sexta-feira, 30 de maio de 2008

Michel-Georges Micberth



Colère : « Je n’aime pas l’extrême droite» et « Je crois que la démocratie, en raison de son système indirect, n'a jamais été qu'une utopie fort dangereuse. En refusant de se donner les moyens d'être vraiment démocratique, elle nous oblige à un perpétuel balancement entre les extrêmes de gauche et de droite, pareillement détestables. En omettant de prendre en compte les épiphénomènes les plus cruels de son histoire, en utilisant négativement ses forces politiques comme tristes exutoires occasionnels, elle perpétue la barbarie et freine l'évolution intelligente des hommes. En s’embourbant dans un extrême centre (on me passera la plaisanterie) elle désespère ses citoyens et les livre en pâture à toutes les aventures rutilantes mais pernicieuses du destin ». La Lettre, Res Universalis éditeur, 1984. Michel-Georges Micberth

Darien



« Je n'aime pas les pauvres. Leur existence, qu'ils acceptent, qu'ils chérissent, me déplaît ; leur résignation me dégoûte. A tel point que c'est, je crois, l'antipathie, la répugnance qu'ils m'inspirent, qui m'a fait devenir révolutionnaire. Je voudrais voir l'abolition de la souffrance humaine afin de n'être plus obligé de contempler le repoussant spectacle qu'elle présente. Je ferais beaucoup pour cela. Je ne sais pas si j'irais jusqu'à sacrifier ma peau ; mais je sacrifierais sans hésitation celles d'un grand nombre de mes contemporains. Qu'on ne se récrie pas. La férocité est beaucoup plus rare que le dévouement. »
Georges Darien in: La Belle France

quinta-feira, 29 de maio de 2008


« tous lieux frontières où s'élabore une culture alternative, car le territoire permet de communier avec l'autre non plus en fonction d'un idéal lointain mais en référence à des valeurs vécues, au présent dans ces lieux où s'adoucit la charge tragique liée au présentéisme. Si la modernité renvoyait la question sociale aux lendemains qui devaient chanter, la sensibilité tragique s'emploie à vivre au jour le jour ces mêmes problèmes dans la dimension d'une divinisation de l'existence collective, d'une fusion naturelle et matricielle corrélative du tragique ».

Michel Maffesoli

Experiência

Toda experiência deixa sua marca, seja na pele, no corpo, ou no mundo interior – tatuagem, escarificação, ruga, cicatriz. Quando marcadas as experiências, tornam-se passando na ilusão do tempo, lembranças e memórias, como terna lembrança do que um dia foi experiência viva; sentimento pleno – alegria. Esta quem sabe seja uma forma poética de encarar as escarificações de nossa memória, aquela que entende a própria vida como obra de arte, como fenômeno e substância. Outra forma, entretanto, completamente diversa existe, são aquelas que entendem as lembranças cheias de fantasmagorias, nostalgia, pesar, ressentimento e tristeza – aquela para quem a possui a única fuga possível é a decadência e os abismos tenebrosos – possuidores do esquecimento que alivia. Salva.
Entretanto o que fazer das lembranças quando se perdeu a fé em tudo? O que são as memórias quando se é um cético radical? Apenas registros fotográficos em nosso negativo orgânico mental? Pois se existem marcas, são realidades ou alucinações? Elas são ‘passado morto’ ou ainda vivem no presente- possuindo-nos em suas reminiscências e vagas de influência. Como, nessa sentido, conviver com lembranças de algo belo e prazeroso, quando isto acabou-se – tornando-se apenas uma fotografia antiga meio sépia. Borrada. De qualquer forma, se algo já não é o que foi, será necessária uma ruptura radical com esse passado? É possível separar-se dele? Não seria mais sábio encará-lo e aceitá-lo? Por que se no fundo mesmo o que já não é, ficará marcado eternamente, no negativo orgânico mental – como algo que foi o que foi e por isso ainda é.Tudo será assim bom, belo e prazeroso de um lado, e de outro declinante e decadente. Pois que viver, não seria justamente declinar, decair? Em 3 meses, 6 anos ou 40 anos, não importa, todos cheios de lembranças pereceremos. Enfiem o passado e o futuro, realmente existem? Penso que não, não há recomeço, ressurgir – tudo isso é ilusão dos entorpecidos, para fugir das lembranças somente duas opções são realmente possíveis: a loucura (em suas variadas formas: torpor, alucinação, fé) ou a morte. Negue o que foi e que ainda é, e estará dando as costas para a vida.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Falta de Ar II


Confesso que já no título eu me vi dentro: Falta de ar. E aí, sufocado, encarcerado, esfumaçado como tenho cada vez mais se sentido aqui nesse absurdo, ou melhor, nessa cidade, comecei a ler. E também confesso que a sensação de falta (de ar, de cor, de leveza, de vigor e de vida) pelo excesso (de fumaça, de carros, sobretudo de carros!, de produtos, de pessoas, de lixo...) também só aumentou quando cada palavra me trazia ainda mais para perto do centro, do centro dessa vertigem com nome de santo, da qual tenho me preservado (ou pelo menos tentado) à distância dessa outra margem da marginal. E por isso parei. E por isso não quis. Não quis mais saber dessa sempre mesma repetição de desastres que é São Paulo, e que o seu texto (por isso mesmo, muito bom!) repetia do jeito mesmo que o faz, todos os dias, essa cidade. Parei, por já saber (ou por achar que sabia, e sabia!) o que viria na sequência, depois de dobrar um, dois, oito anos, tantas esquinas, e ver sempre o mesmo descuido, o mesmo pouco caso, , o mesmo cinza sequer melancólico, a mesma gente automática. Parei por não querer saber mais do desfecho (concedam-me esse direito depois de tanto tempo de aposta e paciência e compreensão) que se segue ao texto mais que futurista, mais que concreto, mais que pós moderno dessa metrópole. Tudo é excessivo, e meu cuidado é por decrescer. Ficar só com o que resta, que é vida, e deixar todo o aparato pra eles, aqui, encantados com o carro novo estacionado no meio da Rebouças entre 6 milhões de carros novos, velhos, iguais. Deixa pra eles o barulho das buzinas, a neura da rádio ligada informando que o trânsito de São Paulo não anda, todo dia todo dia todo dia. Deixa pra eles esse "prazer" (que nunca entendi!) de ocupar filas pra comprar o lanche e depois, engordurados por dentro, maltratados, pisados, excessivos, esvaziados, ver as vitrines, a modelo magrinha magrinha. Deixa pra eles os encontros de dez minutos, depois de 2 horas combinando pelo celular. Pra eles, o parque lotado do domingo e cercado por asfalto. Deixa que briguem essa briga dos ruídos querendo se sobrepor, das mortos com os carros, dos carros com os ônibus, dos helicópteros com - o céu. Não sou de briga. Quando entro na parada é pra lutar. E pra lutar tem que ter sabido ficar quieto, escutar... Meu negócio é o silêncio: já basta o meu caos. Então, vou nessa, vou, e é logo mais. Fica o texto lido do jeito que pude ler, nessa medida do impossível, nesses recortes e (maus)bocados, nessas idas e vindas, nesse repentino bloqueio que é mesmo como as coisas são por aqui. A alguns quilômetros, a cortina se abrindo, luz, cor, a beleza da coisa pouca. Nessa hora, fica também pra eles o cinema, todos os milhares e milhares de filmes engolidos na avidez por cultura, pra que o tempo passe, pra que a gente se divirta, pra que haja do que falar, pra que, pelo menos na tela, exista um outro lugar. Nessa hora, fica pra eles todas as peças de todos os teatros e os personagens que se fantasiam pra desaparecer (ao tentarem serem vistos) no meio da multidão. Os shows, os concertos, as os museus, as manifestações. Fica pra eles o tempo, sobretudo o tempo que eles, na ansiedade da espera, à caminho, sempre a caminho (do cinema, do teatro, dos museus, , das fantasias, dos concertos, dos shows...) não terão. Nessa hora nem sequer olho pra trás. Os quilômetros se ampliam, como os sorrisos nas caras dessa gente que vê as estrelas, e não sabe de nada. Nessa hora, quero mais é céu, tanto tempo esquecido; quero mais é chão, tanto tempo coberto; quero mais é vida, tanto tempo guardada, por não encontrar lugar. Nessa hora, São Paulo fica, e fica ainda mais nebulosa, ensombrecida; tudo fumaça !

domingo, 25 de maio de 2008

Código de Conduta de Russel




Código de Conduta de Russel[1]




1. Não tenhas certeza absoluta de nada.
2. Não consideres que valha a pena proceder escondendo evidências, pois as evidências inevitavelmente virão à luz.
3. Nunca tentes desencorajar o pensamento, pois com certeza tu terás sucesso.
4. Quando encontrares oposição, mesmo que seja de teu cônjuge ou de tuas crianças, esforça-te para superá-la pelo argumento, e não pela autoridade, pois uma vitória dependente da autoridade é irreal e ilusória.
5. Não tenhas respeito pela autoridade dos outros, pois há sempre autoridades contrárias a serem achadas.
6. Não uses o poder para suprimir opiniões que consideres perniciosas, pois as opiniões irão suprimir-te.
7. Não tenhas medo de possuir opiniões excêntricas, pois todas as opiniões hoje aceitas foram um dia consideradas excêntricas.
8. Encontres mais prazer em desacordo inteligente do que em concordância passiva, pois, se valorizas a inteligência como deverias, o primeiro será um acordo mais profundo que a segunda.
9. Sê escrupulosamente verdadeiro, mesmo que a verdade seja inconveniente, pois será mais inconveniente se tentares escondê-la.
10. Não tenhas inveja daqueles que vivem num paraíso dos tolos, pois apenas um tolo o consideraria um paraíso.




