quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O rei burguês

O rei burguês
Conto alegre

Rubén Darío


Meu amigo! O céu está opaco, o ar frio, o dia triste. Um conto alegre... assim como para divertir as brumosas e cinzentas melancolias, eis aqui:

Havia numa cidade imensa e brilhante um rei muito poderoso, ele tinha trajes pretensiosos e ricos, escravas nuas, brancas e pretas, cavalos de longas crinas, armas novíssimas, galgos rápidos e monteiros com chifres de bronze que enchiam o vento com suas fanfarras. Era um rei poeta? Não, meu amigo: era o Rei Burguês.

Era muito afeiçoado às artes o soberano, e favorecia com grande generosidade os seus músicos, os seus fazedores de ditirambos, pintores, escultores, boticários, barbeiros e mestres de esgrima.

Quando ia à floresta,junto ao cervo ou javali ferido e sangrento, fazia com que seus professores de retórica improvisassem canções alusivas; os criados enchiam as taças do vinho de ouro que ferve, e as mulheres batiam palmas com movimentos rítmicos e galhardos. Era um rei sol, na sua Babilônia cheia de músicas, de gargalhadas e de ruídos de festim. Quando se fartava da algazarra da cidade, saia à caça aturdindo o bosque com seus tropéis; e fazia sair dos ninhos as aves assustadas, e o vozerio ecoava no recôndito mais escondido das cavernas. Os cachorros de pés elásticos iam quebrando o ervaçal na corrida, e os caçadores, inclinados sobre o pescoço dos cavalos, faziam ondular os mantos púrpuras e levavam os rostos inflamados e as cabeleiras ao vento.

O rei tinha um palácio soberbo onde acumulara riquezas e objetos de arte maravilhosos. Chegava lá por entre grupos de lírios e extensos lagos sendo saudado pelos cisnes de pescoço branco, antes do que pelos arrogantes lacaios. Bom gosto. Subia pela escada cheia de colunas de alabastro e de esmaragdita, que tinha aos lados leões de mármore como os dos tronos salomônicos. Refinamento. Além dos cisnes, tinha um grande aviário, como amante da harmonia, do arrulho, do trinado; e perto dela ia alargando seu espírito, lendo romances de M. Ohnet, os belos livros que tratam das questões gramaticais, ou críticas graciosas. Isto sim: defensor tenaz da correção acadêmica nas letras, e do modo usual nas artes; alma sublime amante da lixa e da ortografia!

Japonerias! Chinerias! Por moda e mais nada. Bem que podia se dar ao luxo de uma sala digna do gosto de um Goncourt e dos milhões de um Creso: quimeras de bronze com as goelas abertas e os rabos enroscados, em grupos fantásticos e maravilhosos; lacas de Kioto com incrustações de folhas e galhos de uma flora monstruosa, e animais de uma fauna desconhecida, borboletas de raros leques junto às paredes; peixes e galos coloridos; máscaras de gestos infernais e com olhos como se fossem vivos; alabardas de folhas antiqüíssimas e empunhaduras com dragões devorando flores de lótus; e nas conchas de ovo, túnicas de seda amarela, como tecidas com teias de aranha, semeadas de garças vermelhas e de verdes ramalhetes de arroz; e jarros, porcelanas de muitos séculos, daquelas que exibem guerreiros tártaros com uma pele que os cobre até os rins, e que levam arcos esticados e ramos de flechas.

Além disso, tinha a sala grega, cheia de mármores: deusas, musas, ninfas e sátiros; a sala dos tempos galantes, com quadros do grande Watteau e do Chardin; dois, três, quatro, quantas salas?

E Mecenas passeava por todas, com o rosto inundado de certa majestade, a barriga feliz e a coroa na cabeça, como um rei do baralho.

Um dia levaram-lhe uma rara espécie de homem perante o seu trono, onde se encontrava cercado de cortesãos, de retóricos e de mestres de equitação e de dança.

— O que é isso? — perguntou.

— Senhor, é um poeta.

O rei tinha cisnes no lago, canários, beija-flores, censotes no aviário: um poeta era algo novo e estranho.

— Deixai-o aqui.

E o poeta:

— Senhor, eu não tenho comido.

E o rei:

— Fala e comerás.

Começou:

— Senhor, há muito tempo que canto o verbo do porvir. Estendi minhas asas ao furacão; nasci no tempo do amanhecer; procuro a raça escolhida que deve esperar, com o hino na boca e a lira na mão, a saída do grande sol. Abandonei a inspiração da cidade malsã, a alcova cheia de perfumes, a musa de carne que enche a alma de pequenez e o rosto de pó-de-arroz. Quebrei a harpa lisonjeira das cordas frágeis, contra as taças de Boêmia e as jarras onde borbulha o vinho que embriaga sem dar fortaleza; joguei o manto que me fazia parecer bufo, ou mulher, e tenho me vestido de maneira selvagem e esplêndida: meu farrapo é de púrpura. Fui à floresta, onde me fiz vigoroso e farto de leite fecundo e licor de nova vida; e na beira do mar áspero, sacudindo a cabeça embaixo da forte e negra tempestade, como um anjo soberbo, ou como um semideus olímpico, ensaiei o jambo atirando ao esquecimento o madrigal.

