sábado, 31 de outubro de 2009

Poema V


Poema V

Hilda Hilst

A Federico García Lorca


Companheiro, morto desassombrado, rosácea ensolarada
quem senão eu, te cantará primeiro. Quem senão eu
pontilhada de chagas, eu que tanto te amei, eu
que bebi na tua boca a fúria de umas águas
eu, que mastiguei tuas conquistas e que depois chorei
porque dizias: “amor de mis entrañas, viva muerte”.
Ah! Se soubesses como ficou difícil a Poesia.
Triste garganta o nosso tempo, TRISTE TRISTE.
E mais um tempo, nem será lícito ao poeta ter memória
e cantar de repente: “os arados van e vên
dende a Santiago a Belén”.


Os cardos, companheiro, a aspereza, o luto
a tua morte outra vez, a nossa morte, assim o mundo:
deglutindo a palavra cada vez e cada vez mais fundo.
Que dor de te saber tão morto. Alguns dirão:
Mas se está vivo, não vês? Está vivo! Se todos o celebram
Se tu cantas! ESTÁS MORTO. Sabes por quê?

“El passado se pone
su coraza de hierro
y tapa sus oídos
con algodón del viento.
Nunca podrá arrancársele
un secreto.”


E o futuro é de sangue, de aço, de vaidade. E vermelhos
azuis, braços e amarelos hão de gritar: morte aos poetas!
Morte a todos aqueles de lúcidas artérias, tatuados
de infância, de plexo aberto, exposto aos lobos. Irmão.
Companheiro. Que dor de te saber tão morto.


O poema acima foi publicado no livro "Poemas aos homens de nosso tempo”, Ed. Globo, São Paulo - 2003, pág. 109.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O rei burguês

O rei burguês
Conto alegre

Rubén Darío


Meu amigo! O céu está opaco, o ar frio, o dia triste. Um conto alegre... assim como para divertir as brumosas e cinzentas melancolias, eis aqui:

Havia numa cidade imensa e brilhante um rei muito poderoso, ele tinha trajes pretensiosos e ricos, escravas nuas, brancas e pretas, cavalos de longas crinas, armas novíssimas, galgos rápidos e monteiros com chifres de bronze que enchiam o vento com suas fanfarras. Era um rei poeta? Não, meu amigo: era o Rei Burguês.

Era muito afeiçoado às artes o soberano, e favorecia com grande generosidade os seus músicos, os seus fazedores de ditirambos, pintores, escultores, boticários, barbeiros e mestres de esgrima.

Quando ia à floresta,junto ao cervo ou javali ferido e sangrento, fazia com que seus professores de retórica improvisassem canções alusivas; os criados enchiam as taças do vinho de ouro que ferve, e as mulheres batiam palmas com movimentos rítmicos e galhardos. Era um rei sol, na sua Babilônia cheia de músicas, de gargalhadas e de ruídos de festim. Quando se fartava da algazarra da cidade, saia à caça aturdindo o bosque com seus tropéis; e fazia sair dos ninhos as aves assustadas, e o vozerio ecoava no recôndito mais escondido das cavernas. Os cachorros de pés elásticos iam quebrando o ervaçal na corrida, e os caçadores, inclinados sobre o pescoço dos cavalos, faziam ondular os mantos púrpuras e levavam os rostos inflamados e as cabeleiras ao vento.

O rei tinha um palácio soberbo onde acumulara riquezas e objetos de arte maravilhosos. Chegava lá por entre grupos de lírios e extensos lagos sendo saudado pelos cisnes de pescoço branco, antes do que pelos arrogantes lacaios. Bom gosto. Subia pela escada cheia de colunas de alabastro e de esmaragdita, que tinha aos lados leões de mármore como os dos tronos salomônicos. Refinamento. Além dos cisnes, tinha um grande aviário, como amante da harmonia, do arrulho, do trinado; e perto dela ia alargando seu espírito, lendo romances de M. Ohnet, os belos livros que tratam das questões gramaticais, ou críticas graciosas. Isto sim: defensor tenaz da correção acadêmica nas letras, e do modo usual nas artes; alma sublime amante da lixa e da ortografia!

Japonerias! Chinerias! Por moda e mais nada. Bem que podia se dar ao luxo de uma sala digna do gosto de um Goncourt e dos milhões de um Creso: quimeras de bronze com as goelas abertas e os rabos enroscados, em grupos fantásticos e maravilhosos; lacas de Kioto com incrustações de folhas e galhos de uma flora monstruosa, e animais de uma fauna desconhecida, borboletas de raros leques junto às paredes; peixes e galos coloridos; máscaras de gestos infernais e com olhos como se fossem vivos; alabardas de folhas antiqüíssimas e empunhaduras com dragões devorando flores de lótus; e nas conchas de ovo, túnicas de seda amarela, como tecidas com teias de aranha, semeadas de garças vermelhas e de verdes ramalhetes de arroz; e jarros, porcelanas de muitos séculos, daquelas que exibem guerreiros tártaros com uma pele que os cobre até os rins, e que levam arcos esticados e ramos de flechas.

Além disso, tinha a sala grega, cheia de mármores: deusas, musas, ninfas e sátiros; a sala dos tempos galantes, com quadros do grande Watteau e do Chardin; dois, três, quatro, quantas salas?

E Mecenas passeava por todas, com o rosto inundado de certa majestade, a barriga feliz e a coroa na cabeça, como um rei do baralho.

Um dia levaram-lhe uma rara espécie de homem perante o seu trono, onde se encontrava cercado de cortesãos, de retóricos e de mestres de equitação e de dança.

— O que é isso? — perguntou.

— Senhor, é um poeta.

O rei tinha cisnes no lago, canários, beija-flores, censotes no aviário: um poeta era algo novo e estranho.

— Deixai-o aqui.

E o poeta:

— Senhor, eu não tenho comido.

E o rei:

— Fala e comerás.

