segunda-feira, 30 de abril de 2012

Flor Azul



Flor azul


I

            Nunca achei que alcançaríamos um sentimento assim. No meio de todo esse barulho, ônibus, carro, buzinas, pessoas. Há tanto ruído e apesar disso estamos flutuando no meio de tudo como dois espíritos em harmonia com todo o resto, dois corpos sem matéria permeados por todos os objetos sólidos que nos perpassam sem causar ruptura alguma. Mas, então, o que é que temos? O que é esse sentimento? A flor azul. Sim, a flor azul, apertada contra meu peito enquanto caminhamos em plena Avenida Paulista no horário do rush, de mãos dadas.
            Pela primeira vez nos sentimos vivos. E você? Você consegue ouvir todo o resto? Sim, e você? Sim. E ficamos ouvindo. Caos e ordem. O caos na ordem. Nãoordem sem o caos, mas há a ordem. Há a ordem. Tem de haver. Agora tudo parece tão claro! Tão... tão... (Um grito, uma forte batida de carro em dois corpos sólidos.)

II

            Tudo o que Pedro e Paulo sabiam era que era preciso viver. Por quê? Talvez porque era o que se tinha, e nada mais. Tinham alcançado a consciência de que era preciso arrumar um modo de sobreviver, uma brecha através da qual pudessem se esgueirar furtivamente. E de que a morte era o mais sincero dos acontecimentos, pois não havia mistérios por trás dela.
            Contudo, sabiam ser impossível a ausência de interferência na harmonia do encontro de ambos. Havia sempre o ruído de fora – de modo que decidiram, assim, dar-lhe as boas-vindas também. Ouviam, enquanto caminhavam como dois recipientes cuja vedação havia se rompido para sempre, a realidade irromper violenta como uma enchente e transbordar. E embora houvesse vez ou outra tentativas – frustradas e que se tornavam cada vez menos frequentes – de um passo deles, tinham de algum modo que compassá-lo com todo o resto.
            Pois não era muito comum sentirem-se trapaceados quando, de repente, ao pegar o metrô, por exemplo, percebiam a tolice de tudo o que pensavam? Seria, então, um momento de imersão ideológica?, Paulo perguntava-se. Não sei, respondia Pedro. Talvez, ele acrescentou, não tenhamos conseguido superar a estrutura binária das coisas. O quê?, Paulo virou-se surpreso. Tinham acabado de fumar um beck antes de sair de casa. A-es-tru-tu-ra-bi-ná-ria-das-coi-sas, repetiu Pedro lentamente. (Silêncio.) De qualquer forma, é preciso viver, continuou dizendo Pedro, que tinha o hábito engraçado de às vezes puxar Paulo adiante pelas mãos, embora sozinho, Paulo sabia, ele jamais fosse.
            Mas isso era no começo. A verdade (?) agora é que tinham superado a binariedade que constrangia suas mentes e sua relação. É que já tinham sido tanta coisa! Pedro já foi um ativista do Greenpeace, do movimento gay, teve um blog muito interessante sobre a vida, foi voluntário em Moçambique, voltou para o Brasil e decidiu fazer Ciências Sociais, largou o curso, fez Filosofia, largou, e depois, bebeu, fumou, experimentou, e depois. Quanto a Paulo, já não tinha alcançado o estágio mais completo da fé? De fato, às vezes brincava de acreditar entre uma coisa e outra, e dia era budista, dia era ateu, dia era católico ou espírita ou drogado ou prostituto ou. E realmente acreditava.
            E havia a natureza. Pedro tinha o hábito de, enquanto caminhavam, ao topar com uma árvore – de repente arrancou uma folha e a fechou entre as mãos para senti-la consigo. E Paulo tinha o hábito – de repente viu-se esperando o momento em que Pedro iria, enquanto estivesse distraído, fazer cosquinha com a folha em seus ouvidos e ele se irritaria, rindo. Tinham o prazer de possuir e sentir a natureza, mas destruí-la ao mesmo tempo num só gesto.
            Pois não era preciso ser feliz também?, comentavam em silêncio e sem grandes pretensões, lembrando-se do que uma vez tinham dito a eles. Assim, quando perceberam que tudo era uma construção, que também o amor era uma construção, decidiram conscientemente construir. Pois, é claro, a construção é também a realidade. E agora até mesmo “Eu te amo” eles conseguiam dizer um pro outro.
            (À noite, deitados na cama antes de dormir, costumavam sentirem-se protegidos um com o outro na vastidão da madrugada, dos estranhos barulhos e ruídos que ouviam distantes e próximos, sem saber ao certo de onde. Nesse momento, então, eles cresciam dentro do seu pequeno quarto de pensão, cresciam além de todas as paredes e telhado e portas e janelas, além de sua casa, rua e bairro, e abarcavam toda a cidade com seus prédios, a madrugada e seus sons. Mas dormiam e não se lembravam disso no dia seguinte.)
            E então veio a flor azul. Estavam conversando distraídos, caminhando de mãos dadas, quando

III

-        Você não acha que.
-        Não sei, eu.
-        É só que.
-        Sério?
-        Por que não?
        (Silêncio. Uma ambulância abria espaço entre os carros e um mendigo sem pernas pedia esmola e um homem de terno gritava furioso no celular e duas meninas riam chupando duas casquinhas do McDonald's e fumaça de cigarro e.)
-        Você acha que chegaremos a algum lugar assim?
-        Isso importa?
-        Mas é preciso.
-        Sim.
            (Pedro e Paulo de repente pararam. Um muro coberto de flores azuis. E viram. Frágil e delicada uma delas se desprender e cair lentamente sobre a calçada.)
           
