casais do mesmo sexo é certamente conquista da mobilização social. Nos Brasil, principalmente nos grandes centros urbanos, conquistou-se uma certa liberdade relativa. Porém, apesar da Parada do Orgulho Gay de São Paulo ser uma das maiores do mundo, as liberdades conquistas no Brasil ainda estão relativamente restritas aos guetos, onde se deve pagar para usufruir da liberdade. De acordo com o Geógrafo (USP) Amarildo Jardim, “No Brasil, pode-se dizer que houve mais avanço na inclusão dos homossexuais de classe média e alta, muitos mais como consumidores, não atingindo de modo abrangente a esfera da cidadania, pois a legislação ainda deixa a desejar. Numa sociedade excludente, os homossexuais mais pobres são os mais vulneráveis à violência.”

Um dos principais problemas da Parada Gay brasileira, assim como acontece no resto do mundo, é que se passou a comercializar o evento – e consequentemente a luta pela liberdade de amar. De um evento político, a Parada passou a ser um grande dia de festa, desprovida de um caráter reivindicativo forte - para ser um dia de liberdade assistida, onde a sociedade em geral homofóbica admite um dia de transgressão e liberdade. Mesmo assim, ainda que se tenha criticas ao modo como se construiu a Parada Gay no Brasil, todos aqueles que concordam com a liberdade sexual, sejam socialistas, trabalhadores, sindicalistas, ecologistas, mulheres, ou qualquer outro movimentos sociais, devem estar unidos em prol da causa da liberdade de amar, lembrando que as conquistas obtidas no âmbito da liberdade sexual, obtidas pela mobilização popular, são mais importantes do que nossas eventuais diferenças políticas. Porém devemos, sempre refletir e discutir até que ponto a comercialização do nosso anseio por mais liberdade e amor está prejudicando a conquista da verdadeira liberdade de amar. A Liberdade para amar quem quisermos não deve estar restrita ás Danceterias, saunas e bares (onde se deve pagar e estar em um espaço restrito) – ou a dias como a Parada e o Carnaval. Devemos ser livres onde e quando quisermos - nas ruas, no trabalho, em nosso grupo de amigos ou em qualquer outro lugar, sem admitirmos regressões á nossa necessidade de amar e expressar carinho, a quem que seja.

Nesse sentido, é importante que todos aqueles envolvidos em lutas políticas e sociais se participem da luta pela liberdade sexual - pois ela é de todos, homossexuais, bissexuais, lésbicas, heterossexuais e está muito além destas classificações repressoras. Devemos buscar essa união para que haja uma confluência nessa luta nos diversos movimentos sociais e políticos. Ela não é uma luta menor ou menos prioritária, ela faz parte de nossa luta por justiça, liberdade e igualdade.


Augusto Patrini


Texto de 2004, originalmente publicado em: www.revolutas.net

domingo, 19 de dezembro de 2010

Perder-se



Augusto Patrini

Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.”

Caio Fernando Abreu em “A terra do Coração” – Pequenas Epifanias.

UM

A história. Começou como medo. Não sabia como. Mas era um medo rubro sangueescarlate brilhante. Rubra força infunda. Rubro de sangue, rubro de vergonha, de timidez ou de ódio. Um grande hematoma roxo. Era assim sua dor-medo de cara contorcida. Uma viagem funda e torta, entrando em espiral dentro de si. As vagas rompendo a terra por que lhes doíam as almas todas. Era seu medo rubro e fogo que lhe rebentavam a carapraia. Torcendo-lhe a face.

Mas, era além daquele rosto torcido. Era para e por que amar era necessário que chegara até ali assim, cambaleando antes – procurado algo que não sabia o que era - e revoltoso do mundo. Quando encontrou jogou-se no fundo. No breu brilhante.

Agora, doíam-lhe as carnes suas, atormentadas e loucas, o medo enfiando-lhe duro na boca aberta uma angústia meio fina e longacheia de espinhos e rosas. Era a força que lhe guiava. A força de não se pertencer. Um gole de gasolina.

A história do medo começara assim devagarzinho, sutil e poderoso, como quando pombos recolhem as migalhas nas praças. Dos homens e dos sonhos. Amando e amado descobrira-se mortal e homem. Tão tolo e são.

Mas agora era essa força poderosa, um medo de perder-se e perder o outro. Uma flama tonta e louca era esse “perder-se” entre o seu eu e o outro. Mas depois e após, assim de rebento, lentamente e de forma frágil ele não era mais ele. Era ele e o outro, misturados e trançados – no fundo. Era o outro.

O pânico de ser e de não poder invadiu-lhe aos poucos a alma irrequieta. Por que a insurreição não lhe bastava. O outro não se insurgia do mundo. Insurgia-se dele mesmo. E era além dele a miséria dos homens e então mergulhava em si – nele-outro – misturado e múltiplo. Assim o seu eu não era mais eu, era também ele e nós. E foi daí, então, choroso e rubro que lhe nasceu esse medo. Medo de amor. Pois prezava muito esse outro, agora misturado nele mesmo.