Começou:

— Senhor, há muito tempo que canto o verbo do porvir. Estendi minhas asas ao furacão; nasci no tempo do amanhecer; procuro a raça escolhida que deve esperar, com o hino na boca e a lira na mão, a saída do grande sol. Abandonei a inspiração da cidade malsã, a alcova cheia de perfumes, a musa de carne que enche a alma de pequenez e o rosto de pó-de-arroz. Quebrei a harpa lisonjeira das cordas frágeis, contra as taças de Boêmia e as jarras onde borbulha o vinho que embriaga sem dar fortaleza; joguei o manto que me fazia parecer bufo, ou mulher, e tenho me vestido de maneira selvagem e esplêndida: meu farrapo é de púrpura. Fui à floresta, onde me fiz vigoroso e farto de leite fecundo e licor de nova vida; e na beira do mar áspero, sacudindo a cabeça embaixo da forte e negra tempestade, como um anjo soberbo, ou como um semideus olímpico, ensaiei o jambo atirando ao esquecimento o madrigal.

Acarinhei a grande natureza, procurei no calor do ideal o verso que está no astro no fundo do céu, e o que está na pérola do profundo do oceano. Tentei ser pujante! Porque vem o tempo das grandes revoluções, com um Messias todo luz, todo agitação e potência, e é necessário receber seu espírito com o poema que seja arco triunfal, de estrofes de aço, de estrofes de ouro, de estrofes de amor.

Senhor, a arte não está nas frias coberturas do mármore, nem nos quadros pálidos, nem no excelente senhor Ohnet! Senhor! A arte não se veste de calças, nem fala burguês, nem coloca os pontos em todos os is. Ela é augusta, tem mantos de ouro ou de chamas, ou anda nua, e amassa a greda com febre, e pinta com luz, e é opulenta, e bate asas como as águias, ou lança farpadas como os leões. Senhor, entre um ApoIo e um ganso, prefere o ApoIo, ainda que um seja de terracota, e o outro de marfim.

Oh, a Poesia!

Muito bem! Os ritmos prostituem-se, cantam-se as pintas das mulheres, e fabricam-se xaropes poéticos. Além disso, Senhor, o sapateiro critica meus decassílabos, e o senhor professor de farmácia põe os pontos e vírgulas na minha inspiração. Senhor, e vós autorizais tudo isso!... O ideal, o ideal...

O rei interrompeu:

— Já ouvistes. O que fazer?

E um filósofo da moda:

— Se vós o permitis, senhor, ele pode ganhar a comida com uma caixa de música; podemos colocá-la no jardim, perto dos cisnes, para quando passeardes por lá.

— Sim — disse o rei, e dirigindo-se ao poeta: — Dareis voltas a uma manivela. Fechareis a boca. Fareis soar uma caixa de música que toca valsas, quadrilhas e galopas, se não preferis morrer de fome. Peça de música por pedaço de pão. Nada de geringonças, nem de ideais. Ide.

E desde aquele dia pôde-se ver, à beira do lago dos cisnes, o poeta faminto que dava voltas à manivela: tiriririn, tiriririn... envergonhado sob os olhares do grande sol! Passava o rei pelas proximidades?Tiriririn, tiriririn...! Tinha que encher o estômago? Tiriririn! Tudo em meio às gozações dos pássaros livres, que chegavam para beber o orvalho dos lírios em flor; entre o zunido das abelhas, que lhe mordiam o rosto e enchiam seus olhos de lágrimas, tiriririn...! Lágrimas amargas que rolavam por suas bochechas e caíam na terra preta!

E o inverno chegou, e o pobre sentiu frio no corpo e na alma. E seu cérebro estava como petrificado, e os grandes hinos estavam esquecidos, e o poeta da montanha coroada de águias não era senão um pobre-diabo que dava voltas à manivela, tiriririn.

E quando a neve caiu esqueceram-se dele, o rei e seus vassalos; aos pássaros deram-lhes abrigo, e a ele deixaram-no ao léu glacial que lhe mordia as carnes e lhe açoitava o rosto, tiriririn!

E numa noite em que caía do alto uma chuva branca de peninhas cristalizadas, no palácio havia um festim, e a luz dos lustres ria alegre sobre os mármores e sobre as túnicas dos mandarins das velhas porcelanas. E aplaudiam-se até a loucura os brindes do senhor professor de retórica, perplexo de dátilos, de anapestos e de pirríquios, enquanto nas taças cristalinas fervia o champanhe com seu borbulhar luminoso e fugaz. Noite de inverno, noite de festa! E o desgraçado coberto de neve, perto do lago dando voltas à manivela para esquentar-se tiriririn, tiriririn! Tremendo e paralisado, insultado pelo vento, sob a brancura implacável e gelada, na noite sombria, fazendo ressoar entre as árvores sem folhas a música louca das galopas e quadrilhas; e ficou morto, tiriririn... pensando no sol do dia seguinte que nasceria, e com ele o ideal, tiriririn... e na arte que não ia vestir calças e sim mantos de chamas, ou de ouro... Até que, no dia seguinte, acharam-no o rei e seus cortesãos, ao pobre-diabo de poeta, como beija-flor que mata o gelo, com um sorriso amargo nos lábios, e ainda com a mão na manivela.

Oh, meu amigo! O céu está opaco, o ar frio, o dia triste. Flutuam brumosas e cinzentas melancolias...

Mas como esquenta a alma uma frase, um aperto de mãos a tempo! Até breve!


O texto acima foi extraído do livro "Contos Latino-Americanos Eternos", editora Bom-Texto -
Rio de Janeiro (RJ), 2005, pág. 49, organização e tradução de Alicia Ramal. Fonte: http://www.releituras.com/rdario_menu.asp

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Amor


Amor

Clarice Lispector


Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

— O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.


Texto extraído no livro “Laços de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998, pág. 19, incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moriconi.

domingo, 18 de outubro de 2009

Carta ao Zézim

Caio Fernando Abreu


Porto, 22 de dezembro de 1979


Zézim,


cheguei hoje de tardezinha da praia, fiquei lá uns cinco dias, completamente só (ótimo!), e encontrei tUa carta. Esses dias que tô aqui, dez, e já parece um mês, não paro de pensar em você. Tou preocupado, Zézim, e quero te falar disso. Fica quietO e ouve, ou lê, você deve estar cheio de vibrações adeliopradianas e, portantO, todo atento aos pequenos mistérios. É carta longa, vai te preparando, porque eu já me preparei por aqui com uma xícara de chá Mu, almofada sob a bunda e um maço de Galaxy, a decis
ão pseudo-inteligente.