            Pedro, em lágrimas, correu para pegá-la antes que fosse dilacerada pela multidão, enquanto Paulo, tremendo, chorava sem saber o que fazer. É pra você, disse Pedro, oferecendo-a a Paulo. (Soluços.) Mas Paulo não podia aceitar. Ela é nossa, respondeu. (Soluços.) E Pedro, com delicadeza, mal tocando-a entre seus dedos grossos e rígidos, concordou. De modo que eles só podiam, inevitavelmente, compartilhá-la. Afinal, sentiram, o resultado de tudo aquilo era a flor azul, as lágrimas agora escorrendo não de tristeza, mas da emoção que tinha desabrochado da flor que tinham colhido do concreto.

IV

            Mas havia o momento. O momento e a morte. A flor azul.      

V

            Se alguém do alto de um prédio visse aqueles dois entre o turbilhão de autômatos inexoráveis, talvez os visse como dois pontinhos luminosos de mãos dadas. Mas não era bem assim – eles eram um só, entre si e entre todos. Eram o barulho e o movimento, e eram eles mesmos também. Eram sintomáticos. E um descuido tão estúpido e pequeno enquanto assim se mantinham revelou-lhes a fatalidade da contingência das coisas.
            Pedro e Paulo, enquanto caminhavam pela Avenida Paulista, encontraram uma flor azul. De mãos dadas, flutuavam juntos sem se darem conta de que o sinal estava fechado para eles. Atravessaram a rua e foram atropelados por um ônibus. Ambos sofreram o choque da batida calados, mas. Não.
Diz...
            a flor azul, ela
                                                                                                                      Estamos morrendo...
            apesar do sangue e da dor que eles sentiam
Agonizamos no asfalto, mas...
            como continuar, como seguir em frente, quando
                                                               É preciso...
            a flor azul, ela
Diz...
            mas dói
A dor é inevitável...
            quando... não... há... saída?
A flor azul...
            ainda a apertamos firme contra nosso peito ensanguentado.



terça-feira, 3 de abril de 2012

O consolo da religião cristã


Tudo que a humanidade sofreu com as guerras, com a pobreza, com a pestilência, com a fome, com o fogo e com o dilúvio, todo o pavor e toda a dor de todas as doenças e de todas as mortes — tudo isso se reduz a nada quando posto lado a lado com as agonias que se destinam às almas perdidas. Este é o consolo da religião cristã. Esta é a justiça de Deus — a misericórdia de Cristo. Este dogma aterrorizante, esta mentira infinita: foi isto que me tornou um implacável inimigo do cristianismo. A verdade é que a crença na danação eterna tem sido o verdadeiro perseguidor. Fundou a Inquisição, forjou as correntes e construiu instrumentos de tortura. Obscureceu a vida de muitos milhões. Tornou o berço tão terrível quanto o caixão. Escravizou nações e derramou o sangue de incontáveis milhares. Sacrificou os melhores, os mais sábios, os mais bravos. Subverteu a noção de justiça, derriscou a compaixão dos corações, transformou homens em demônios e baniu a razão dos cérebros. Como uma serpente peçonhenta, rasteja, sussurra e se insinua em toda crença ortodoxa. Transforma o homem numa eterna vítima e Deus num eterno demônio. É o horror infinito. Cada igreja em que se ensina esta idéia é uma maldição pública. Todo pregador que a difunde é um inimigo da humanidade. Em vão se procuraria uma selvageria mais ignóbil que este dogma cristão. Representa a maldade, o ódio e a vingança sem fim. Nada poderia tornar o inferno pior, exceto a presença de seu criador, Deus. Enquanto estiver vivo, enquanto estiver respirando, negarei esta mentira infinita com toda minha força, a odiarei com cada gota de meu sangue.

— Robert G. Ingersoll

A bondade divina


Se um Deus bondoso e infinitamente poderoso governa este mundo, como podemos justificar os ciclones, os terremotos, a pestilência e a fome? Como podemos justificar o câncer, os micróbios, a difteria e milhares de outras doenças que atacam durante a infância? Como podemos justificar as bestas selvagens que devoram seres humanos e as serpentes cujas mordidas são letais? Como podemos justificar um mundo onde a vida alimenta-se da vida? Será que os bicos, garras, dentes e presas foram inventados e produzidos pela infinita misericórdia? A bondade infinita deu asas às águias para que suas presas fugazes pudessem ser arrebatadas? A bondade infinita criou os animais de rapina com a intenção de que eles devorassem os fracos e os desamparados? A bondade infinita criou as inumeráveis criaturas inúteis que se reproduzem dentro de outros seres e se alimentam de sua carne? A sabedoria infinita produziu intencionalmente os seres microscópicos que se alimentam do nervo óptico? Pense na ideia de cegar um homem para satisfazer o apetite de um micróbio! Pense na vida alimentando-se da própria vida! Pense nas vítimas! Pense no Niágara de sangue derramando-se no precipício da crueldade!
— Robert G. Ingersoll