quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Como os nossos bisavós faziam

Dar mais poder policial ao Estado brasileiro, conforme vêm sugerindo novos projetos que tramitam no Legislativo, não é um avanço, mas um oportunismo obscurantista

Rodrigo Elias
18/2/2014

  • Manifestantes pulam a roleta do metrô, no Rio de Janeiro / Foto: Mídia Ninja, 2014
    Manifestantes pulam a roleta do metrô, no Rio de Janeiro / Foto: Mídia Ninja, 2014
    É compreensível que as legislações mudem ao longo do tempo. Afinal, se vivemos dentro da história, deve ser natural que as sociedades se transformem e, com elas, suas normas jurídicas – que são regulações socioculturais impostas ao conjunto ou a uma parcela dos indivíduos, a cada formação histórica, com a anuência dos grupos hegemônicos. Esta compreensão básica pode ser útil para o entendimento de realidades mais concretas e mais próximas da nossa própria vida, assim como para observar certos arcaísmos entranhados na direção do Estado brasileiro e nos veículos tradicionais de imprensa.
    As atuais tratativas do Congresso Nacional, em parceria com o Executivo federal e com alguns governos estaduais que lucram financeiramente e politicamente com o estado policial (que não sabe investigar e não consegue aplicar as leis que já existem), não são apenas o lado mais visível de uma tradição autoritária verde-e-amarela. Trata-se de atitude reacionária.
    É possível observar, ao longo da tradição escrita no ocidente, dois tipos básicos de mutação legislativa: um que podemos classificar como tradicional e outro, moderno. Estes tipos não estiveram sempre separados no tempo, e pode-se dizer mesmo que dessas duas matrizes decorrem algumas formas híbridas atualmente em vigor.

    As leis de Deus
    A forma mais tradicional procede, logicamente, de uma concepção tradicional de mundo, dentro da qual a própria origem da sociedade é atribuída à vontade divina. Esta forma tradicional é essencialmente religiosa e finalista: a trajetória da humanidade é direcionada para um objetivo transcendental a ser realizado em algum futuro, que pode ser o cumprimento da vontade de uma divindade ou a salvação de um grupo antes da consumação dos tempos.
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    Os defensores dessa matriz escatológica enxergam a realidade social como sendo idealmente homeostática, isto é, fechada, autossuficiente e imutável. O sucesso dessa matriz é relativamente comum em contextos com pouca difusão da palavra escrita, o que favorece uma percepção “presentista” do tempo, uma vez que existe uma dificuldade maior em fixar o fluxo do devir, portanto, a diferenciação entre passado e presente. Entretanto, por ser uma concepção que não dá conta da realidade (todas as sociedades se transformam, logo, são históricas), os grupos dominantes nestas sociedades precisam intervir no mundo com suas próprias mãos e fazer leis (boa parte da celeuma medieval e moderna sobre o livre-arbítrio eram tentativas de justificar o injustificável, ou seja, a intervenção humana em um mundo que já seria ordenado por uma força divina).
    Decorre desta concepção litúrgica da vida social, como se pode supor, uma postura conservadora e moralizante dos seus principais grupos de interesse, que costumam reconhecer a fonte legiferante apenas no topo da formação social (um sacerdote ou uma casta sacerdotal, um rei ou um pequeno conjunto distinto por sua ancestralidade, um centro estatal inabalável ou os seus porta-vozes).
    Além da postura exclusivista no entendimento da legitimidade jurídica, é comum que a legislação daí decorrente se divida em dois eixos básicos: a normatização dos comportamentos, tendo em vista uma observação rígida dos costumes tradicionais, e a proteção da fonte do Direito – o rei, a instituição eclesial, o Estado (não era por acaso que, ao longo do Antigo Regime, ser homossexual era tão perigoso quanto conspirar contra a coroa). Nas formações sociais inseridas nesta matriz jurisdicional tradicional, a legislação moral e de proteção às instituições de poder tende a ser abundante (seu objetivo é congelar o todo social), particularista (é direcionada a grupos específicos), emergencial (procura manter a sociedade em um trajeto transcendentalmente definido, corrigindo pontualmente os desvios) e, em geral, resultado de atos isolados de vontade (sua motivação é privada).
    Black Blocs protestam em São Paulo / Foto: Mídia Ninja
    Black Blocs protestam em São Paulo / Foto: Mídia Ninja