Seguinte, das poucas linhas da tua carta, 12 frases terminam com ponto de interrogação. São, portanto, perguntas. Respon
do a algumas. A solução, concordo, não está na temperança. Nunca esteve nem vai estar. Sempre achei que os dois tipos mais fascinantes de pessoas são as putas e os santos, e ambos são inteiramente destemperados, certo? Não há que abster-se: há que comer desse banquete. Zézim, ninguém te ensinará os caminhos. Ninguém me ensinará os caminhos. Ninguém nunca me ensinou caminho nenhum, nem a você, suspeito. Avanço às cegas. Não há caminhos a serem ensinados, nem aprendidos. Na verdade, não há caminhos. E lembrei duns versos dum poeta peruano (será Vallejo? não estou certo): “Caminante, no hay camino. Pero el camino se hace ai anda”.

Mais: já pensei, sim, se D
eus pifar. E pifará, pifará porque você diz ”Deus é minha última esperança". Zézim, eu te quero tanto, não me ache insuportavelmente pretensioso dizendo essas coisas, mas ocê parece cabeça-dura demais. Zézim, não há última esperança, a não ser a morte. Quem procura não acha. É preciso estar distraído e não esperando absolutamente nada. Não há nada a ser esperado. Nem desesperado. Tudo é maya / ilusão. Ou samsara / círculo vicioso.

Certo, eu li demais zen-budismo, eu fiz ioga demais, eu tenho essa coisa de ficar mexendo com a magia, eu li demais Krishnamurti, sabia? E também Allan Watts, e D. T. Suzuki, e isso freqüentem ente parece um pouco ridículo às pessoas. Mas, dessas coisas, acho que tirei pra meu gasto pessoal pelo menos uma certa tranqüilidad
e.

Você me pergunta: que que eu faço? Não faça, eu digo. Não faça nada, fazendo tUdo, acordando todo dia, passando café, arrumando a cama, dando uma volta na quadra, ouvindo um som, alimentando a Pobre. Você tá ansioso e isso é muito pouco religioso. Pasme: acho que você é muito pouco religioso. Mesmo. Você deixou de queimar fumo e foi procurar Deus. Que é isso? Tá substituindo a maconha por Jesusinho? Zézim, vou te falar um lugar-comum desprezível, agora, lá vai: você não vai encontrar ca
minho nenhum fora de você. E você sabe disso. O caminho é in, não off. Você não vai encontrá-lo em Deus nem na maconha, nem mudando para Nova York, nem.

Você quer escrever. Certo, mas você quer escrever? Ou todo mundo te cobra e você acha que tem que escrever? Sei que não é simplório assim, e tem mil coisas outras envolvidas nisso. Mas de repente você pode estar confuso porque fica todo mundo te cobrando, como é que é, e a sua obra? Cadê o romance, quedê a novela, quedê a peça teatral? DANEM-SE, demônios. Zézim, você só tem que escrever se isso vier de dentro pra fora, caso contrário não vai prestar, eu tenho certeza, você poderá enganar a alguns, mas não enganaria a si e, portanto, não preencheria esse oco. Não tem demônio nenhum se interpondo entre você e a máquina. O que tem é uma questão de honestidade básica. Essa perguntinha: você quer mesmo escrever? Isolando as cobranças, você continua querendo? Então vai, remexe fundo, como diz um poeta gaúcho, Gabriel de Britto Velho, "apaga o cigarro no peito / diz pra ti o que não gostas de ouvir / diz tudo". Isso é escrever. Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a "função social", nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te. Você não está com medo dessa entrega? Porque dói, dói, dói. É de uma solidão assustadora. A única recompensa é aquilo que Laing diz que é a única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de glória interior. Essa expressão é fundamental na minha vida.

Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de "meio doida”. Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud.

É esse tipo de criador que você quer ser? Então entregue-se e pague o preço do pato. Que, freqüentemente, é muito caro. Ou você quer fazer uma coisa bem-feitinha pra ser lançada com salgadinhos e uísque suspeito numa tarde amena na CultUra, com todo mundo conhecido fazendo a maior festa? Eu acho que não. Eu conheci / conheço muita gente assim. E não dou um tostão por eles todos. A você eu amo. Raramente me engano.

Zézim, remexa na memória, na infância, nos sonhos, nas tesões, nos fracassos, nas mágoas, nos delírios mais alucinados, nas esperanças mais descabidas, na fantasia mais desgalopada, nas vontades mais homicidas, no mais aparentemente inconfessável, nas culpas mais terríveis, nos lirismos mais idiotas, na confusão mais generalizada, no fundo do poço sem fundo do inconsciente: é lá que está o seu texto. Sobretudo, não se angustie procurando-o: ele vem até você, quando você e ele estiverem prontos. Cada um tem seus processos, você precisa entender os seus. De repente, isso que parece ser uma dificuldade enorme pode estar sendo simplesmente o processo de gestação do sub ou do inconsciente.

E ler, ler é alimento de quem escreve. Várias vezes você me disse que não conseguia mais ler. Que não gostava mais de ler. Se não gostar de ler, como vai gostar de escrever? Ou escreva então para destruir o texto, mas alimente-se. Fartamente. Depois vomite. Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, escrever é enfiar um dedo na garganta. Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda-a, transforma. Pode sair até uma flor. Mas o momento decisivo é o dedo na garganta. E eu acho — e posso estar enganado — que é isso que você não tá conseguindo fazer. Como é que é? Vai ficar com essa náusea seca a vida toda? E não fique esperando que alguém faça isso por você. Ocê sabe, na hora do porre brabo, não há nenhum dedo alheio disposto a entrar na garganta da gente.

Ou então vá fazer análise. Falo sério. Ou natação. Ou dança moderna. Ou macrobiótica radical. Qualquer coisa que te cuide da cabeça ou/ e do corpo e, ao mesmo tempo, te distraia dessa obsessão. Até que ela se resolva, no braço ou por si mesma, não importa. Só não quero te ver assim engasgado, meu amigo querido.

Pausa.

