sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Domingo



Por Augusto Patrini

Estremeceu, o gato preto na escada, os olhos verdes no escuro, uma estrela e o vazio. E então.

Abriu os olhos, o peito confuso, a alma e a cabeça doloridas, o sonho aos poucos mergulhou esquecido no outro lado da consciência. Não quis se levantar, ficou deitado olhando, pálido, o teto, os pontos brancos, as sombras roxas e a poeira no rastro de luz impertinente pela cortina.

Fechou os olhos e nas sombras imaginou o mar, a brisa e o sol. Lento levantou-se tonto. Abriu a cortina e sorveu a brisa fresca da manhã cinza.

Detestou e amou a cidade: Maldita, tão medíocre, mas tão adorável! Amada e repelida. Sufocou.

Lá fora, na manhã de Domingo com ironia à noite mal dormida, ouvia-se uma música distante,... “but We’re thrash, you and me, We’re the litter on the breese, We’re the lovers on the street...” Os olhos verdes, não esquecia, um abraço amigo, um aperto de mão e o adeus triunfante sobre todas as coisas. E a ausência fria. Sufocou, a asfixia opressora das manhãs de Domingo. Solidão. Saiu.

Sobre a xícara de café, um primeiro cigarro turvo, no fundo do peito a saudade da amizade franca, a ânsia de se descobrirem amigos, os mesmos sonhos, o mesmo tempo perdido, e depois aquele – agente não pode lutar... E então.

Andando pela rua, as pedras brancas, assim meio que sem rumo lembrou o dia, ou não talvez a noite – um dia fora do tempo: no bar, Pessah, Hagadá, Moisés e os Hebreus, Ofir e Salomão – mitologia e mito. A discussão fosca, os ânimos exaltados, jovens, e de repente nos olhos verdes a simpatia, os cachos pretos, a amizade. Depois disso as conversas sem fim, os mesmos livros – Baudelaire, Lispector, Rimbault, Pessoa. Os mesmos filmes, as mesmas músicas, os cafés e os cigarros fumados juntos, a mesma poesia.

E meio que sem jeito forma se amando amigos urgentes e sôfregos por que o tempo não lhes pertencia. Sobre o fundo esfumaçado, nas mesas de todos os bares, alheios às festas, absortos a si mesmos.

Chove. Chove. Chove a garoa fina. Entrou na catedral, o altar altivo indigno em toda sua decadência de luz e ouro; pensou. Como viver o presente sem escravizar-se com os fatos do passado. Olhou todos os santos, nos cantos, em sombra, seus rostos complacentes mórbidos de cera. As velas e as preces, luz e desespero ou esperança nas sombras... A Fé como um chacal alimenta-se entre os túmulos...”A garoa lá fora a cidade imensa cinza, plácida, branca, poderosa... dentro, as sombras, as velas, e a branca face de uma virgem morta. Confusão e pânico. Fobia.

Na saudade, a prova do crime tornou-se evidente, difuso na mente, a luz e as trevas nas copas das árvores do Bom Fim em Porta Alegre, a sua infância caleidoscópio de luz terra e sangue. O ouro em sua frente, o altar, tanto sangue, tanta dor e ódio, na pobre miserável História humana. Tudo isso para quê? E por que este miserável deus? Carnívoro não poupa ninguém, nos rouba o tempo, a carne e todos os sonhos.

Tudo tão urgente. A vida lá fora, sob a garoa, passa rápida indiferente e entre dois vazios o presente. A multidão se choca e triste, cega, se ignora.

Mil países dentro de um país se basculam e se ignoram. Todos os Homens com sua vidas a serem vividas, sem escolha, abraçam e também repelem este estranho e maldito paradoxo urbano que lhes devora o coração e chama-se Solidão.

Estava cansado, chega de Solidão e dor. Sem querer lembrou: “Sobre a sombra de um Mundo errado,... murmuraste um protesto tímido”. Pessoa, tão genial. Sentiu vontade de gritar este mundo errado, acordar deste pesadelo fosco e tosco. Sufocou, sufocou e sufocou...

Saiu da igreja, tão humana e tão pouco sagrada. A cidade lá fora continuava cinza. Não se surpreendeu. Não havia mais chuva, só as poças e o ar fresco que aliviou seus pulmões deprimidos. Tomou dois comprimidos e pensou escrever uma carta. Depois desistiu, após o adeus, lembrou, foram muitas cartas que pareciam imunes ao tempo, mas logo o tempo tornou-se mais tempo e logo muito tempo e as cartas rarearam, mais e mais, até que se tornou dolorido manter aquela amizade distante. Como uma foto antiga, amarelou, perdeu a cor, se não fossem as malditas fotos, os rostos teriam se perdido no tempo.

Sentou-se em uma praça, deveria ter ficado em casa, esperando o telefone que não tocaria, a carta que não chegaria, a visita que não viria...