    Aos nossos olhos (que poderíamos, com algumas reservas, chamar de “modernos”), a legislação do Antigo Regime português – nossa realidade legislativa antiga mais próxima – pode parecer confusa, contraditória, socialmente direcionada e vingativa; o preâmbulo das leis portuguesas do período, sobre qualquer matéria, confirma o seu caráter episódico: os monarcas justificam as leis a partir da exposição de um caso específico, ou um conjunto específico de casos recortados no tempo e no espaço. Tudo isso, entretanto, faz sentido dentro de uma concepção tradicional de mundo, que concebe a lei como instrumento necessário para adequar o conjunto da sociedade a um estado social e cultural inalterado, supostamente de acordo com a vontade daquele ente metafísico que criou aquela mesma sociedade, assim como preservar o lugar de preeminência de quem legisla (o mesmo rei fazia a lei e julgava os desviantes).
    Entre os séculos XVII e XVIII, entretanto, uma concepção eminentemente laica da sociedade se desenvolveu, primeiramente entre grupos letrados privados e, posteriormente, nas fileiras das próprias formações estatais (Reinhart Koselleck descreveu este processo mais geral, a expansão de uma nova racionalidade laica, de maneira bastante concisa em Crítica e crise, de 1959). Este processo, por diversos motivos (lembremos que os principais teóricos do Direito Natural eram protestantes), não se desenvolveu ao mesmo tempo em todos os estados ocidentais, mas foi especialmente visível na Inglaterra (onde assumiu feições arquetípicas), na França e no norte da Europa, especialmente nos Países Baixos.
    Ao longo deste período, vê-se uma paulatina reconfiguração do padrão das interações interindividuais na esfera pública, ao mesmo tempo em que se observa uma inversão cosmológica, processo identificado por Max Weber e discutido de forma profunda por Marcel Gauchet. Nessa inversão, a entidade metafísica que rege a ordem do mundo (Deus) é deslocada para o interior das consciências individuais, passando a ocupar unicamente o espaço privado (o indivíduo ou a congregação), deixando o mundo natural e a esfera pública livres para a intervenção direta do homem, intervenção que deve ser revertida no conhecimento do real e no benefício dos homens nesse mesmo mundo tangível – a sexta das Cartas inglesas de Voltaire, de 1734, chamada “Sobre os presbiterianos”, dá, ao tratar da Bolsa de Londres, uma lúcida mostra dessa transformação cultural. Assim, ciência e política aparecem como campos de ação autossuficientes ao longo da Época Moderna, e o campo do Direito, logicamente, beberá desta nova percepção do mundo – Maquiavel, Hobbes, Galileu, Grócio, Newton, Puffendorf, Hume, Montesquieu e Condorcet são eventos em um contexto amplo no qual se consolida uma nova cosmogonia, que pode, inclusive, quando se trata de ordenar juridicamente a vida dos homens, prescindir de Deus (formulação hipotética feita pelo holandês Hugo Grócio em 1625).

    Vargas, o pai das nossas avós
    Vargas, o pai das nossas avós
    O Direito moderno
    É neste contexto, portanto, que vemos emergir um novo padrão jurisdicional do ocidente. As leis não são mais formas de adequar o mundo aos desígnios do Criador ou vingança de um deus punitivo, mas instrumentos emanados da sociedade para a proteção da própria sociedade e para a garantia daquilo que seus membros ativos entendiam por felicidade (isto estará explicitamente formulado nos documentos fundadores dos Estados Unidos, a partir de 1776, mas já frequentava a legislação inglesa do século anterior). Dentro desta concepção moderna de sociedade, as leis devem ser concebidas como atos racionais de regulamentação da vida social e devem obedecer ao princípio da razoabilidade imanente tanto no processo de sua criação (não podem mais ser atos episódicos de vontade socialmente dirigida) quando na sua finalidade (não devem mais ter o caráter de cumprimento de um sentido transcendental ou religioso da trajetória humana). Em outros termos: leis não devem ser fruto de comoção, não devem ter finalidade moralizante e não podem ser resultado exclusivo da vontade de um grupo privilegiado.
    Ao longo do século XIX, os desdobramentos desta concepção propriamente humanizada da existência social (a sociedade – logo, o Estado – existe por vontade dos homens e para realizar, nesta vida, a felicidade dos próprios homens enquanto seres finitos) acabou se impondo, ao menos enquanto forma de estruturação dos aparatos estatais, sob forma do fenômeno constitucional, em outras regiões  – inclusive naquelas tradicionalmente apegadas a uma concepção radicalmente metafísica (cristã) da sociedade. Essas áreas precisavam se incorporar, por exigências econômicas mas também jurídicas (e, assim, ideológicas, diria Marx), a um sistema racionalizado dirigido por estados no qual este processo já havia se verificado. É justamente neste momento que vemos, por exemplo, o surgimento das constituições ibéricas – como a espanhola, a portuguesa e a brasileira. Estes estados, que agora também precisavam se justificar internamente perante parcelas letradas capazes de discutir a existência social em termos não religiosos, precisaram adequar seus processos legislativos (a criação de leis) às novas normas reconhecíveis por uma elite letrada situada fora do âmbito do Estado (basta lembrar que a imprensa teve um alcance explosivo, progressivo e irreversível a partir de 1750, tornando os aparatos de censura virtualmente inócuos na virada do século).
    Entretanto, uma nova mentalidade não surge por decreto, e é precisamente aí que vemos surgir as formas híbridas. Os desenhos jurídicos que sustentam os estados criados à força nas franjas do mundo constitucional (ou propriamente político, em um sentido nosso contemporâneo) carregam em suas tintas a herança de uma visão tradicional, bem como funcionam para a simples legitimação (externa e interna) de uma concepção tradicional da função do Estado e, portanto, da manutenção do antigo “espírito das leis”.