"Temer o amor é temer a vida e os que temem a vida já estão meio mortos."

"O tempo que você gosta de perder não é tempo perdido."




Bertrand_Russell
[1] The Autobiography of Bertrand Russell, 3 vols., London: George Allen & Unwin.

sábado, 24 de maio de 2008

Falta de Ar




Eu acordei sufocado, a garganta raspando, com as duas, e sempre rosas entaladas no peito. Lembrei-me de algum caminho cheio de flores antes da guerra, longe desta cidade suja e feia. Antes de nos trairmos, de sermos traídos. Agora, pensando bem, no meio deste colchão barato e lençóis encardidos, somente ficaram-me escombros. Sombras. E no horizonte essa fuligem cinza e sufocante. O que houve, às vezes eu me pergunto, não consigo entender o que queriam e o que se tornou São Paulo. Claro, eu sempre soube, de sua hipertrofia, de sua feiúra inigualável e dos muros e paredes que sempre estavam lá: excluindo, excluindo, excluindo...
Mas agora tudo se tornou diferente, parece que o tempo parou e as pessoas que sobraram devoraram-se ou fugiram para o mato. Falta-nos tudo, água, amor e ternura – mas ainda não falta gás nem petróleo, e por isso, como mágica lá no canto, além de minha janela, na frente desse sol enegrecido ainda cospem fogo e fumaça, essas usinas. Que me parecem ter tomado vida própria e funcionado sozinhas. Será? Por que nas ruas eu não vejo mais pessoas, somente lixo, ratos e carcaças de caros. Os que restaram estão trancados em paredes grossas, ou simplesmente cansaram - como o mundo deixou-se morrer. Eu me pergunto. Onde está você? Por que me abandonaste, eu que sempre te dediquei flores, rosas, violetas e amores. Ainda tenho aqui, algumas fotos puídas, de quando, antes da guerra, as pessoas ainda tinham cabelos, e mesmo assim, em algumas fotos não parecíamos satisfeitos- e hoje o que me resta é perguntar do porquê.
Eu me lembro quando o tempo começou a endoidecer, e que a água começou acabar, e que não se podia respirar esse ar, eu então dava-nos o luxo de colocar uma panela com água e canela no foco – por que ainda havia um pouco mais de água. Hoje ainda tenho gás, mas muita pouca água (250ml por dia – já me acostumei) - e o ar tornou-se menos respirável do que naqueles dias. Quando já chorávamos um sonho desfeito, nossa ternura perdida, e por que havia no ar tanto ressentimento, mesmo com o cheiro de canela, e os vislumbres de minha fuga. Sempre para sul, sem parar, pensando ainda onde havia gelo, onde ainda havia ar. Mas tudo saiu de nosso controle – quando viemos para cá avisaram que esta cidade engolia as pessoas, e as mastigava com seus dentes de aço e desilusão – mas o que nunca poderíamos imaginar é que a violência explodiria, e que por dias trancados em casa, ouviríamos apavorados gritos, tiros e pedidos de socorro. Porém sem nos mexermos estáticos em nossa solidão, em nossa incomunicabilidade. Não conseguíamos dizer nada mais. Só me lembro do vapor em teus olhos, e do medo que sentia. Eu nem sei o que sentia, sentia que tínhamos que ir, mas você queria ficar – mas até quando ficaríamos assim trancados? Precisávamos comer. Comeríamos livros? Aí as torneiras secaram, e tivemos que sair, procurar água. E nestes dias perigosos, na verdade noites, por que se saíssemos de dia, seriamos certamente mortos, víamos como havíamos perdido tudo, e que juntos estávamos sozinhos. E um dia enfim, por água, você se foi.
Eu fiquei aqui te esperando, esperando, esperando, ouvindo ainda tiros e os carros queimando – e eu nem sei o que sentia , só sei que não podia chorar, acho que não havia água no meu corpo – ou minha alma estava seca, esturricada – de tanta dor, violência e falta de amor. Foram longos meses esperando-te, mas você nunca apareceu. Sempre os mesmo sons, tiros, gritos e as usinas funcionando sem parar. Algumas vezes eu ouvia um helicóptero passando, e me perguntava quem seriam, e por que não faziam algo? Eu me perguntei tantas vezes onde estava Deus, que não queria-nos mais. Que nos abandonou ou esqueceu ou simplesmente cansou-se.
O que eu podia fazer em meu mutismo, eu nem mais sabia como viver, pois que todos os homens pareciam ter enlouquecido e que eu também era um homem, me perguntava quando eu perderia minha humanidade, quando que por água e comida eu teria que matar. Também me perguntava o que teria acontecido com você, você fugiu ou morreu? Isso eu nunca soube, mas aquele dia, chegou, e eu encharquei-me de sangue, por um punhado de farinha e uma lata de soda. E eu nem sentia mais. Todo aquele sangue, não significava mais nada. Naquele dia eu percebi que eu mataria outros, muitos, quantos fossem necessários para continuar a viver. Mas pensava: tudo isso para quê? Viver assim, só entocado? Como uma fera pronta para matar e fugir. Você nunca voltou. Hoje, pensando bem, você já tinha partido muito antes de sumir, estávamos juntos separados – mudos, compreendi que mesmo antes da guerra matávamos. Matávamos por nossa capacidade de ficarmos parados, integrados naquele jogo perigoso. Antes de tudo explodir, você lembra como pulávamos mendigos, como desviávamos das pessoas? Tudo já havia se perdido muito antes.
Pois bem, ontem cansei de te esperar, e decidi partir- arrumei a pouca água e comida que me restam, e procurei aquela velha bússola que eu tinha desde criança – a coloquei no bolso, e resolvi ir para o sul, esperando encontrar gelo, água e paz. Mas agora que junto minhas facas e o que sinto somente é uma secura estranha no peito e uma vontade de chorar. Por que sei que me perdi, sei que te perdi. Nós nos perdemos. Eles, todos eles, ganharam. Talvez eu nunca chegue lá. Mas eu tenho que ir. Desculpe-me. Se ficar mais morro, de fome, de dor ou de sede. Talvez você tenha se unido a uma destas gangues que andam quebrando tudo por aí. Talvez você tenha sido esperto, e já que talvez eu nem significava tanto assim, você escolheu viver. Mesmo no meio do lixo, da morte e da violência. Espero que não. Espero apenas que estejas morto. Pois saiba, que hoje se me encontrar no meio dos escombros que restam desta cidade-covil, eu estarei pronto a mirar-te no meio da testa – um pedaço de aço puro e frio. Sem lembrar-me o que fui, o que eras e o que fomos.

Carta em um ano solar para além do planeta terra


"Disso que me aconteceu, lembro só de fragmentos descontínuos que. Que - não há nada depois desse que dos fragmentos - descontínuos"
Caio Fernando Abreu - "Primeira Carta para Além dos Muros"




1. Ou uma carta de amor
Escrevo-lhe, esta carta João por que sei que nunca a enviarei, e você nunca poderá responde-la. Talvez eu nem esteja mais aqui. O véu é fino, e uma vez lá não se pode mais voltar. O silêncio também é um comprimido que engulo a seco. Sinto agora náuseas e quero vomitar – como naqueles dias que você, depois de exagerar na cerveja ou no gin com gelo, vomitava na beira da calçada. Mas desta vez o vomito não vem da boca do estomago. Vem do que vejo no mundo, vem de onde éramos juntos. Vejo mundo e quero pensar que.
Estou suspenso – vejo-me lá e aqui e quero vomitar. Vomitar até encontrar de novo algo que me diga assim, forte e incontrolavelmente louco: “viva”. São os “7 Seconds” em que retorno sempre. No tempo do “não sei mais o que” – e “eles querem que eu não veja mais tanta cor”. Vomito por que quero aceitar toda dor, cor e amor. Não quero negar. Você sabe: quando amo, sofro, perdidamente. Perdido entre margaridinhas vagabundas e sacos de lixo. Como um cão sujo ou um gato.
Entre “Feel It” e os “Bombons Chineses” de Mian Mian – minha cabeça gira – confuso, entre o abismo lindo e misterioso e nosso antigo (ou talvez futuro) destino simples e terno. Como já disse, não sei o que quero e nem quem sou – grito.
- Sabe as coisas simples da vida, como se ter um ofício e um lar, e tudo isso? Os planos e as idéias que as pessoas têm? Pois, eu, não sei nada – não quero e pronto. Quero mais, tolamente profundo e forte. Além disso, quero o fogo e a brasa que queima - dor, amor, perdição, fuga e sonhos toscos-bobos, cheios de espinhos e flores. Como os canteiros de rosas da tia judia de nossa rua, lembra?
Estou dividido entre o que quero ser e o que serei se for tragado pela vida – quero mais – forte – vibrar – além deste tempo todo; cheio de cores e cuspe – um arco-íris iluminado e tenso. Bocas úmidas e penas. Deuses e monstros, os sonhos e as mentiras de Franco e deliro, pois me perdi entre o tempo e a escolha. Sinto que vou pirar.
Mas vivo, continuo cheio de vícios e amores. Profundamente, sei que nasci para a margem – para o esgoto dos que pairam sobre homens e celulares – carros e gás fumegante dos canos. Penso. Tenso. Quero amar além, na sarjeta e na chuva, entre o céu estrelado de porra e margaridas livres e vadias. Você sabe do que estou falando? Sabe? Responda-me? Se souber, desculpe-me, tente esquecer, eu sou sempre “o que se perdeu” – sempre assim. “Knotchi” sempre está retornando em minha tola vida, que às vezes, parece mais lanchonete suja de beira de estrada – cheia de bichos e baratas, com aquela luz fraquinha.
Você quer saber mais? Não sei mais o que! Nem o porquê. Não aceito simplesmente “é assim”. Foda-se tudo, principalmente que tenha celulares e oxigenadas megeras – e os que tentam matar nossos sonhos. Estou cansado de trabalhar para poder vadiar – quero vadiar agora e hoje – enlouquecidamente vadio e louco, pois me perdi assim, por acaso agora, entre uma noite de tédio e uma manhã de maio. E que assim seja, que a força selvagem e pura da vida proteja todos os vadios.
Cuide-se. Não pise nas margaridinhas.