Quanto a mim, te falava desses dias na praia. Pois olha, acordava às seis, sete da manhã, ia pra praia, corria uns quatro quilômetros, fazia exercícios, lá pelas dez voltava, ia cozinhar meu arroz. Comia, descansava um pouco, depois sentava e escrevia. Ficava exausto. Fiquei exausto. Passei os dias falando sozinho, mergulhado num texto, consegui arrancá-lo. Era um farrapo que tinha me nascido em setembro, em Sampa. Aí nasceu, sem que eu planejasse. Estava pronto na minha cabeça. Chama-se Morangos mofados, vai levar uma epígrafe de Lennon & McCartney, tô aqui com a letra de Strawberry fields forever pra traduzir. Zézim, eu acho que tá tão bom. Fiquei completamente cego enquanto escrevia, a personagem (um publicitário, ex-hippie, que cisma que tem câncer na alma, ou uma lesão no cérebro provocada por excessos de drogas, em velhos carnavais, e o sintoma — real — é um persistente gosto de morangos mofados na boca) tomou o freio nos dentes e se recusou a morrer ou a enlouquecer no fim. Tem um fim lindo, positivo, alegre. Eu fiquei besta. O fim se meteu no texto e não admitiu que eu interferisse. Tão estranho. Às vezes penso que, quando escrevo, sou apenas um canal transmissor, digamos assim, entre duas coisas totalmente alheias a mim, não sei se você entende. Um canal transmissor com um certo poder, ou capacidade, seletivo, sei lá. Hoje pela manhã não fui à praia e dei o conto por concluído, já acho que na quarta versão. Mas vou deixá-lo dormir pelo menos um mês, aí releio — porque sempre posso estar enganado, e os meus olhos de agora serem incapazes de verem certas coisas.

Aí tomei notas, muitas notas, pra outras coisas. A cabeça ferve. Que bom, Zézim, que bom, a coisa não morreu, e é só isso que eu quero, vou pedir demissão de todos os empregos pela vida afora quando sentir que isso, a literatura, que é só o que tenho, estiver sendo ameaçada como estava, na Nova.

E li. Descobri que ADORO DALTON TREVISAN. Menino, fiquei dando gritos enquanto lia A faca no coração, tem uns contos incríveis, e tão absolutamente lapidados, reduzidos ao essencial cintilante, sobretudo um, chamado "Mulher em chamas". Li quase todo o Ivan Ângelo, também gosto muito, principalmente de O verdadeiro filho da puta, mas aí o conto-título começou a me dar sono e parei. Mas ele tem um texto, ah se tem. E como. Mas o melhor que li nesses dias não foi ficção. Foi um pequeno artigo de Nirlando Beirão na última IstoÉ (do dia 19 de dezembro, please, leia), chamado "O recomeço do sonho". Li várias vezes. Na primeira, chorei de pura emoção - porque ele reabilita todas as vivências que eu tive nesta década. Claro que ele fala de uma geração inteira, mas daí saquei, meu Deus, como sou típico, como sou estereótipo da minha geração. Termina com uma alegria total: reinstaurando o sonho. É lindo demais. É atrevido demais. É novo, sadio. Deu uma luz na minha cabeça, sabe quando a coisa te ilumina? Assim como se ele formulasse o que eu, confusamente, estava apenas tateando. Leia, me diga
o que acha. Eu não me segurei e escrevi uma carta a ele dizendo isso. Não sou amigo dele, só conhecido, mas acho que a gente deve dizer.

Escrevendo, eu falo pra caralho, não é?

Aqui em casa tá bom. É sempre um grande astral, não adianta eu criticar. O astral ótimo deles independe da opinião que eu possa ter a respeito, não é fantástico? A casa tá meio em obras, Nair mandou construir uma espécie de jardim de inverno nos fundos, vai ligar com a sala. Hoje estava pUta porque o Felipe não vai mais fazer vestibular: foi reprovado novamente no 3º colegial. Minha irmã Cláudia ganhou uma Caloi 10 de Natal do noivo (Jorge, lembra?), e eu me apossei dela e hoje mesmo dei voltas incríveis pelo Menino Deus
(?). Márcia tá bonita, mais adultinha, assim com um ar meio da Mila. Zaél cozinhando, hoje faz arroz com passas para o jantar.

Povos outros, nem vi. Soube que A comunidade está em cartaz ainda e tenho granas pra receber. Amanhã acho que vou lá.

Tô tão só, Zézim. Tão eu-eu-comigo, porque o meu eu com a família é meio de raspão. Tá bom assim, não tenho mais medo nenhum de nenhuma emoção ou fantasia minha, sabe como? Os dias de solidão total na praia foram principalmente sadios.

Ocê viu a Nova? Tá lá o seu Chico, tartamudeante, e uma foto muito engraçada de toda a redação — eu com cara de "não me comprometam, não tenho nada a ver com isso". Dê uma olhada. Falar nisso, Juan passou por aqui, eu tava na praia, falou com Nair por telefone, estava descendo de um ônibus e subindo noUtro. Deixou dito que volta dia três de janeiro ou fevereiro, Nair não lembra, pra ficar uns dias. Ficará? E nada acontecerá. Uma vez me disseram que eu jamais amaria dum jeito que "desse certo", caso contrário deixaria de escrever. Pode ser. Pequenas magias. Quando terminei Morangos mofados, escrevi embaixo, sem querer, "criação é coisa sagrada”. É mais ou menos o que diz o Chico no fim daquela matéria. É misterioso, sagrado, maravilhoso

Zézim, me dê notícias, muitas, e rápido. Eu não pensei que ia sentir tanta falta docê. Não sei quanto tempo ainda fico, mas vou ficando. Quero escrever mais, voltar à praia, fazer os documentos todos. Até pensei: mais adiante, quando já estivesse chegando a hora de eu voltar, você não queria vir? A gente faria o mesmo esquema de novo, voltaríamos juntos. A família te ama perdidamente, hoje pintaram até uns salseirinhos rápidos porque todo mundo queria ler a matéria do Chico ao mesmo tempo.

Let me take you down
cause I’m going to strawberry fields
nothing is real, and nothing to get hung about
strawberry fields forever
strawberry fields forever
strawberry fields forever


Isso é o que te desejo na nova década. Zézim, vamos lá. Sem últimas esperanças. Temos esperanças novinhas em folha, todos os dias. E nenhuma, fora de viver cada vez mais plenamente, mais confortáveis dentro do que a gente, sem culpa, é. Let me take you: I’m going to strawberry fields.

Me conta da Adélia.

E te cuida, por favor, te cuida bem. Qualquer poço mais escuro, disque 0512-33-41-97. Eu posso pelo menos ouvir. Não leve a mal alguma dureza dita. É porque te quero claro. Citando Arantes, pra terminar: "Eu quero te ver com saúde I sempre de bom humor I e de boa vontade".