Acarinhei a grande natureza, procurei no calor do ideal o verso que está no astro no fundo do céu, e o que está na pérola do profundo do oceano. Tentei ser pujante! Porque vem o tempo das grandes revoluções, com um Messias todo luz, todo agitação e potência, e é necessário receber seu espírito com o poema que seja arco triunfal, de estrofes de aço, de estrofes de ouro, de estrofes de amor.

Senhor, a arte não está nas frias coberturas do mármore, nem nos quadros pálidos, nem no excelente senhor Ohnet! Senhor! A arte não se veste de calças, nem fala burguês, nem coloca os pontos em todos os is. Ela é augusta, tem mantos de ouro ou de chamas, ou anda nua, e amassa a greda com febre, e pinta com luz, e é opulenta, e bate asas como as águias, ou lança farpadas como os leões. Senhor, entre um ApoIo e um ganso, prefere o ApoIo, ainda que um seja de terracota, e o outro de marfim.

Oh, a Poesia!

Muito bem! Os ritmos prostituem-se, cantam-se as pintas das mulheres, e fabricam-se xaropes poéticos. Além disso, Senhor, o sapateiro critica meus decassílabos, e o senhor professor de farmácia põe os pontos e vírgulas na minha inspiração. Senhor, e vós autorizais tudo isso!... O ideal, o ideal...

O rei interrompeu:

— Já ouvistes. O que fazer?

E um filósofo da moda:

— Se vós o permitis, senhor, ele pode ganhar a comida com uma caixa de música; podemos colocá-la no jardim, perto dos cisnes, para quando passeardes por lá.

— Sim — disse o rei, e dirigindo-se ao poeta: — Dareis voltas a uma manivela. Fechareis a boca. Fareis soar uma caixa de música que toca valsas, quadrilhas e galopas, se não preferis morrer de fome. Peça de música por pedaço de pão. Nada de geringonças, nem de ideais. Ide.

E desde aquele dia pôde-se ver, à beira do lago dos cisnes, o poeta faminto que dava voltas à manivela: tiriririn, tiriririn... envergonhado sob os olhares do grande sol! Passava o rei pelas proximidades?Tiriririn, tiriririn...! Tinha que encher o estômago? Tiriririn! Tudo em meio às gozações dos pássaros livres, que chegavam para beber o orvalho dos lírios em flor; entre o zunido das abelhas, que lhe mordiam o rosto e enchiam seus olhos de lágrimas, tiriririn...! Lágrimas amargas que rolavam por suas bochechas e caíam na terra preta!

E o inverno chegou, e o pobre sentiu frio no corpo e na alma. E seu cérebro estava como petrificado, e os grandes hinos estavam esquecidos, e o poeta da montanha coroada de águias não era senão um pobre-diabo que dava voltas à manivela, tiriririn.

E quando a neve caiu esqueceram-se dele, o rei e seus vassalos; aos pássaros deram-lhes abrigo, e a ele deixaram-no ao léu glacial que lhe mordia as carnes e lhe açoitava o rosto, tiriririn!

E numa noite em que caía do alto uma chuva branca de peninhas cristalizadas, no palácio havia um festim, e a luz dos lustres ria alegre sobre os mármores e sobre as túnicas dos mandarins das velhas porcelanas. E aplaudiam-se até a loucura os brindes do senhor professor de retórica, perplexo de dátilos, de anapestos e de pirríquios, enquanto nas taças cristalinas fervia o champanhe com seu borbulhar luminoso e fugaz. Noite de inverno, noite de festa! E o desgraçado coberto de neve, perto do lago dando voltas à manivela para esquentar-se tiriririn, tiriririn! Tremendo e paralisado, insultado pelo vento, sob a brancura implacável e gelada, na noite sombria, fazendo ressoar entre as árvores sem folhas a música louca das galopas e quadrilhas; e ficou morto, tiriririn... pensando no sol do dia seguinte que nasceria, e com ele o ideal, tiriririn... e na arte que não ia vestir calças e sim mantos de chamas, ou de ouro... Até que, no dia seguinte, acharam-no o rei e seus cortesãos, ao pobre-diabo de poeta, como beija-flor que mata o gelo, com um sorriso amargo nos lábios, e ainda com a mão na manivela.

Oh, meu amigo! O céu está opaco, o ar frio, o dia triste. Flutuam brumosas e cinzentas melancolias...

Mas como esquenta a alma uma frase, um aperto de mãos a tempo! Até breve!


O texto acima foi extraído do livro "Contos Latino-Americanos Eternos", editora Bom-Texto -
Rio de Janeiro (RJ), 2005, pág. 49, organização e tradução de Alicia Ramal. Fonte: http://www.releituras.com/rdario_menu.asp

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