2. Disso que nos aconteceu
Ou uma carta de amor II

João, penso nisso que nos aconteceu.
Lembrei de um dia – o sol sobre um bambuzal e um riacho escorrendo, por entre pedras, um cheiro de verde no ar e sombras e luz sobre as águas.
Penso disso que nos aconteceu, das lágrimas e de algum néctar alcoólico de arroz que bebi, para suportar a dor que intuitivamente senti e – que entre os fragmentos de fogo, luz, pedras, água e abismo, confirmou que somos apenas crianças (languidos-doces-perdidos-apavorados) - se amando entre as flores da praça e com algum gengibre nos dentes – e sempre buscando.
Estávamos recortados e depois com mais esses meses de separação, fomos ao ponto exato (sinceridade para ser perdoado?!) – os dois com nosso medo e nossos sonhos e eu com aquele gosto de peixe na boca.
Tudo isso, para mim, tenho a impressão, acaba sendo parte de um sonho triste e melancólico, que existiu e morreu – (acordamos?) – e uma erupção – claro – que agora se tornou apenas uma lembrança, já meio “distante”. Pronto. Acabou. Por que somos mais e além! Mas até o além estremece e perde-se, às vezes, você sabe. Mas não vamos nos remoer. Quero apenas continuar a sentir a sinceridade de nosso existir juntos.
Por que aprendemos, aos poucos, aceitar a dor. Essa dor dolorida e triste que é estarmos vivos e prontos, aqui e agora, para amarmos e sermos felizes – mas por que não somos e nem amamos tanto – dói um pouco. Perceber entre pálpebras roxas e inchadas que somos bastante tolos e que por pressão, medo ou pavor não podemos amar como gostaríamos. Perdemo-nos nos cantos escuros da vida, sufocados por uma fumaça que vem na verdade de dentro de nós.
Mas aí “estouramos”, por aí, à toa sem saber exatamente o porquê, e choramos (eu, com um rashi na mão, comendo sushi e tomando cerveja ruim e quente – assim com arroz, algas e cevadas fermentadas; colhidas e arrancadas, como um dia também fomos do ventre de nossas mães): mas esquecemos e ponto. E então. Continuamos.
Esquecemos quem somos e o que nos tornamos – um para o outro. Por que, você sabe, não podemos amar mais de um, a multiplicidade do amor está condenada nas sombras – trata-se de uma loucura insana e pura. Socialmente, culturalmente e existencialmente não somos capazes. Mas você sabe que quero amar profundamente, sempre – não me basta os muitos “mais-ou-menos” da vida ou “vamos levando”.
Bom, dentro do riacho que eu vi, dorme um peixe escuro – feito de sombras. São lagrimas frias que escorrem,... Para dentro e no fundo onde ninguém vê ou sente – nem mesmo você ou eu. Dizem, porém que um dia o riacho transforma-se em mar e nos afoga. É o último ponto. Além de qualquer razão, temor e pavor. Somos o que fazemos de nós e fomos o que a terra quis. Entre aquele riacho, o peixe preto e o gosto de gengibre, que às vezes volta na boca – sobra aquele gosto estranho de lágrimas e fogo. E é nesse tempo-momento que sentimos a maresia mórbida que nos afunda o crânio com ferrugem e mostra ao mundo o que realmente somos. Isto é particular e único – não há nada o que eu possa fazer por você e você por mim. A responsabilidade de teus atos pertence somente a você, assim como por meus atos somente eu posso responder. A verdade não muda muita coisa. Eu não posso te perdoar – por que não há nada para ser perdoado – essas coisas simplesmente acontecem – e a culpa é de quem?
Bom, agora quero saber: decidimos estarmos juntos, não? Continuarmos e sermos juntos. Então juntos, seremos o que quisermos – se podemos nos perder – um do outro – só depende de nós.
Fiquei triste com o acontecido, mas sei que não tenho nem o direito de exigir de sua parte essa forma de amar desesperadamente e louca – isto é vaidade de minha parte. Não serei autoritário no amor. Talvez seja importante dizer que, com sua sinceridade abrupta, tive vontade de vomitar, me senti vazio e seco. Foi o momento em que tomei consciência que o sonho tosco que eu construíra para nossa vida aqui (nesta cidade suja e vadia) não poderia ser como eu queria. Mas penso agora que aquele “eu” nem está mais aí – agora o que quero – com você – é procurar um “sonho que seja nosso”, os girassóis no campo e o riso franco das manhãs ensolaradas de domingo. Por enquanto, até o dia que dure, o resto não importa.
Pense nisto: qual será nosso sonho? - os girassóis e o riso?

Aurora



« Dans la glorification du « travail », dans les infatigables discours sur la « bénédiction du travail », je vois la même arrière pensée que dans les louanges adressées aux actes impersonnels et utiles à tous :à savoir la peur de tout ce qui est individuel. Au fond, ce qu'on sent aujourd'hui, à la vue du travail – on vise toujours sous ce nom le dur labeur du matin au soir -, qu'un tel travail constitue la meilleure des polices, qu'il tient chacun en bride et s'entend à entraver puissamment le développement de la raison, des désirs, du goût de l'indépendance. Car il consume une extraordinaire quantité de force nerveuse et la soustrait à la réflexion, à la méditation, à la rêverie, aux soucis, à l'amour et à la haine, il présente constamment à la vue un but mesquin et assure des satisfactions faciles et régulières. Ainsi une société où l'on travaille dur en permanence aura davantage de sécurité : et l'on adore aujourd'hui la sécurité comme la divinité suprême. – Et puis ! épouvante ! Le « travailleur », justement, est devenu dangereux (1) ! Le monde fourmille d' « individus dangereux » ! Et derrière eux, le danger des dangers – l' individuum (2) ! [...] Êtes-vous complices de la folie actuelle des nations qui ne pensent qu'à produire le plus possible et à s'enrichir le plus possible ? Votre tâche serait de leur présenter l'addition négative : quelles énormes sommes de valeur intérieure sont gaspillées pour une fin aussi extérieure ! Mais qu'est devenue votre valeur intérieure si vous ne savez plus ce que c'est que respirer librement ? si vous n'avez même pas un minimum de maîtrise de vous-même ? »

Nietzsche, Aurores (1881), Livre III, § 173 et § 206, trad. J. Hervier, Gallimard, 1970

(1) allusion aux nombreuses grèves qui touchent le monde du travail

(2) du latin : ce qui ne peut être divisé (atome, au sens étymologique, pas physique)

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Importance de l'individuel




L'individu se perd, son souvenir s'évanouit, et pourtant il importe et à lui et aux autres que ce souvenir soit conservé. Chacun n'est lui-même qu'un individu, et ne peut non plus s'intéresser proprement qu'à l'individuel. L'universel se trouve de lui-même, s'impose, se maintient, s'accroît. Nous l'utilisons, mais nous ne l'aimons pas.
Nous n'aimons que l'individuel : de là le grand plaisir que nous prenons aux relations, aux confessions, aux mémoires, aux lettres, aux aventures de personnes mortes, ces personnes fussent-elles insignifiantes.
C'est très-mal à propos qu'on demande si un homme doit écrire sa biographie : je tiens celui qui le fait pour le plus courtois des hommes.
Si quelqu'un s'ouvre à nous, peu importe le motif qui l'engage à le faire.
Il n'est nullement nécessaire qu'on soit irréprochable, qu'on fasse les choses les plus excellentes et les plus irréprochables, mais seulement qu'il se passe quelque chose qui puisse être utile aux autres ou les amuser.
On a trouvé mauvais que Lavater se soit fait si souvent peindre, dessiner, graver sur cuivre, et qu'il ait répandu partout son portrait, mais n'est-on pas charmé, aujourd'hui que la forme de cet être extraordinaire est détruite, de savoir en somme, d'une manière certaine, quelle figure il avait, au moyen d'imitations si diverses faites en divers temps ?
On a peu s'en faut imputé à crime au bizarre Arétin d'avoir fait frapper des médailles à son effigie et d'en avoir fait hommage à ses amis et à ses protecteurs. Moi, je me félicite d'en posséder une couple dans ma collection, et d'avoir de lui sous mes yeux une image qu'il a lui-même avouée. Nous sommes en général beaucoup trop légers pour conserver comme un ensemble le souvenir individuel dans ses vrais particularités, et, d'un autre côté, beaucoup trop curieux d'apprendre les détails, surtout ceux qui rabaissent.