Um beijo do

Caio

PS — Abraço pro Nello. Pra Ana Matos, e Nino também.


(¹) Bairro de Porro Alegre onde Caio morou com os pais. (N. do E.)


Caio Fernando
Loureiro de Abreu nasceu no dia 12 de setembro de 1948, em Santiago (RS). Jovem ainda mudou-se para Porto Alegre onde publicou seus primeiros contos. Cursou Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, depois Artes Dramáticas, mas abandonou ambos para dedicar-se ao trabalho jornalístico no Centro e Sul do país, em revistas como Pop, Nova, Veja e Manchete, foi editor de Leia Livros e colaborou nos jornais Correio do Povo, Zero Hora, O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo. No ano de 1968 — em plena ditadura militar — foi perseguido pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), tendo se refugiado no sítio da escritora e amiga Hilda Hilst, na periferia de Campinas (SP). Considerado um dos principais contistas do Brasil, sua ficção se desenvolveu acima dos convencionalismos de qualquer ordem, evidenciando uma temática própria, juntamente com uma linguagem fora dos padrões normais. Em 1973, querendo deixar tudo para trás, viajou para a Europa. Primeiro andou pela Espanha, transferiu-se para Estocolmo, depois Amsterdã, Londres — onde escreveu Ovelhas Negras — e Paris. Retornou a Porto Alegre em fins de 1974, sem parecer caber mais na rotina do Brasil dos militares: tinha os cabelos pintados de vermelho, usava brincos imensos nas duas orelhas e se vestia com batas de veludo cobertas de pequenos espelhos. Assim andava calmamente pela Rua da Praia, centro nervoso da capital gaúcha. Em 1983 transferiu-se para o Rio de Janeiro e em 1985 passou a residir novamente em São Paulo.

Volta à França em 1994, a convite da Casa dos Escritores Estrangeiros. Lá escreveu
Bien Loin de Marienbad. Ao saber-se portador do vírus da AIDS, em setembro de 1994, Caio Fernando Abreu retorna a Porto Alegre, onde volta a viver com seus pais. Põe-se a cuidar de roseiras, encontrando um sentido mais delicado para a vida. Foi internado no Hospital Menino Deus, onde faleceu no dia 25 de fevereiro de 1996.

Bibliografia:

- Inventário do Irremediável, contos. Prêmio Fernando Chinaglia da UBE (União Brasileira de Escritores); Rio Grande do Sul: Movimento, 1970; 2ª ed. Sulina, 1995 (com o título alterado para Inventário do Ir-remediável).

- Limite Branco, romance. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1971; 2ª ed. Salamandra, 1984; São Paulo: 3ª ed., Siciliano, 1992.

- O Ovo Apunhalado, contos. Rio Grande do Sul: Globo, 1975; Rio de Janeiro: 2ª edição, Salamandra, 1984; São Paulo: 3ª edição, Siciliano, 1992.

- Pedras de Calcutá, contos. São Paulo: Alfa-Omega, 1977; 2 ed., Cia. das Letras, 1995.

- Morangos Mofados, contos. São Paulo: Brasiliense, 1982; 9 ed. Cia. das Letras, 1995. Reeditado pela Agir - Rio, 2005.

- Triângulo das Águas, novelas. Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro para melhor livro de contos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983; São Paulo: 2 edição Siciliano, 1993.

- As Frangas, novela infanto-juvenil. Medalha Altamente Recomendável Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil. Rio de Janeiro: Globo, 1988.

- Os Dragões não Conhecem o Paraíso, contos. Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro para melhor livro de contos. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.

- A Maldição do Vale Negro, peça teatral. Prêmio Molière de Air France para dramaturgia nacional. Rio Grande do Sul: IEL/RS (Instituto Estadual do Livro), 1988.

- Onde Andará Dulce Veiga?, romance. Prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) para romance. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.

- Bien Loin de Marienbad, novela. Paris, França Arcane 17, 1994.

- Ovelhas Negras, contos. Rio Grande do Sul: 2 ed. Sulina, 1995.

- Mel & Girassóis (Antologia)

- Estranhos Estrangeiros, contos. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.

- Teatro Completo, 1997

Teatro:

- O Homem e a Mancha

- Zona Contaminada

Tradução:

- A Arte da Guerra, de Sun Tzu, 1995 (com Miriam Paglia).


A carta acima foi enviada pelo autor a seu grande amigo, o jornalista José Márcio Penido, e nela relata a criação do livro "Morangos mofados", fala de sua admiração por Clarice Lispector e Dalton Trevisan e estimula o amigo a escrever.

Extraído do livro citado, Editora Agir - Rio de Janeiro, 2005, pág. 152.


Fonte: http://www.releituras.com/caioabreu_menu.asp

sábado, 17 de outubro de 2009

Tipos de homens


Tipos de homens

H. L. Mencken


O parente


A normal antipatia do homem por seus parentes, principalmente pelos de segundo grau, é explicada pelos psicólogos de várias maneiras torturantes e improváveis. A real explicação me parece muito mais simples. reside no simples fato de que todo homem vê em seus parentes (especialmente em seus primos) uma série de grotescas caricaturas de si próprio. Eles exibem as qualidades dele deformadas para o máximo ou para o mínimo; dão-lhe a impressão de que talvez seja assim que ele próprio se mostra ao mundo, e isto é inquietante — e por isso ferem o seu amour propre e lhe provocam intenso desconforto.


O contra-parente


O homem detesta os parentes de sua mulher pela mesma razão de que não gosta de seus próprios, ou seja, porque eles lhe parecem grotescas caricaturas daquela por quem ele tem respeito e afeição, ou seja, sua mulher. De todos eles, a sogra é obviamente a mais repugnante, porque ela não apenas macaqueia sua mulher, mas também porque antecipa o que sua mulher provavelmente se tornará. Aquela visão, naturalmente, lhe provoca náuseas. Às vezes, a coisa é mais sutil. Digamos, por exemplo, que sua própria mulher lhe pareça uma caricatura de uma irmã mais jovem e bonita. Neste caso, estando atado à sua mulher, ele pode vir a detestar a irmã — como sempre se detesta uma pessoa que simboliza o fracasso e a escravidão de alguém.