    D. Pedro I, monarca que outorgou constituições no Brasil (1824) e em Portugal (1826)
    D. Pedro I, monarca que outorgou constituições no Brasil (1824) e em Portugal (1826)
    Trajetória do Estado constitucional
    Assim, vimos o Estado constitucional brasileiro surgir, católico, em 1824, com uma legislação outorgada por um imperador e com o dispositivo do Poder Moderador; assistimos a uma mudança constitucional em 1891, mas isso não impediu o uso discricionário do aparato de força estatal contra as dissidências ideológicas no momento imediatamente posterior (os catarinenses devem saber muito bem disso); o Estado Novo, testemunhamos, também teve a sua Constituição, mas nasceu com um oportunista Plano Cohen e concebeu a sociedade como uma família a ser dirigida por um pai dos pobres; a ditadura que nos é mais próxima, da qual lembramos, iniciada em 1964 com o apoio da Igreja e das nossas avós, também não desprezou a legitimação constitucional, e as maiores atrocidades contra os opositores do regime conviviam com uma aparência de normalidade jurídica, cuja expressão maior são os Atos Institucionais; escrevemos uma nova Carta em 1988, dita “Cidadã”, prolixa e até agora muito distante de um cumprimento muito básico, protetora, entretanto, no que diz respeito às regulações econômicas, de um grupo bastante específico (a taxação sobre as grandes fortunas está lá, mas nunca foi regulamentada); com esta mais nova Constituição convive o estatuto da Medida Provisória, usada ao gosto da prática legislativa tradicional, resguardando o Estado e atendendo algumas confrarias; na Cidadã também temos, entre outros artigos que se assemelham aos mais antigos regulamentos morais, a definição do que o Estado entende por casamento – é claro, uma definição heteronormativa, a união entre um homem e uma mulher, como manda Deus; a grande pérola, entretanto, é o artigo 148, que estabelece o empréstimo compulsório – a medida tomada por Fernando Collor em 1990, com o confisco das cadernetas de poupança, estava garantida pela Carta de 1988, e o instrumento ainda está lá.
    A presença de arcaísmos autoritários em estruturas modernas e laicas de Estado não é, obviamente, uma especificidade brasileira – os Estados Unidos, nos últimos anos, têm dado mostras do mais genuíno arbítrio jurídico em favor de alguns grupos e dos controladores do Estado, o que podemos ver do PATRIOT Act republicano (que, entre outras coisas, normaliza a tortura de suspeitos de terrorismo) às leis antiterrorismo assinadas na atual gestão democrata (entre elas, a possibilidade de prender um suspeito por tempo indeterminado sem julgamento). Entretanto, isso ocorre em meio a uma curva descendente do interesse da população americana por assuntos que envolvem a coisa pública, vácuo no qual aquele Estado e grupos de interesse a ele ligados passam a ocupar. Nosso caso, entretanto, é mais trágico.
    Além de obedecer a uma concepção de mundo que vem caindo em desuso em sociedades que aprenderam a ser capitalistas desde o século XVII, a criminalização moralizante e preventiva das oposições mais radicais ao atual desenho estatal brasileiro ocorre justamente no momento em que a sociedade está aprendendo, por conta de seu maior acesso à informação, a lutar por um Estado e por um arcabouço jurídico que funcionem em benefício do conjunto da população. Proteger a dignidade humana é obrigação de todos, mas dar mais poder policial ao Estado brasileiro (com a ajuda de uma imprensa parceira, inclusive economicamente, deste Estado) na atual conjuntura não é apenas um exemplo rasteiro de oportunismo. É lançar sobre o país, mais uma vez, o manto do nosso velho conhecido obscurantismo.