Importance de l'individuel
Johann Wolfgang von Goethe
Traduction par Jacques Porchat, 1861

« Neu ist die Geschichte nur in Ereignissequenzen. Aber in den Strukturen wiederholt sie sich. »




« Neu ist die Geschichte nur in Ereignissequenzen. Aber in den Strukturen wiederholt sie sich. »


« L'Histoire n'est nouvelle que dans des séquences d'événements ; mais elle se répète dans ses structures. »


"A História é apenas nova na seqüência dos eventos, mas ela se repete em suas estruturas."


Reinhart Koselleck

A Geléia da vez...



Dica do mês:
se você tem dólares, venda. O Dólar vai virar geléia.

O MITO E A REALIDADE



Entre as maiores manifestações da consciência crítica neste século, a presença de Camus é certamente uma das mais generosas. Sobretudo agora, no final do milênio, quando tantas das suas reflexões podem ser redescobertas como advertências ou “diagnósticos” de espantosa acuidade e rigor intelectual. Não há como duvidar de que o homem dos nossos dias tem tudo para abrigar conflitos ainda mais intensos - e mais devastadores, ou mais fecundos - que os de todas as outras épocas. É certo que ele contou com enormes precursores, mestres que foram ao fundo do desenvolvimento moderno de suas emoções - e suas razões - como Nietzsche, Dostoiévski, Proust, Kierkegaard, Kafka (para só ficarmos em alguns dos nomes mais caros a Camus), e chega, hoje em dia, aos desdobramentos efetivos e consistentes das revoluções de Darwin, Marx, Freud, Einstein. Mas, até mesmo por isso tudo, “os homens presentes”, n’ "a vida presente”, estão ainda mais sós e dilacerados. Há uma busca desesperada - mas persistente - de novos valores. Como toda possibilidade dos sistemas mágicos ou metafísicos se encontra pulverizada, como só insiste ou resmunga nos desvãos do medo, nos laboratórios da psicopatologia ou em sinistros desvios de igreja e dissimulação, esse homem presente só pode contar consigo mesmo, seu cérebro, seus sentidos, suas mãos, seus meios. Daí o encontro - cada vez mais freqüente - com o absurdo. E face a face com a sua condição, esse homem tem muito poucos amigos. Um deles, de extraordinária inteligência e lealdade, é Albert Camus.
Particularmente neste caso de O mito de Sísifo, livro de terrível beleza com a sua aguda apreensão do horror nas armadilhas do cotidiano, seu reforço ao inconformismo e à recusa a todas as fugas, seu empenho intransigente em valorizar e enriquecer as lutas da lucidez. Camus o escreveu no começo da Segunda Guerra Mundial. É extremamente curioso - mas de toda coerência com o seu pensamento - que ele não se detenha no problema da guerra e a rejeite radicalmente nas entrelinhas, fazendo do “homem absurdo” o último a poder aceitá-la a compactuar com as suas aberrações. Quem coloca em primeiro plano a revolta, o discernimento, a discussão da morte voluntária, a oposição às esperas e esperanças infundadas, a realidade física ou a repulsa a qualquer tipo de servidão está plasmando indiretamente a atitude do antiautoritarismo e, em conseqüência, propondo uma paz insubmissa, guiada ao mesmo tempo pela razão e pela paixão amorosa (especialmente em seus “modelos” do “homem absurdo” - quando trata de Don Juan, dos comediantes e dos conquistadores). Mesmo neste último caso, mobilizado como todo o mundo, o filósofo passa a opção pela luta e pela resistência, mas também o desprezo pela guerra e seus ingredientes: “A grandeza mudou de campo. Ela está no protesto e no sacrifício sem futuro".
Mais especificamente, Le mythe de Sisyphe (1942) - que, não vamos esquecer, o autor publicou aos vinte e nove anos - é a primeira formulação teórica da noção de absurdidade, isto é, da tomada de consciência, pelo ser humano, da falta de sentido (ou, portanto, do sentido absurdo) da sua condição. Situando a questão nos planos da sensibilidade e da inteligência, Camus trabalha com designações que muitas vezes se confundem, na base de estímulo e resposta assumidos com o mesmo nome. Assim, o “homem absurdo” é o que enfrenta lucidamente a condição - e a humanidade - absurda. Antecedido intuitiva e literariamente (como reconhece e aplaude no último ensaio do livro) pelo gênio de Franz Kafka, Camus é o primeiro a descrever objetivamente as situações e conseqüências da absurdidade, compreendendo a sua lógica e propondo a sua moral.
De lá para cá, ao mesmo tempo em que o “homem absurdo” se exprimiu em toda a sua verdade na literatura, no teatro e em outros campos ou vertentes da arte e do pensamento (de Jorge Luis Borges à dramaturgia de autores como Beckett, Ionesco, Genet, Pinter, Albee, Arrabal - e tantos escritores contemporâneos) a absurdidade do humano se estendeu, fez metástases por toda parte, prosperou. Como, nos seus rumos políticos, o autoritarismo já não anda de braçadeiras ou suásticas às claras, a humanidade absurda também adotou disfarces e novos colarinhos para as respectivas coleiras. Os esquemas burocráticos de falso paternalismo e servidão são estéreis, mas afanosa vaidade de hierarquias inteiras que superpõem andróides às voltas com obrigações e incumbências inúteis nos mostram hoje como viu longe a atividade crítica e criativa de homens em corpo inteiro como Franz Kafka (muitas vezes chamado “profeta do absurdo”) e Albert Camus - inclusive em suas obras posteriores, principalmente La peste (1947) e L’homme revolté (1951). Por todos esses motivos, a atualidade e oportunidade de O mito de Sísifo são absolutamente exemplares. Estão aqui os antídotos certos, a palavra certa para uma rara humanidade que ainda merece continuar a se distinguir dos insetos e dos ratos. Como se depreende do ensaio-título deste livro, pode até rolar a pedra até o alto da montanha, de onde ela desce de novo: desde que, nos intervalos, se mantenha e se renove a consciência do processo. A grande maioria, no entanto, já prefere naqueles momentos tão-somente rolar também de volta, ladeira abaixo. E já consegue chegar um pouco antes da pedra.
Mauro Gama