O dono da verdade


O homem que se gaba de só dizer a verdade é simplesmente um homem sem nenhum respeito por ela. A verdade não é uma coisa que rola por aí, como dinheiro trocado; é algo para ser acalentada, acumulada e desembolsada apenas quando absolutamente necessário. O menor átomo da verdade representa a amarga labuta e agonia de algum homem; para cada pilha dela, há o túmulo de um bravo dono da verdade sobre algumas cinzas solitárias e uma alma fritando no Inferno.


O romântico


Há uma variedade enorme de homens cujo olho inevitavelmente exagera o que vê, cujo ouvido ouve mais do que a orquestra toca e cuja imaginação duplica ou triplica as informações captadas por seus cinco sentidos. É o entusiasta, o crédulo, o romântico. É o tipo do sujeito que, se fosse um bacteriologista, diria que uma mísera pulga é do tamanho de um cachorro São Bernardo, tão bela quanto a catedral de Beauvais e tão respeitável quanto um professor de Yale.


O empresário


Existe um sólido instinto que põe o empresário abaixo de todos os outros profissionais e joga-lhes às costas um fardo de inferioridade social do qual ele não consegue se livrar, mesmo na América. O próprio empresário reconhece esta suposição de inferioridade, mesmo quando protesta contra ela. É o único homem, além do verdugo e do gari, que vive se desculpando por sua ocupação, para fazer parecer, quando atinge o objetivo de seu trabalho — i. e., ter ganho uma montanha de dinheiro —, que o dinheiro não era o objetivo de seu trabalho.



O jornalista, crítico e filólogo
H. L. Mencken (Henry Louis Mencken) nasceu em Baltimore, Maryland, no dia 12 de setembro de 1880 e estudou no Baltimore Polythecnic. Tendo começado sua carreira jornalística como repórter, Mencken veio a exercer cargos editoriais em diversos jornais e revistas. Morreu em sua cidade natal na noite de 28 para 29 de janeiro de 1956.

Fonte: http://www.releituras.com/hlmencken_menu.asp

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

A saída do Capitalismo já começou



Introdução de André Gorz[1] ao Manifesto Utopia: “Mas então, disse Alice, se o mundo não tem nenhum sentido, o que nos impede de inventar um?”

Editora Paragon/Vs


Traduzido do francês por Augusto Patrini[2]


A saída do Capitalismo já começou


André Gorz


A questão da saída do capitalismo nunca deixou de ser atual. Ela está colocada em termos e com uma urgência radicalmente novos. Por seu desenvolvimento mesmo, o capitalismo atingiu um limite tanto interno como que externo, que ele é incapaz de ultrapassar, e que o torna um sistema morto vivo, que sobrevive se camuflando por subterfúgios a crise de suas categorias fundamentais: o trabalho, o mérito, e o capital.

Esta crise do sistema tem como fato marcante que a massa dos capitais acumulados não é mais capaz de se valorizar pelo crescimento da produção e pela ampliação do mercado. A produção não é mais o bastante lucrativa para poder valorizar os investimentos produtivos adicionais. Os investimentos de produtividade por meio da qual cada empresa tenta restaurar seu nível de lucro têm como efeito a liberação de formas de consumo assassinas que se traduzem, entre outros efeitos, pela redução competitiva dos efetivos, terceirização, desalocação e precarização dos empregos, a baixa das remunerações, e assim, em escala macro-econômica, a baixa do volume de trabalho produtor de mais-valia, e a baixa do poder de compra. Ora, quanto menos as empresas empregam trabalho e cada vez mais taxa de capital fixo por trabalhador é substancial, maior é a taxa de exploração, quer dizer de sobre-trabalho e sobre valorização produzida por cada trabalhador deve ser mais elevada. Há nesta elevação um limite que não pode ser indefinidamente recuada, mesmo se as empresas se transfiram para a China, para as Filipinas ou para o Sudão.

Os números atestam que este limite já foi atingido. A acumulação produtiva de capital produtivo não para de regredir. Nos Estados-Unidos, as 500 firmas do índice Standard & Poor´s dispõem, em média, de 631 bilhões de reservas liquidas, a metade dos benefícios das empresas americanas provêm de operações nos mercados financeiros. Na França, o investimento produtivo das empresas do CAC 40 não aumentam, mesmo quando seus benefícios explodem. A impossibilidade de valorizar os capitais acumulados pela produção do trabalho explica o desenvolvimento de uma economia fictícia fundada na valorização de capitais fictícios. Para evitar uma resseção que desvalorizaria o capital excedente (sobre-acumulado), os poderes financeiros habituaram-se a incitar os consumidores ao endividamento, a consumir sua renda futura, seus ganhos financeiros futuros, a alta futura de seus imóveis, enquanto que a Bolsa capitaliza primeiro o crescimento futuro, os lucros futuros das empresas, as compras futuras dos consumidores, os ganhos que fariam os cortes e as reestruturações impostas pelos LBO[3], das empresas que ainda não tenham colocado em prática a precarização, a super-exploração e a terceirização do seu pessoal.

O valor fictício (das Bolsas) dos ativos financeiros dobrou em um espaço de tempo de aproximadamente seis anos, passando de 80 000 à 160 000 bilhões de dólares (ou seja, três vezes o PIB mundial), criando para os Estados-Unidos um crescimento econômico fundado no endividamento interior e exterior, o qual cria em seus domínios uma liquidez da economia mundial e o crescimento da China, dos países vizinhos, e por efeito colateral, da Europa.