Tratava-se de uma extravagância? se perguntara ele-outro em certo momento. Mas não podia saber, por que o outro eu tomava-lhe a palavra e não respondia o que lhe perguntava. Pastava. Ele-outro-coletivo pastava-lhe sensorialmente e sentimentalmente no outro além dele.

DOIS

Você acorda apavorado. Sua – sente frio. Você tem medo da voz. Ouve um guincho vindo do térreo. Um gato caiu pela janela. embaixo, no meio do clarão ensolarado do meio-dia, ele chora. Costelas e ossos quebrados. Boca sangrando. Você sua e encharca os lençóis brancos. Mas o sangue tinge o apartamento do térreo. Porra de gato idiota, pensa você. Mas por instantes sente-se como o gatocaído pela janela.

Você se levanta e vai para o banheiro. Olha no espelhodiretodireito – olheiras fundas – de pouco dormir e fumar demais. Fica confuso. Não sabe se toma um banho, fuma um cigarro ou faz um café. Sente falta do outro.

Você continua a ouvir os gritos do gato esborrachado embaixo. Por um momento, pensa em pegar uma espingarda imaginaria e dar uns tiros no bicho. Angustia-lhe o peito seus gritos de dor. Mas vai apenas para baixo do chuveiro frio. No prédio do lado toca uma música: “... a flor também é ferida aberta e não se chorar,...”

A água fria escorre por teu corpo. Nos cantos e nos becos. Nas dobraduras inquietas e roxas.

TRÊS

Não se sente o que não se pode dizer. A língua constrói o mundo. Era estranho. Mas pronto, estava feito. O quê? Bem, não sabia ao certo. Mas sabia que estava feito algo que mudava as coisaspois aceitava assim. Não sabia como era, se estava feliz ou tristesimplesmente estava longe do outro. Aceitava e pronto. Ali parado era agora ele. Solitário no cafezinho da esquina, diante do jornal lido nos solavancos do ônibus ou no escritório enfadonho, não sabia mais o que era sentir – o que devia sentir. Não sabia se sentia ou dessentia. Levava uma hora e meia até o trabalho e duas horas, no final do expediente, até em casa. Muita fumaça, canos fumegando e barulho. Dor em sua cabeça tonta. Mas o seu perder-se no outro, há tanto tempo se fora,... Agora queria esquecer. Pelo Medo que sentia, medo de estar tudo acabado, borrado, pela peste, pela dor e pelo nada. Queria, mesmo assim, como antes, beijar-lhe ainda a boca forte e vermelhalouco. Neste fim de tarde cinza, doía lhe a cabeça tontacafé demaiscafé de menosnoites mal dormidas. Querer contido. Doíam-lhe as dobraduras do corpo. Esticou a espinha e espiou. Pela janela, um menino que brincava entre sacos de lixo com pedaços de vidro.

QUATRO

De repente, agora era o branco. Perdera seu perder-se nele “outro”.

CINCO

Era também aquele niilismo burro que corrompera tudo. Aquilo que o tornara cínico e seco. Sem esperança. Duro. Mesmo lembrando do bonito, do seu encontro em perder-se no outro e pelo outro,...

Mastempos aquela coisa lenta, misteriosa e triste foi invadindo aquelas duas carcaças-corpos com lama nos olhos. Era a angustiosa roseira presa na gargantaum misto de tédio, medo e revolta. Por que afinal não se pode mais ser feliz para o resto da vida. Paz, segurança e compaixão são mentiras – cínicas e deslavadas. Utopias desiludidas.

Ele e o outro não se viam com os mesmos olhos. Eram agora eles outros-outros separados. Distanciados e brancos. E os olhos eram olhos de lama. Paciência, diriam alguns. A utopia acabou, a História se foi e o que resta, talvez seja apenas uma longínqua “Viens Mallika”- suspirosa. A saudade é hoje mais triste e, sobretudo. Cínica.

Da lama – surgiu o feto. Feto, triste, branco e deformado. Seu desejo desesperado - por outras carnes aparvalhadas, por outros perderes possíveis. Por outros quereres. Mas não conseguia. Eram, um, dois, três, quatro ou cinco. Não se aproximavam e nem ele se perdia como queria.

Todos longe no seu ego melancólico. Lembrava-se sempre de “Ah! Ridi, Pagliaccio, sul tuo amore infranto!” E via-se piegas e bobo. Junto da carne de diversos outros que não eram definitivamente aquele seuoutro” de antesmas que queriam, certamente, perderem-se nele e com ele. Mas não dependia deles – um, dois, três, quatro ou cinco. Tinham apenas alguns momentos, minutos e segundos dele. Umoi”, um perto de mão e diretodireito - para a cama. Pernas abertas, sexo – plastificado e tristepor que eram apavorados com a peste. Depois do gozo - era vestir as calças e sair por . Afogado de solidão desinibida e úmida. Mostrando a todos, pelas ruas da cidade esse seu filho-feto branco e gélido. Solidão, desejo e a ternura do “outro” perdidos na lama.