Pacifismo y Nihilismo



Por Octavio Paz
Desde el paleolítico hasta el siglo XX los hombres no han cesado de guerrear y matarse. Tal vez es imposible soñar con la abolición de la guerra sin abolir al hombre mismo. No obstante, en este fin de siglo a la sombra de las armas nucleares, es un imperativo tratar, al menos, de limitar sus devastaciones. Los europeos, en el siglo XVIII, lo consiguieron; también, en otras épocas, los chinos. Cierto, las actuales circunstancias internacionales no son propicias para una reflexión de este género. La política expansionista de la Unión Soviética y los métodos que emplea para someter a los pueblos han paralizado toda posibilidad de cambio en Occidente. Al mismo tiempo, su acción y su influencia han transformado las revueltas populares de los otros continentes en movimientos que, al triunfar, establecen dictaduras totalitarias. La disyuntiva a la que, según el pensamiento revolucionario marxista, se enfrentarían los pueblos europeos; ¿socialismo o barbarie?, ha sido desplazada y en su lugar ha aparecido otra: ¿supervivencia de las democracias o instauración mundial de esa nueva forma de explotación social y política que es el totalitarismo?
Desde hace cuarenta años los avances de Rusia han sido continuos. No es difícil percibir en su política la presencia de algunas de las virtudes que, en el pasado, dieron la supremacía a las naciones: la paciencia, la habilidad, la perseverancia. En cambio, la política de los Estados Unidos y sus aliados ha sido inestable, discontinuo, zigzagueante y, grosso modo, defensiva. Cierto, Rusia ha sufrido algunos descalabros - China, Yugoslavia- y varios tropiezos - Hungría, Checoslovaquia, Polonia, Afganistán- pero ninguno de ellos ha sido el resultado de la acción de los gobiernos de Occidente sino de querellas internas de los jefes comunistas o de rebeliones de los pueblos sometidos. Por último, en todos esos avances la violencia ha desempeñado el papel de elección que le había asignado el fundador de la doctrina: ser Ia partera de la historia. A despecho de todo esto, en los últimos años el pacifismo ha renacido en los Estados Unidos y en Europa occidental. El fenómeno es un síntoma del estado de espíritu de las sociedades de los países industriales; los principios republicanos y democráticos hicieron posible su prosperidad material y ahora esa prosperidad ha minado esos principios. Montesquieu decía: "Las repúblicas padecen por el lujo".
La actitud de los nuevos pacifistas me recuerda la de aquellos que, en el período anterior a la Segunda Guerra Mundial, pretendían "apaciguar" a Hitler. La única diferencia es que los pacifistas de entonces fueron denunciados por la Unión Soviética y por sus amigos y propagandistas como "cómplices" de Hitler, mientras que los de hoy son saludados como defensores de la libertad y enemigos del imperialismo. El pacifismo de ayer, aparte de ser una abdicación moral y política, se reveló al fin quimérico: nada "apacigua" a los agresores salvo la sumisión.
Lo mismo sucede con el pacifismo de hoy. Los clérigos y profesores que dirigen esos movimientos revelan una singular ignorancia tanto de la historia de Rusia como de la filosofía política que inspira a sus dirigentes, Para remediar lo primero les haría bien leer un escrito poco conocido de Marx, Revelations on the diplomatie history of XVIII century (1854) en el que resume la historia de Rusia en una de esas fórmulas tajantes de su predilección: "La Moscovia se ha formado y ha crecido en la escuela de la abyección que fue la terrible esclavitud de los Mongoles, Su fuerza la acumuló al convertirse en una virtuosa en el arte de la servidumbre. Una vez emancipada, la Moscovia ha continuado a desempeñar su papel de esclavo-señor... Pedro el Grande unió la habilidad política del esclavo de los mongoles a las fieras aspiraciones del señor al que Gengis Khan le había legado la empresa de la conquista del mundo. . ." Estas palabras tienen ya más de un siglo pero parecen escritas hoy.
El gobierno ruso es, por una parte, heredero de la tradición imperialista del zarismo; por la otra, su política de expansión se presenta como una empresa de liberación universal a un tiempo ideológica y militar. La Unión Soviética dice encarnar el movimiento progresivo de las fuerzas históricas en este período de la historia del mundo; además, su filosofía política afirma la función primordial de la violencia en la evolución histórica. En una y otra tradición - la imperial rusa y la marxista- leninista- la fuerza es la última ratio. Mejor dicho: la prima. Frente a una ideología que ve en la fuerza una manifestación de la razón de la historia, el pacifismo no es ni puede ser sino un idealismo, es decir, una aberración intelectual y una engañifa política. En los pacifistas se cumple la sentencia del salmista: oculos habent et non videbunt. Pero la prudencia, la más alta virtud política según los antiguos, nos muestra la vía de salud: la firmeza y la negociación paciente. Para evitar la catástrofe en su doble faz: la guerra nuclear o la capitulación, las naciones de Occidente y las pocas democracias de los otros continentes, deben ser, a la vez, fuertes y dúctiles. Ganar tiempo es ganar la paz. Así lo han comprendido los mismos comunistas italianos, que ven en la Alianza Atlántica un escudo contra el expansionismo ruso.
La reflexión sobre la guerra moderna no puede detenerse en la descripción de la invalidez intelectual de los pacifistas ni en la política de agresión del gobierno de Rusia. Por más acusadas que sean las diferencias entre las ideocracias comunistas y las democracias capitalistas (para no hablar de los regímenes híbridos de la América latina, Africa y Asia) ¿cómo ignorar que el totalitarismo ha sido la consecuencia de la historia moderna de Occidente? El totalitarismo - en sus dos formas: la comunista y la nazi- ha sido, simultáneamente, el tiro por la culata del verdadero socialismo y el resultado natural del imperialismo. El comunismo ruso - lo mismo debe decía de sus variantes en los cinco continentes- no es sino la expresión más extrema y perversa de las tendencias profundas de la civilización de Occidente desde hace dos siglos.
La crítica del expansionismo ruso desemboca no sólo en la crítica del imperialismo de las democracias capitalistas sino en la de los supuestos mismos de la modernidad. Nadie ha intentado esta crítica, salvo Nietzsche. Su diagnóstico fue justo pero no lo fueron ni sus remedios ni sus profecías. En 1887 dijo que Europa no estaba madura para el budismo, es decir, para la forma de ilusión que es la voluntad de poder. Pero en el mismo texto agrega: "el nihilismo es la forma europea del budismo: la existencia tal cual es, sin finalidad ni sentido, regresando siempre, sin fin y de manera ineludible, a la nada: el eterno retorno..." Nietzsche nos enfrenta a lo impensable. Mejor dicho, nos encierra en una tautología pues el pensamiento del eterno retorno no es sino eso: una terrible tautología. ¿Podemos romperla? Sólo si somos capaces de llevar hasta sus últimas consecuencias la crítica misma de Nietzsche.
Este período de la historia mundial, según Nietzsche, es la de la aparición de nihilismo. Su expresión más clara es la voluntad de poder. Aquí debe añadirse algo que no aparece en la descripción de Nietzsche: la voluntad de poder, a su vez, se confunde, en su origen y en sus distintas manifestaciones, con nuestra visión del tiempo. Esa visión ha sido y es polémica: Occidente concibe al tiempo no sólo como marcha sino como combate. Nuestra idea del tiempo ha asumido dos formas: una es la tradicional y popular que, desde hace más de dos siglos, ve al tiempo como progreso sin fin; otra, más insidiosa y secreta, lo concibe como eterno retorno de lo Idéntico". Es un secreto a voces que asistimos al crepúsculo de la ilusión del progreso. Los primitivos creían que el tiempo podía acabarse o, más exactamente, que se gastaba; a nosotros nos ha tocado vivir algo no menos asombroso: el desvanecimiento de la idea del tiempo que ha inspirado a toda la historia de Occidente desde el siglo XVIII. Pero soy inexacto: el tiempo del progreso no se acaba realmente: se estrella contra un muro. ¿Y el tiempo que anunció Nietzsche? Aunque él nunca formuló claramente su idea -¿visión o idea?- me parece que no debemos confundirla, como es frecuente hacerlo, con el tiempo circular de las viejas civilizaciones ni con el Gran Año de los neoplatónicos o con la cíclica conflagración en la que los estoicos veían el fin y el principio del cosmos. El "eterno retorno" de Nietzsche no es la consagración del regreso del pasado sino una subversión del presente. En esto consiste su poder de seducción: no es una reiteración de lo que ha sido, sino un descubrirnos el abismo que es nuestro fundamento. Y en esto consiste su terrible novedad.
Dije antes que el "eterno retorno" nos encierra en una tautología. Añado ahora que esa tautología adopta la forma del espejo que se refleja a si mismo: lo que es, ha sido ya; lo que ha sido, será y volverá a ser un haber sido. El ser se disgrega no en la pluralidad de sus mutaciones sino en la repetición ilusoria de sus cambios. Los cambios se resuelven en identidad y la identidad se abisma en sí misma y así se desvanece ... Decir que este momento repite a otro momento es repetir algo ya dicho. Si, al decirlo, ignoro que lo dije antes, la repetición no lo es, ese decir es una novedad absoluta y, por eso mismo, desmiente al eterno retorno: este momento es único. Pero si ya sé que dije antes que este instante repite a otro, la frase con que lo digo no sólo pierde su novedad sino también su significado: ¿quién la dice y quién la oye? Así pues, la manera de romper el circulo y de romper la tautología es, precisamente, recorrerlo: decirlo, pensarlo. Apenas lo digo, el eterno retorno se desvanece doblemente: como eternidad y como retorno. En efecto, ¿quién regresa y a qué regresa?
Tal vez el Occidente ya está maduro para una crítica semejante a la del budismo, aunque en sentido opuesto: no la crítica de la ilusión del ser sino la crítica de la ilusión del tiempo.
¿Nos dejará Rusia consumar esa crítica y así renacer, o aguarda a los hombres una obscuridad más larga y bárbara que la que cubrió a Europa después de la caída de Roma?
FIN.

O QUE SIGNIFICA ELABORAR O PASSADO



Theodor Adorno
Tradução: Wolfgang Leo Maar
Texto retirado e conforme o da página
Debates
http://planeta.clix.pt/adorno/