Não, não... Acendeu um cigarro, preciso parar, maldito vicio, pensou. Opressor Domingo, perfeita maldição dos solitários. Uma criança brincando com sua própria sombra entre as poças d’água o distraiu, talvez mais um anjo perdido. Como a sua beleza juvenil me atormenta, me faz sofrer, em sua volúpia ardente de viver a vida. Assim, sem teorizar as coisas apenas viver sem se perguntar, porque afinal, pensou, nunca encontraremos as resposta. A vida não tem razão de ser, talvez tudo seja apenas produto de um glorioso maldito acaso. E talvez a única razão de ser seja apenas isto: nada. O supremo nada, no fundo seria a única meta do homem, apenas no supremo advento da morte atingiria seu significado e razão de ser. A morte, este estranho enigma, talvez seria daí nossa força tola para continuar a existir. Ou talvez o nada seja melhor.

Lembrou-se de uma tarde de outono, o vento e os cabelos emaranhados, as folhas das árvores vermelhas, douradas – Quem os via, via apenas dois jovens amigos, os olhos brilhantes, os cafés e os cigarros, todo prazer, o céu aberto sobre suas cabeças e o futuro tão incerto. Naquela tarde eles tinham visto um filme, um filme francês e conversavam animadamente no Café Central – algo assim comum a seus gostos habituais. Foi então, neste dia, que tudo mudou, pois súbito era tudo tão profundo e aquele olhar olhos nos olhos e uma certo constrangimento. Tudo o céu, os homens, a vida, tudo lhes parecia tão estranho. Irônico. Não conseguiu lembrar-se exatamente como todo resto aconteceu; aquela ironia os aproximava e os separava. Parecia, não sabia ao certo que algo tina acontecido depois; uma noite, muitos copos de vinho, um abraço exultante e um beijo sôfrego e depois e depois... a noite, que tolos resolveram esquecer amigos. Depois foi a separação lenta, por que a lembrança daquela noite os perseguia por dentro, perigosamente linda e medonha – o sonho não iria se realizar. Não, não podiam,...havia tanto medo. E então. O adeus triunfantemente real, físico, e afinal: - Agente não pode lutar... E aquela frustração, sem se completar aquela noite louca, sem desvendar no universo a imensidão daquele amor.

Fechou os olhos, quis tudo esquecer e nada mais lembrar. Sentia-se emocionado e triste. Fechou os olhos, encostou a cabeça sobre o banco e aos poucos adormeceu profundamente magoado.

Estremeceu, o gato preto na escada, os olhos verdes no escuro sobre a estrela e o vazio, riu e falou como se respondesse uma questão:

- Eu sou tudo, eu sou o nada, sou a terra e o fogo, mas não sou ego. Sou a noite e o dia, a salvação e a perdição.

- Não, não e não, você é meu pesadelo, meu vicio minha dor,...

- Não pobre raça de criaturas malditas, você é sua própria dor seu pesadelo, e seu ego sua maldição. Eu sou simplesmente um ator, sou o que você, homem, baniu de seu coração, de ti sou apenas a arte, a música e quando amas, amo junto e teus lábios são também os meus. Sou o sonho humano irracional e selvagem.

E então o caos e a escuridão engoliram tudo.

Acordou assustado: Pânico! Pânico! Pânico!

Acalmou-se aos poucos, umas mocinhas olhavam indiscretas inquisitórias: Monstras, pensou. Prontas para comentar cruéis a vida alheia. De repente teve ódio delas, de si, e do mundo. Obstante a tanta beleza e gloria, o mundo era por demais injusto - Como podem, monstras, ignorar tanta miséria e trapos. Todos os dias passam pelo mesmo mendigo sujo sem nunca o olharem. Não me venham com seus olhares comportamento pré-estabelecido, não me venham com seu moralismo hipócrita.

Tentando se aclamar levantou-se tonto, pensou, é melhor ir para casa este domingo vai de mau à pior. Agora, quase milagrosamente, o sol saia preguiçoso no canto do céu, doce e puro. Reconfortante.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Beijaço na Paulista

Por: Foto: Maurício Moraes

Ativistas beijam por direitos iguais

Beijaço na Paulista

Por direitos iguais, ativistas LGBTs se beijaram em São Paulo (Foto: Maurício Moraes)

Em defesa do casamento igualitário, ativistas de movimentos de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBTs) protestaram na esquina da avenida Paulista com a rua Augusta, zona sul de São Paulo (SP). Um beijaço foi a forma de pedir direitos iguais e que candidatos às eleições deste ano tomem posição sobre esse segmento da população.

Leia mais a respeito

Beijaço na Paulista (Foto: Maurício Moraes)
Beijaço na Paulista (Foto: Maurício Moraes)

Beijaço na Paulista (Foto: Maurício Moraes)
Beijaço na Paulista (Foto: Maurício Moraes)

Outras fotos da: Ana Pintangos:
http://www.flickr.com/photos/casamentoigualitario/
E do @Mike_Wino: http://www.flickr.com/photos/maik_wino/
Mais informações sobre o Manifesto: http://casamentoigualitario.wordpress.com/

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Artéria viva


Augusto Patrini


“Eu, que tenho uma juventude cheia de vozes,

de relâmpagos e artérias vivas,

que deitado nos meus músculos, atento a como corre

e chora o meu sangue,

a como se amontoam as minhas angústias

como mares amargos

ou como espessas pedras de desvelo,

ouço que se juntam todos os gritos

qual um bosque de estreitos corações apertados;

ouço o que dizemos ainda hoje,

tudo aquilo que ainda diremos,

na ponta dos pés, sobre os nossos graves latidos,

pela boca das árvores, pela boca da terra.