A economia real tornou-se um apêndice das bolhas financeiras. É necessário, imperativamente, um novo fluxo de capital para a bolha financeira não exploda – e uma alta continua do preço imobiliário para que não destrua-se a bolha dos certificados de investimentos imobiliários por meio da qual os bancos atraíram poupança dos indivíduos prometendo-lhes mil maravilhas – pois a explosão destas bolhas ameaçaria o sistema bancário com falências em cascata, e a economia real de uma depressão prolongada (a depressão japonesa dura quinze anos). “ Nós caminhamos na beira de um abismo”, escrevia Robert Benton. Aí está, por que, nenhum Estado ousa tomar para si o risco de se alienar ou de inquietar os poderes financeiros. Não há nada a esperar de decisivo dos Estados nacionais que, em nome do imperativo da competitividade, abdicaram passo à passo no curso dos últimos trinta anos aos seus poderes para entregá-los a um quasi-Estado supranacional que impõe leis feitas sob medida para o benefício do capital financeiro mundial, de que ele é a emanação. Estas leis, promulgadas pela OMC, OCDE, FMI impões na fase atual o “tudo-é-mercadoria”, quer dizer a privatização dos serviços públicos, o desmantelamento da proteção social, a monetarização dos magros restos das relações não comerciais. Tudo acontece como se o capital, após ter ganho a guerra que ele decretou a classe operária em meados dos anos setenta, tratasse de eliminar todas relações sociais que não sejam relações comprador/vendedor, quer dizer aquelas que não reduzem os indivíduos em seres consumidores de mercadorias e vendedores de seu trabalho ou de outra “prestação de serviço” considerada como “trabalho”, independentemente do pouco que ela seja tarifada. O “todos-somos-comerciantes”, o “tudo-é-mercadoria” como formas exclusivas de relação social, seguidas da liquidação completa da sociedade, o que Margaret Thatcher tinha anunciado como projeto. O totalitarismo do mercado se explicitou como estrategia de dominação. Desde então que a globalização do capital e dos mercados, e a ferocidade da concorrência entre capitais particulares exigiam que o estado não fosse mais o garantidor da reprodução da sociedade, mas garantidor da competitividade das empresas, suas margens de manobra em matéria de política social estando condenadas a diminuir, os custos sociais eram denunciados como estorvos a livre concorrência, e entrave para a competitividade, o financiamento publico deveria ser então aliviado pela privatização.

O “todos-somos-comerciantes” desferia ataques ao que os britânicos chamam de commons e os alemães de Gemeinwesen, quer dizer a existência de bens comuns indivisíveis, inalienáveis, inconfiscáveis, incondicionavelmente acessível a todos. Contra a a privatização dos bens comuns, os indivíduos têm a tendência em reagir com ações comuns, unidas por apenas um objetivo. O Estado tem a tendencia de impedir, e em muitos casos impedir e reprimir esta união de todos, cada vez mais rigidamente, que agora ele não possui mais margens suficientes para apaziguar as massas pauperizadas, precarizadas, despojadas de direitos adquiridos. Cada vez mais sua dominação torna-se mais precária, mais as resistências populares ameaçam de se radicalizar, e mais a repressão é acompanhada por políticas que direcionam os indivíduos, uns contra os outros e designam os bodes expiatórios sobre os quais concentrar seu ódio.

Se percebemos-se o espírito deste senário, os programas, os discursos e os conflitos que ocupam o centro da cena política parecem derisórios e deslocados em relação ao mecanismos da realidade. As promessas e os objetivos colocados como prioritários pelos governantes e pelos partidos aparecem como diversões irreais, que mascaram o fato que o capitalismo não oferece nenhuma perspectiva, se não aquela de uma degradação continua das condições de vida, do agravamento da crise, passando por degradações econômicas cada vez mais longas, com curto e fracos períodos de recuperação. Não há nenhum “melhor” a ser esperado, se julgamos o melhor segundo os critérios habituais: não haverá “desenvolvimento” sob a forma do aumento do emprego, do salário e da segurança social. Não haverá mais “crescimento” de cujos os frutos possam ser socialmente redistribuídos e utilizados para um programa de transformações sociais que transcendam os limites e a lógica do capitalismo

A esperança colocada, há quarenta anos, nas “reformas revolucionárias” que nasceram do interior do sistema sob pressão das lutas sindicais, que acabaram por transferir para a classe operária os poderes arrancados do capital, esta esperança não existe mais. A produção necessita cada vez menos de trabalho, e distribui cada vez menos poder de compra com cada vez menos ativos; elas não são mais concentradas em grandes indústrias, e nem lá mais se concentra a força de trabalho. O emprego é cada vez mais descontinuo, disperso em prestadores de serviço externo, sem contato entre eles, com um contrato comercial em vez de um contrato de trabalho. As promessas e os programas de “retorno” ao pleno emprego são miragens cuja a função é somente manter o imaginário salarial e comercial, quer dizer, a idéia que o trabalho deve necessariamente ser vendido a um empregador e os bens de subsistência comprados com o dinheiro ganho; de outra forma dito: que não há salvação fora da submissão as necessidades do consumo de mercadorias; que não há vida, não há sociedade além da sociedade da mercadoria e do trabalho mercantil, além e fora do capitalismo.

O imaginário comercial e o reino da mercadoria impedem a qualquer um imaginar a possibilidade de sair do capitalismo, e impedem conseqüentemente o “querer sair”. Também há tanto tempo que permanecemos prisioneiros do imaginário salarial e mercantil, que o anticapitalismo e a referência de uma sociedade além do capitalismo torna-se abstratamente utópica, e as lutas sociais contra as políticas do capital permaneceram lutas defensivas que, no melhor dos casos, poderão frear, mas não impedir a deterioração das condições de vida.

A “reestruturação ecológica” somente vai agravar a crise do sistema. É impossível evitar uma catástrofe climática sem romper radicalmente com os métodos e a lógica econômica que são empregados há 150 anos. Se prolongamos a tendência atual, o PIB mundial será multiplicado pelo fator 3 ou 4 no ano 2050. Ora, segundo o relatório do Conselho sobre o Clima da ONU, as emissões de CO2 deverão diminuir em 85% até esta data para limitar o reaquecimento climático em 2o C, as conseqüências serão irreversíveis, e não controláveis.

A desaceleração é então um imperativo de sobrevivência. Mas ela supõe uma outra economia, um outro estilo de vida, uma outra civilização, outras relações sociais. Em sua falta, a desaceleração corre o risco de ser imposta a força, com restrições, racionamentos, e alocações de fontes características de um socialismo de guerra. A saída do capitalismo se imporá então de uma forma ou de outra. A reprodução do sistema é assombrada ao mesmo tempo por seus limites internos e externos engendrados pela pilhagem e pela destruição de uma das duas “principais fontes de onde provêm toda riqueza”: a terra. A saída do capitalismo já começou sem que ainda se tenha desejado-a conscientemente. A questão é então somente com que forma e com que cadência ela vai acontecer.