A pergunta "O que significa elaborar o passado" requer esclarecimentos. Ela foi formulada a partir de um chavão que ultimamente se tornou bastante suspeito. Nesta formulação. a elaboração do passado não significa elaborá-lo a sério, rompendo seu encanto por meio de uma consciência clara. Mas o que se pretende, ao contrário, é encerrar a questão do passado, se possível inclusive riscando-o da memória. O gesto de tudo esquecer e perdoar, privativo de quem sofreu a injustiça, acaba advindo dos partidários daqueles que praticaram a injustiça. Certa feita, num debate científico, escrevi que em casa de carrasco não se deve lembrar a forca para não provocar ressentimento. Porém a tendência de relacionar a recusa da culpa, seja ela inconsciente ou nem tão inconsciente assim, de maneira tão absurda com a idéia da elaboração do passado, é motivo suficiente para provocar considerações relativas a um plano que ainda hoje provoca tanto horror que vacilamos até em nomeá-lo.
O desejo de libertar-se do passado justifica-se: não é possível viver à sua sombra e o terror não tem fim quando culpa e violência precisam ser pagas com culpa e violência; e não se justifica porque o passado de que se quer escapar ainda permanece muito vivo, O nazismo sobrevive, e continuamos sem saber se o faz apenas como fantasma daquilo que foi tão monstruoso a ponto de não sucumbir à própria morte, ou se a disposição pelo indizível continua presente nos homens bem como nas condições que os cercam.
Não quero entrar na discussão a respeito das organizações neonazistas. Considero a sobrevivência do nacional-socialismo na democracia como potencialmente mais ameaçadora do que a sobrevivência de tendências fascistas contra a democracia. A corrosão por dentro representa algo objetivo; e as figuras ambíguas que efetivam o seu retorno só o fazem porque as condições lhes são favoráveis.
Que na Alemanha a falta de domínio do passado, já que esta é a questão, não se restringe ao âmbito dos chamados irrecuperáveis, isto é inquestionável. Sempre se remete ao chamado complexo de culpa, muitas vezes alegando que o mesmo na verdade apenas foi gerado pela construção de uma culpa coletiva dos alemães. Indiscutivelmente há muito de neurótico no que se refere ao passado: gestos de defesa onde não houve agressão; sentimentos profundos em situações que não os justificam; ausência de sentimentos em face de situações da maior gravidade; e não raro também a repressão do conhecido ou do semiconhecido. No experimento de grupo do Instituto de Pesquisa Social freqüentemente verificamos que a lembrança da deportação e do genocídio se associava à escolha de expressões atenuantes ou de descrições eufemistas, ou configurava um espaço vazio do discurso; o uso consagrado e quase benevolente da versão da "noite de cristal" para designar o pogrom de novembro de 1938 confirma esta tendência. É muito grande o número daqueles que pretendem, na ocasião, não ter tido conhecimento dos acontecimentos que sucediam, embora por toda parte os judeus tenham desaparecido, e embora seja pouco provável que aqueles que viram o que acontecia no Leste tenham silenciado acerca do que deve ter sido um fardo insuportável. É razoável supor que existe uma proporção entre o gesto de não-ter-sabido-de-nada e uma indiferença ao menos embrutecida e amedrontada, O certo é que os decididos adversário do nazismo cedo souberam com bastante precisão o que acontecia.
Todos conhecemos a disposição atual em negar ou minimizar o ocorrido — por mais difícil que seja compreender que existem pessoas que não se envergonham de usar um argumento como o de que teriam sido assassinados apenas cinco milhões de judeus, e não seis. Além disto, também é irracional a contabilidade da culpa, como se as mortes de Dresden compensassem as de Auschwitz. Na contabilização de tais cálculos, na pressa de ser dispensado de uma conscientização recorrendo a contra-argumentos, reside de antemão algo de desumano, e ações bélicas de combate, cujo modelo além disto chamavam-se de Coventry e Rotterdam, são muito pouco comparáveis ao assassinato administrativo de milhões de pessoas inocentes. Mas também essa inocência, a mais simples e plausível, é negada. A desmesura do mal praticado acaba sendo uma justificativa para o mesmo: a consciência irresoluta consola-se argumentando que fatos dessa gravidade sã poderiam ter ocorrido porque as vitimas deram motivos quaisquer para tanto, e este vago "motivos quaisquer" pode assumir qualquer dimensão possível. O deslumbramento se impõe por sobre o equívoco gritante existente na relação entre uma culpa altamente fictícia e um castigo altamente real. À5 vezes os vencedores são convertidos em responsáveis por aquilo que os vencidos praticaram quando eles próprios ainda se encontravam por cima, e os crimes de Hitler seriam de responsabilidade daqueles que teriam tolerado seu assalto ao poder, e não daqueles que o apoiaram. A idiotice de tudo isto constitui efetivamente sinal de algo que não foi trabalhado psiquicamente, de uma ferida, embora a idéia de ferida coubesse muito mais em relação às vítimas.
Em tudo isto, entretanto, o discurso do complexo de culpa contém algo de irreal. Na psiquiatria, de onde se originou, de significa que o sentimento de culpa é doentio, inapropriado à realidade, ou, como dizem os analistas, psicogênico. Graças ao termo complexo cria-se a impressão de que a Culpa — cujo sentimento tantas pessoas recusam, procuram absorver ou deformar mediante as racionalizações mais imbecis —— na verdade não seria uma culpa, mas estaria somente na constituição anímica das pessoas: o terrível passado real é convertido em algo inocente que existe meramente na imaginação daqueles que se sentem afetados desta forma. Ou então a própria culpa seria ela mesma apenas um complexo, e seria doentio ocupar-se do passado, enquanto o homem realista e sadio se ocupa do presente e de suas metas práticas? Esta seria a moral daquele "é tal como se não tivesse ocorrido", uma frase de Goethe mas que, pronunciada numa passagem decisiva do Fausto por Mefisto, revela o principio interno mais profundo deste, a destruição da memória. Haveria que subtrair aos assassinados a única coisa que nossa impotência pode lhes oferecer, a lembrança. Mas esta mentalidade obstinada dos que nada querem ouvir a respeito deste assunto encontra-se em conformidade com uma vigorosa tendência histórica. Hermann Heimpel repetidamente falou de um desaparecimento da consciência da continuidade histórica na Alemanha, um sintoma daquela fraqueza social do eu que Horkheimer e eu já procuramos derivar na Dialética do esclarecimento. Constatações empíricas, como, por exemplo, a de que a geração jovem muitas vezes desconhece quem foram Bismarck ou o imperador Guilherme 1, da Alemanha, confirmam essa perda da história.
Contudo, esse processo, que se tornou flagrante na Alemanha somente após a Segunda Guerra Mundial, coincide com a estranheza da consciência americana em relação à história, que se tornou conhecida desde o "History is bunk" (A história é urna charlatanice) de Henry Ford, a imagem terrível de uma humanidade sem memória. Não se trata meramente de um produto da decadência, da forma de reagir de uma humanidade sobrecarregada de estímulos e que não consegue mais dar conta dos mesmos, como se costuma dizer, mas refere-se a algo vinculado necessariamente à progressividade dos princípios burgueses. A sociedade burguesa encontra-se subordinada de um modo universal à lei da troca, do "igual por igual" de cálculos que, por darem certo, não deixam resto algum. Conforme sua própria essência, a troca é atemporal, tal como a própria razão, assim como, de acordo com sua forma pura, as operações da matemática excluem o momento temporal. Nesses termos, o tempo concreto também desapareceria da produção industrial. Esta procede sempre em ciclos idênticos e pulsativos, potencialmente de mesma duração, e praticamente não necessita mais da experiência acumulada. Economistas e sociólogas como Werner Sombart e Max Weber atribuíram o principio do tradicionalismo às formas sociais feudais, e o principio da racionalidade ás formas burguesas. O que é o mesmo que dizer que a memória, o tempo e a lembrança são liquidados pela própria sociedade burguesa em seu desenvolvimento, como se fossem uma espécie de resto irracional, do mesmo modo como a racionalização progressiva dos procedimentos da produção industrial elimina junto aos outros restos da atividade artesanal também categorias como a da aprendizagem, ou seja, do tempo de aquisição da experiência no oficio. Quando a humanidade se aliena da memória, esgotando-se sem fôlego na adaptação ao existente, nisto reflete-se uma lei objetiva de desenvolvimento1.
Nessa medida, o esquecimento do nazismo pode ser explicado muito mais a partir da situação social geral do que a partir da psicopatologia. Até mesmo os mecanismos psicológicos que operam na recusa de lembranças desagradáveis e inescrupulosas servem a objetivos extremamente realistas. Os próprios agentes da recusa acabam revelando os mesmos, quando, munidos de sentido prático. afirmam que a lembrança demasiadamente concreta e incisiva do passado poderia prejudicar a imagem da Alemanha no exterior. Um tal ímpeto dificilmente rima com as assertivas de Richard Wagner, afinal suficientemente nacionalista, para quem ser alemão significava fazer alguma coisa por motivos imanentes à própria coisa – desde que a coisa não esteja a priori determinada como sendo um negócio. Apagar a memória seria muito mais um resultado da consciência vigilante do que resultado da fraqueza da consciência frente à superioridade de processos inconscientes. Junto ao esquecimento do que mal acabou de acontecer ressoa a raiva pelo fato de que, como todos sabem, antes de convencer os outros é preciso convencer a si próprio.