José Revueltas. Canto Irrevocable

Encolheu-se no canto, enrugado e triste, como a quem estremece os galhos de uma roseira seca. Jovem, tinha os olhos intumescidos e cheios d’água, os cabelos fora de prumo – revolta esvoaçada entre lágrimas. Cansado, tenso triste e cheio de aflição. A terra vermelha-roxa em seu nostálgico pesar – era parte da mãe que abandonara- sufocava-lhe o peito.

Por que, um dia, ao se levantar viu os homens entre tripas e fogo, mas hoje lá fora aquelas ruas rápidas esfumaçadas, vingando a terra e estilhaçando os abomináveis gritos dos trapos, fustigavam sua vida. Lembrou: “Não são sussurros, são gritos”. Tenso. Pensa e cai. Grita. Não se meche.

Está novamente, perto do sono, calmo, quimicamente calmo e feliz, pois o sangue cai pelas feridas dos quaisquer bares e quando se faz de álcool e praças não há por que ter medo da vida. “Por que o medo se o futuro é a morte?” Tatuado no braço. Mais um programa, mais vida dentro das veias, além da dor e dos gritos, para amanhã mais um dia de triste recordações e depois e depois aquelas noites sujas de tesos sexos tristes. Gostava daquilo, dos sexos desejosos e das lágrimas brancas. Dos homens entristecidos e da devoção que em sua perdição medrosa lhe ofereciam. Sua percepção distorcida sendo devastada por aquela coisa de sua vida devaneada em um momento de seco estalo. Mas sabia, ao contrário daqueles homens, que podia realmente enfrentar a vida. Sem medo. Cansado, sim, mais dois programas e nada mais. Aprumou-se e resolveu. Lá fora ouvia Elis cantarolar uma música que era a vida tocando com pena aos homens sem lar. Tinha que levantar.

Mas noutro dia era a mesma coisa, precisava comer e viver, além da putrefação das coisas queria crescer e ser mais, e por isso entregava-se ao que tinha, ganhar-levar-descobrir e se ia sempre vazio aos beijos úmidos delirantes do pavor da inexistência embriagante da lógica da vida daqueles homens que queriam um pouco da verdade-coragem que era sua. Queriam sempre lhe roubar que não sabia bem o que, era a vida, a juventude ou apenas o perigo daquilo nos rios de fumo e nas poças barrentas da vida.

Esticou as costas largas espreguiçando os músculos, pôs os olhos para fora da noite começando e mais dois programa por que depois nada mais, recomeçava – o já-mais-de-meio-dia despertar cheio de nostalgias e a luz solar impertinente, entre sombras rochas, penetrando seu pequeno quarto infinito e branco. Ou até podia chover, pois daí era pior, se afogava no cinza das nuvens, gordas e fodidas como aquela puta que conhecera na rua da esquina e levara-o bêbado como uma mãe para deitar-se em sua cama. Na sua cama de mãe, velha de fodida. Pois assim que no outro dia, tinha de estar cansado, penetrado, relaxado e livre, com vida nas veias e o dinheiro no bolso, pois a vida é como uma ferida, gangrena quem não se vira.

Agora o que precisava era de cigarro nas mãos, ou as mãos nos bolsos, calça jeans e camisa banca – era tudo que tinha – além de seu corpo forte e juvenil. Isso era, não queria mais carregar no lombo a riqueza dos velhos podres entristecidos, preferia beijar-lhe a carne velha e mostrar-lhes sádico que de seu viço na verdade nada teriam. Havia de assim dizer que a vida era mais, além da suas pelancas velhas e cinzas, era a coragem de foder com a morte lancinante e com o cotidiano simples e selvagem das ruas de lama. As vezes contava-lhes como era bom foder com a puta gorda e velha, assim mesmo de graça, pois achava bom como foder com a mãe ou com a avó. Não tinha pena, são covardes e velhos por que querem, pensava – por que se a coragem tivessem estavam hoje eternos e grandes – como só o dinheiro pode fazer. Mas isso lembrava-lhes sempre. Eram pequenos, fodidos nanicos insignificantes em suas vidinhas tediosas e burras. Bom, na verdade já não lembrava-lhes tanto assim, pois preferia dar-lhes o conforto úmido, pois alguém havia de lhes dar algo na vida maldita, a ele lhe dava o conforto a puta velha e gorda da rua da esquina sempre quando chegava bêbado de seus dezenove anos feitos de terra roxa e mel de laranjeiras, e aos velhos fodidos e tristes em seus carrões de luxo era ele que confortava bulindo em suas extremidades e feridas e lembrando-lhes quão tolas e inúteis tinham sido suas vidas. Mas apesar disto, gostava, quanto mais perto da cova mais lhe pagava o cliente, pois assim, achava graça, a vida fazia-se corajosamente de sexo e de morte. Levantou-se. Riu e saiu.