A instauração de um socialismo de guerra, ditatorial, centralizador, tecnocrático, seria uma conclusão lógica, somos tentados a dizer “normal” - de uma civilização capitalista que na preocupação de valorizar massas crescentes de capital, procedeu ao que Marcuse chama de “dessublimação repressiva”, quer dizer a repressão das “necessidades superiores”, para criar metodicamente necessidades crescentes de consumo individual, sem se preocupar com as condições de sua satisfação. Ela é aludida desde o começo da questão que está na origem das sociedades: a questão entre a relação das necessidades e as condições que tornam sua satisfação possível: a questão é a forma como gerenciar os recursos limitados de maneira que eles sejam suficientemente duráveis para cobrir a necessidade de todos; e inversamente a procura por um acordo geral sobre o que será suficiente para cada um, de maneira que as necessidades correspondam aos recursos disponíveis.

Nós chegamos então ao ponto onde as condições não existem mais para permitir a satisfação das necessidades que o capitalismo nos deu, inventou, impôs, persuadiu a ter, para poder fazer escoar as mercadorias que ele nos ensinou a desejar. Para nos ensinar a renunciar a isto, a eco-ditadura parece a muitos ser o caminho, o mais curto. Ela seria a preferência daqueles que sustentam o capitalismo e o mercado para apenas serem capazes de criar e redistribuir as riquezas, e que preveria uma reconstituição do capitalismo sob novas bases depois das catástrofes ecológicas tenham recolocado o “medidor” no zero, provocando o anulamento das dividas, e do crédito.

Portanto uma via totalmente diferente é possível. Ela leva a uma extinção do mercado e do salariado pelo desenvolvimento da auto-produção, da disponibilização comum, da gratuidade. Encontramos os exploradores e os pesquisadores desta via nos movimentos dos softwares livres, da rede livre (freenet), da cultura livre que com licença CC (Créative Communs) torna livre ( e livre: free em inglês, ao mesmo tempo, significa acessível, utilizável por todos, e gratuito) do conjunto dos bens comuns culturais – conhecimentos, programas, textos, musicas, filmes, etc – reproduzíveis em um número ilimitado de cópias por um custo negligenciável. O passo seguinte seria logicamente a produção “livre” de toda vida social, começando-se por subtrair do capitalismo certos flancos suscetíveis de serem auto-produzidos localmente por cooperativas comunais. Este gênero de subtração da esfera mercantil é compreendida por bens culturais onde ela foi batizada de “auto-cooperating”, um exemplo clássico é a Wikipedia que está em processo de “auto-cooperar” a Enciclopédia Britânica. A extensão deste modelo aos bens materiais tornou-se cada vez mais fraca graças a baixa dos meios de produção e a difusão dos saberes técnicos requisitados para a sua utilização. A difusão de competências informáticas, que fazem parte da “cultura do cotidiano” sem terem sido ensinadas, é um exemplo entre tantos outros. A invenção dos fabbers, também chamados digital fabricators ou factories in a box – trata-se de uma espécie de ateliês flexíveis transportáveis e instaláveis em qualquer lugar – obra da auto-produção local, com possibilidades preticamente ilimitadas.

Produzir aquilo que nós consumimos e consumir aquilo que nos produzimos é a via real da saída do mercado: ela nos permitiria perguntar-nos de que realmente temos necessidade, e em que quantidade e em qual qualidade, e de redefinir pela concertação tendo em conta o meio-ambiente e as matérias primas, a norma do suficiente que a economia de mercado tenta de toda forma abolir. A auto-redução do consumo, sua auto-limitação – o self-restreint – e a possibilidade de reencontrar o poder sobre nossa forma de viver, passam por isso.

É mais provável que os melhores exemplo de praticas alternativas de ruptura com o capitalismo nos venham do sul do planeta, julgando-se a criação no Brasil nas favelas mas não somente das “novas cooperativas” e dos “pontos de cultura”. Claudio Prado, que dirige o departamento da “cultura numérica” no ministério da Cultura, declarou recentemente: “O “job” é uma espécie em via de extinção... Nós esperamos pular essa fase sem valor do século XX para passar diretamente do século XIX para o século XXI.” A auto-produção e a reciclagem de computadores, por exemplo, são sustentadas pelo governo: Trata-se de favorizar “a apreciação das tecnologias pelo usuário dentro do objetivo da transformação social”. Tão bem, que três quertos de todos os computadores produzidos no Brasil em 2004/5 foram autoproduzidos.

Setembro 2007


[1] André Gorz, nascido Gerhard Hirsch, (Viena, fevereiro de 1923 — Vosnon, 22 de setembro de 2007) foi um filósofo austro-francês, também conhecido pelo pseudônimo Michel Bosquet.

Como jornalista, ajudou a fundar em 1964 o semanário Le Nouvel Observateur. Apoiador de Sartre na versão existencialista do marxismo depois da guerra, rompeu com ele após o Maio de 68. Passou a se interessar por ecologia política e tornou-se um de seus principais teóricos. Seu tema central foi o trabalho: liberação do trabalho, justa distribuição de trabalho, trabalho alienado, etc. Ele também defendeu a Renda Básica de Garantia (ou Renda básica de cidadania), que tem no Senador Eduardo M. Suplicy seu principal defensor no Brasil.

Autor da obra "Metamorfoses do Trabalho", na qual analisa, entre outras questões, a relação do Cálculo Contábil com a Racionalidade Econômica.

André Gorz cometeu suicídio no dia 24 de Setembro de 2007, aos 84 anos, porque sua mulher, Doriane, estava acometida de doença incurável, e segundo o próprio Gorz, não seria possível para ele viver um segundo sequer nesse mundo sem a presença e a companhia de sua amada.

[2] Augusto Patrini, tradutor: apatrini@terra.com.br

(11) 79851918

[3] Um leveraged buyout (LBO), também conhecido como highly-leveraged transaction, refere-se a uma transação onde um se adquire o controle acionário de empresa e uma parcela signifcativa do pagamento é financiado através de dívida.Esta estratégia normalmente passa por criar um veículo (empresa) com relativamente pouco capital que procede à compra da empresa alvo endividando-se pelo montante da compra. De seguida, após a aquisição, o veículo e a empresa alvo são fundidos numa só empresa, pelo que na prática a empresa adquirida acaba por assumir a dívida usada para a comprar, e o investimento total dos compradores, muitas vezes firmas de Private Equity, se resume ao capital do veículo, um montante muito inferior ao custo da compra da empresa alvo; são usuais rácios de 30% equity/70% dívida, mas na prática esta distribuição pode chegar até próxima de 0% equity/100% dívida.