Por certo as motivações e os comportamentos assumidos não são diretamente racionais, na medida em que deturpam os fatos a que se referem. Porém eles são racionais no sentido em que se apóiam em tendências sociais, e que quem reage deste modo se sabe identificado ao espírito da época. O progresso individual de quem reage nesses termos é favorecido de imediato. Quem não se ocupa com pensamentos inúteis não joga areia na engrenagem. Recomenda-se falar nos termos que Franz Bóhm caracterizou com muita propriedade como a "opinião não-pública". Os adeptos de um clima mantido nos limites dos tabus oficiais e, por isto mesmo, um clima mais virulento, classificam a si próprios como simultaneamente independentes e partidários. Afinal, o movimento alemão de resistência ao nazismo permaneceu sem uma base de massas, base que dificilmente seria gerada com a derrota como se fosse por um toque de mágica. E razoável supor que a democracia tenha raízes mais profundas do que após a Primeira Guerra Mundial: pela politização das massas e contrariamente à sua própria intenção, o nacional-socialismo anti-feudal e estritamente burguês num certo sentido até mesmo se adiantou à democracia. Tanto a casta dos "Junkers" como o movimento operário radical desapareceram; pela primeira vez produziu-se algo próximo a uma situação burguesa homogênea. Porém o atraso na introdução da democracia na Alemanha, que não coincidiu com o liberalismo econômico pleno, além do fato de ser pelas mãos dos vencedores que se acabaria introduzindo a democracia, dificilmente deixaria de afetar as relações desta para com a povo. Raramente isto é confessado, seja porque entrementes a situação sob a democracia é muito boa, seja porque prejudicaria a comunidade de interesses institucionalizados com os aliados políticos ocidentais, sobretudo os Estados Unidos. Contudo, o ressentimento contra a reeducação é bastante visível. Nesta medida é possível afirmar que o sistema da democracia política é aceito na Alemanha nos termos do que nos Estados Unidos é denominado a working proposition (uma proposta que funciona), e que até agora possibilitou ou até mesmo promoveu a prosperidade. Mas a democracia não se estabeleceu a ponto de constar da experiência das pessoas como se fosse um assunto próprio delas, de modo que elas compreendessem a si mesmas como sendo sujeitos dos processos políticos. Ela é apreendida como sendo um sistema entre outros, como se num cardápio escolhêssemos entre comunismo, democracia, fascismo ou monarquia; ela não é apreendida como identificando-se ao próprio povo, como expressão de sua emancipação. Ela é avaliada conforme o sucesso ou o insucesso, de que participam também os interesses individuais, mas não como sendo a unidade entre os interesses individuais e o interesse geral; e, de fato, a delegação parlamentar da vontade popular torna esta muitas vezes uma questão difícil nos modernos Estados de massa. Na Alemanha, ouviremos com freqüência dos próprios alemães a estranha afirmativa de que eles ainda não estão maduros para a democracia. A própria falta de emancipação é convertida em ideologia, tal como o faz a juventude que, surpreendida em qualquer ato de violência, procura se livrar apelando à sua condição de teenager adolescente. O grotesco numa tal argumentação revela uma flagrante contradição na consciência. As pessoas que nestes termos procuram demonstrar com franqueza a sua própria ingenuidade e imaturidade política sentem-se, por um lado, como sendo sujeitos políticos, aos quais caberia determinar seu próprio destino bem como organizar a sociedade. Mas deparam-se, por outro lado, com as sólidas barreiras impostas pelas condições vigentes. Como não podem romper essas barreiras mediante o pensamento, acabam atribuindo a si mesmos, ou aos adultos, ou aos outros, esta impossibilidade real que lhes é imposta. Eles mesmos terminam por se dividir mais uma vez em sujeito e objeto. De qualquer modo, a ideologia dominante hoje em dia define que, quanto mais as pessoas estiverem submetidas a contextos objetivos em relação aos quais são impotentes, ou acreditam ser impotentes, tanto mais elas tornarão subjetiva esta impotência. Conforme o ditado de que tudo depende unicamente das pessoas, atribuem às pessoas tudo o que depende das condições objetivas, de tal modo que as condições existentes permanecem intocadas. Na linguagem da filosofia poderíamos dizer que na estranheza do povo em relação à democracia se reflete a alienação da sociedade em relação a si mesma.
No referido âmbito das relações objetivas, a mais aparente talvez seja o desenvolvimento da política internacional. Ela parece justificar retrospectivamente a invasão da União Soviética por Hitler. Na medida em que o mundo ocidental se configura como unidade essencialmente por meio da defesa contra a ameaça russa, os vitoriosos de 1945 teriam destruído a barreira contra o bolchevismo apenas por tolice, reconstruindo-a poucos anos depois. E só uns poucos passos separam o "Hitler bem que avisou" da extrapolação de que ele também tinha razão em outros assuntos. Somente aos edificantes pregadores dominicais passaria despercebida a fatalidade histórica pela qual a concepção que outrora levou Chamberlain e seus seguidores a tolerar Hitler como um algoz do Leste, sobreviveu num certo sentido ao próprio desaparecimento de Hitler. Trata-se efetivamente de uma fatalidade. Pois é visível a ameaça do Leste de engolfar o anteplano dos maciços orientais da Europa. Quem não lhe impõe resistência torna-se literalmente culpado de uma repetição do appeasement (conciliação) de Charnberlain. Esquecem apenas -— apenas! -—- que esta ameaça foi desencadeada justamente a partir da ação de Hitler, que impôs à Europa exatamente aquilo que. conforme a intenção dos conciliadores, ele deveria evitar com a sua guerra expansionista. Mais ainda do que o destino individual, o destino dos vínculos políticos constitui uma relação de culpa. A resistência frente ao Leste contém em si mesma uma dinâmica que revigora o que se passou na Alemanha. E não só ideologicamente, porque o discurso da luta contra o bolchevismo desde sempre serviu de fachada para aqueles que não são melhores adeptos da liberdade do que o próprio bolchevismo. Mas também no plano real. De acordo com uma observação que remonta ao período de Hitler, o potencial organizatório dos sistemas totalitários impõe aos seus adversários uma parte de seu próprio ser. Enquanto perdurar o desnível econômico entre o Leste e o Ocidente, o modo de atuação fascista tem mais chances com as massas do que a propaganda do Leste, ao mesmo tempo em que, além disto, não nos encontramos impelidos à ultimaa ratio do fascismo. Mas são os mesmos tipos de pessoas que são sensíveis a ambas as formas de totalitarismo. A construção de uma interpretação a partir de uma determinada ideologia político-econômica levou a um juízo equivocado das personalidades autoritárias; nem mesmo em termos sócio-psicológicos foram casuais as conhecidas oscilações de milhões de eleitores entre os partidos nazista e comunista anteriormente a 1933. Pesquisas feitas nos Estados Unidos revelaram que esta estrutura da personalidade não se relaciona tanto assim com critérios econômico-políticos. Ela seria definida muito mais por traços como pensar conforme as dimensões de poder ---- impotência, paralisia e incapacidade de reagir, comportamento convencional, conformismo, ausência de auto-reflexão, enfim, ausência de aptidão à experiência. Personalidades com tendências autoritárias identificam-se ao poder enquanto tal, independente de seu Conteúdo. No fundo dispõem só de um eu fraco, necessitando, para se compensarem, da identificação com grandes coletivos e da cobertura proporcionada pelos mesmos. O fato de por toda parte reencontrarmos figuras caricatas como as representadas nos filmes sobre meninos prodígios, isto não depende nem da perversidade do mundo como tal, nem de peculiaridades do caráter nacional alemão, mas sim da identidade daqueles conformistas, que possuem de antemão um vínculo com os instrumentos de qualquer estrutura de exercício do poder, com os seguidores potenciais do totalitarismo. Além do mais, é ilusório imaginar que o regime nazista nada tenha significado além de pavor e sofrimento, embora tenha também este significado inclusive para muitos de seus próprios adeptos. Muitos viveram muito bem sob o fascismo, O terror só se abateu sobre um pequeno número de grupos relativamente bem definidos. Após as experiências da guerra antes da era hitlerista, a impressão dominante era a de que "havia providências", e não apenas em termos ideológicos como no caso de viagens de férias e vasos de flores nos galpões industriais. Em comparação ao laissez-faire, o mundo hitlerista efetivamente protegia seus adeptos frente às catástrofes naturais da sociedade que se abatiam sobre as pessoas. De um modo autoritário estabeleceu-se a prioridade do controle das crises, um experimento bárbaro de direção estatal da sociedade industrial. A tão lembrada integração, o adensamento organizatório da rede social que tudo abrangia, propiciava inclusive proteção em face do medo geral de ficar de fora e submergir. Para um número incontável de pessoas, a frieza do seu estado de alienação parecia eliminada pelo calor do estar em comunidade, por mais manipulada e imposta que fosse esta situação; a comunidade popular dos não-iguais e dos não-livres, como mentira que era, também era simultaneamente a realização de um sonho burguês antigo, embora desde sempre perverso. É claro que o sistema que oferecia tais gratificações continha em si o potencial da própria destruição. O florescimento econômico do Terceiro Reich repousava em grande parte sobre o armamentismo militarista para a guerra que traria a catástrofe. Porém aquela memória debilitada a que me referia recusa-se em grande medida a aceitar uma tal argumentação. Ela deturpa obstinadamente a época nazista, em que se realizam as fantasias coletivas de poder daqueles que, como indivíduos, eram impotentes e só se imaginavam sendo alguma coisa enquanto constituíam um tal poder coletivo. Nenhuma análise, por mais evidente que seja, pode posteriormente eliminar a realidade dessa satisfação, bem como a energia dos impulsos instintivos que foi investida nela. Até mesmo o jogo de tudo ou nada de Hitler não era tão irracional como parecia na época à razão liberal mediana ou parece hoje nos termos da retrospectiva histórica da derrota. O cálculo de Hitler, de aproveitar ao máximo frente aos outros Estados a vantagem temporal de uma impressionante preparação militar, não era tolo nos termos do que ele pretendia. Quando examinamos a história do Terceiro Reich e sobretudo a da guerra, os momentos isolados em que Hitler era derrotado sempre parecerão acidentais, e somente o curso da guerra como um todo parecerá corno sendo necessário, curso em que finalmente se imporia o potencial técnico-econômico superior do restante do mundo, que não queria ser engolido —— num certo sentido uma necessidade estatística e de modo algum uma lógica gradual passível de ser conhecida. A simpatia que sobrevive em relação ao nacional-socialismo nem precisa recorrer a muitos sofismas para convencer a si mesma e aos outros de que tudo poderia ter ocorrido também de modo diferente, porque afinal o que aconteceu seria devido aos erros cometidos, sendo a queda de Hitler um acidente da história mundial que possivelmente o espírito do mundo ainda iria corrigir.
No referente ao lado subjetivo, ao lado psíquico das pessoas, o nazismo insuflou desmesuradamente o narcisismo coletivo, ou. para falar simplesmente: o orgulho nacional. Os impulsos narcisistas dos indivíduos, aos quais o mundo endurecido prometia cada vez menos satisfação e que mesmo assim continuavam existindo ao mesmo tempo em que a civilização lhes oferecia tão pouco, encontraram uma satisfação susbtitutiva na identificação com o todo. Esse narcisismo coletivo foi gravemente danificado pela derrocada do regime nazista. Esses danos ocorreram no âmbito do meramente factual, sem que os indivíduos tenham se dado conta deles para poderem assim elaborá-los. Este é o sentido sócio-psicológico correspondente ao discurso acerca do passado não dominado. Faltou inclusive aquele pânico que, de acordo com a teoria freudiana em Psicologia das massas e análise do eu, se instala quando as identificações coletivas se esfacelam. Se atentar-mas às indicações do grande psicólogo, isso permite apenas uma conclusão: que, no fundo, avolumando-se inconscientemente e por isto particularmente poderosas, aquelas identificações e o narcisismo coletivo não chegaram a ser destruídos, mas permanecem existindo. A derrota foi tão pouco ratificada internamente pelas pessoas como já havia ocorrido após 1918. Até mesmo em face da evidência da catástrofe iminente, o coletivo integrado por Hitler se manteve unido agarrando-se a esperanças quiméricas como a das armas secretas, que na verdade eram dos adversários. Em termos sócio-psicológicos haveria que vincular a isso a expectativa de que o narcisismo coletivo danificado está à espreita esperando ser sanado, primeiro procurando agarrar tudo o que se encontra na consciência e que faça o passado coincidir com os desejos narcisistas, e a seguir procurando modificar a realidade de modo que os danos sejam ocultos. Até um certo ponto, a prosperidade econômica, a consciência da própria eficiência, preencheu esta meta. Entretanto duvido que o chamado milagre econômico, de que todas participam mas em relação ao qual todos têm críticas, possa ter a profundidade sócio-psicológica que se imagina em tempos de relativa estabilidade. Precisamente porque a fome perdura em continentes inteiros, embora pudesse ser abolida no que dependesse das condições técnicas para tanto, justamente por isto ninguém consegue ser realmente feliz com a prosperidade. Nos mesmos termos em que individualmente rimos invejosos quando assistimos, por exemplo, algum filme em que alguém se deleita à mesa com o guardanapo preso à camisa, assim também a humanidade não se permite uma satisfação visivelmente paga ás custas da miséria da maioria; o ressentimento afeta qualquer bom êxito, até mesmo a felicidade própria de cada um. Estar saciado tornou-se a prior um palavrão, embora o mal que há em relação à saciedade é que existe quem não tem o que comer; o suposto idealismo que critica de modo tão farisaico o suposto materialismo na Alemanha atual deve muito do que considera ser a sua profundidade apenas a instintos oprimidos. O ódio ao bem-estar revela na Alemanha o mal-estar com a prosperidade. e para esse mal-estar o passado é deturpado como tragédia. Mas esse mal-estar, por sua vez, não se origina de fontes obscuras, e sim de fontes muito racionais. A riqueza é conjuntural. ninguém confia em sua perpetuação indefinida. Quando recorremos ao consolo de que acontecimentos como o da sexta-feira negra de 1929 e a crise econômica com ela relacionada teriam poucas chances de se repetir, nisto há implícita a confiança em um poder estatal forte, de que se aguarda proteção inclusive quando a liberdade econômica e política não funciona. Em meio à prosperidade. até mesmo em período de pleno emprego e crise de oferta de força de trabalho, no fundo provavelmente a maioria das pessoas se sente como um desempregado potencial, um destinatária futuro da caridade, e desta forma como sendo um objeto, e não um sujeito da sociedade: este é o motivo muito legitimo e racional de seu mal-estar. É evidente que, no momento oportuno, isto pode ser represado regressivamente e deturpado para renovar a desgraça.
Não há nenhuma dúvida que o ideal fascista atual funde-se com o nacionalismo dos chamados países subdesenvolvidos, agora denominados países em desenvolvimento. Já durante a Segunda Guerra existia nas palavras de ardem das plutocracias ocidentais e das nações proletárias uma concordância com aqueles que se sentiam prejudicados na concorrência imperialista e procuravam a sua vez de sentar à mesa. É difícil saber se e em que medida essa tendência já desembocou no fluxo anti-civilizatório e antiocidental da tradição alemã; se também na Alemanha se configura uma convergência entre o nacionalismo fascista e o nacionalismo comunista. Hoje em dia o nacionalismo é ao mesmo tempo ultrapassado e atual. Ultrapassado porque, em face da reunião obrigatória das nações em grandes blocos sob a hegemonia das mais poderosos, tal como imposto até mesmo pelo desenvolvimento técnico do armamento, o Estado nacional soberano perdeu sua substância histórica, ao menos na Europa continental desenvolvida. A própria idéia de nação, em que Outrora se reuniu a unidade econômica dos interesses dos cidadãos livres e independentes face às barreiras territoriais do feudalismo, converteu-se ela mesma em obstáculo para o evidente potencial da sociedade em conjunto. Mas o nacionalismo é atual na medida em que somente a idéia transmitida e psicologicamente enriquecida de nação, que permanece sendo a expressão de uma comunidade de interesses na economia internacional, tem força para mobilizar centenas de milhões de pessoas para objetivos que não são imediatamente os seus. O nacionalismo está descrente em relação a si mesmo e, apesar disto, é necessário como sendo o meio mais eficaz para levar os homens à insistência em situações objetivamente ultrapassadas. Por isto ele assume hoje estes traços caricatos como algo não inteiramente apropriado, propositalmente obnubilado. É bem certo que esses traços nunca estiveram totalmente ausentes dessa herança das bárbaras constituições tribais primitivas, mas eles estiveram sob controle enquanto o liberalismo confirmava o direito dos indivíduos como condição real da prosperidade coletiva. O nacionalismo só se tornou sádico e destrutivo numa época em que se exacerbou. O ódio do mundo hitlerista contra tudo que era diferente, o nacionalismo como sistema paranóico. foi algo deste tipo; o poder de atração de traços desta ordem dificilmente diminuiu. A paranóia, o delírio persecutório. que persegue os outros sobre os quais projeta as suas próprias intenções, é contagioso. Delírios coletivos, como o anti-semitismo, confirmam a patologia daquele indivíduo que revela não encontrar-se psiquicamente à altura do mundo e se refugia num fantasioso reino interior. Esses delírios podem até dispensar o indivíduo semi-enlouquecido da necessidade de enlouquecer por completo, conforme a tese do psicanalista Ernst Simmel. Por mais claramente que o delírio do nacionalismo se apresente no medo racional de novas catástrofes, ele acaba promovendo a sua própria expansão. O delírio é um substituto do sonho de uma humanidade que torna o mundo humano, sonho que o próprio mundo sufoca com obstinação na humanidade. Mas ao pathos nacionalista se junta tudo o que ocorreu entre 1933 e 1943.
A sobrevivência do fascismo e o insucesso da tão falada elaboração do passada, hoje desvirtuada em sua caricatura como esquecimento vazio e frio, devem-se à persistência dos pressupostos sociais objetivos que geram o fascismo. Este não pode ser produzido meramente a partir de disposições subjetivas. A ordem econômica e, seguindo seu modelo, em grande parte também a organização econômica, continuam obrigando a maioria das pessoas a depender de situações dadas em relação às quais são impotentes, bem como a se manter numa situação de não-emancipação. Se as pessoas querem viver, nada lhes resta senão se adaptar à situação existente, se conformar; precisam abrir mão daquela subjetividade autônoma a que remete a idéia de democracia; conseguem sobreviver apenas na medida em que abdicam seu próprio eu. Desvendar as teias do deslumbramento implicaria um doloroso esforço de conhecimento que é travado pela própria situação da vida, com destaque para a indústria cultural intumescida Como totalidade. A necessidade de uma tal adaptação, da identificação com o existente, com o dado, com o poder enquanto tal, gera o potencial totalitário. Este é reforçado pela insatisfação e pelo ódio, produzidos e reproduzidos pela própria imposição à adaptação. Justamente porque a realidade não cumpre a promessa de autonomia, enfim, a promessa de felicidade que o conceito de democracia afinal assegurara, as pessoas tornam-se indiferentes frente à democracia, quando não passam até a odiá-la. A forma de organização política é experimentada como sendo inadequada à realidade social e econômica; assim como existe a obrigação individual à adaptação, pretende-se que haja também, obrigatoriamente, uma adaptação das formas de vida coletiva, tanto mais quando se aguarda de uma tal adaptação um balizamento do Estado como megaempresa na aguerrida competição de todos. Os que permanecem impotentes não conseguem suportar uma situação melhor sequer como mera ilusão; preferem livrar-se do compromisso com uma autonomia em cujos termos suspeitam não poder viver, atirando-se no cadinho do eu coletivo.
Exagerei nos aspectos sombrios, conforme aquela máxima segundo a qual hoje em dia somente o exagero consegue veicular a verdade. Peço que não compreendam mal minhas considerações fragmentárias e freqüentemente rapsódicas, como se fossem um catastrofismo à maneira de Spengler, o autor de O ocaso do Ocidente: a análise deste fazia ela própria o jogo da desgraça. Contudo, a minha intenção foi atentar para uma tendência oculta pela fachada limpa do cotidiano, antes que ela se imponha por sobre as barreiras institucionais que até o momento a mantém sob controle. O perigo é objetivo; e não se localiza em primeira instância nas pessoas. Há muitas indicações de que a democracia e tudo o que ela implica estabelecem vinculas mais profundos com as pessoas do que ocorreu na época da República de Weimar. Na medida em que ressaltei o que não aparecia, não dei a atenção devida ao que não pode passar despercebido à reflexão: a constatação de que na democracia alemã de 1945 até hoje a vida material se reproduziu de um modo mais próspero do que jamais aconteceu antes, fato que é relevante inclusive por um prisma sóciopsicológico. Não seria excessivamente otimista afirmar que a democracia alemã não vai mal, nem vai mal também a elaboração efetiva do passado, desde que se lhe garanta tempo e muitas outras coisas. Só que existe no conceito de ter tempo algo de ingênuo e contemplativo no mau sentido. Nem nós somos meros espectadores da história do mundo transitando mais ou menos imunes em seu âmbito, e nem a própria história do mundo, cujo ritmo freqüentemente assemelha-se ao catastrófico, parece possibilitar aos seus sujeitos o tempo necessário para que tudo melhore por si mesmo. Isto remete diretamente à pedagogia democrática. Sobretudo o esclarecimento acerca do que aconteceu precisa contrapor-se a um esquecimento que facilmente converge em uma justificativa do esquecimento, seja por parte de pais que enfrentam a desagradável pergunta acerca de Hitler por parte de seus filhos e que, inclusive para se inocentar, remetem ao lado bom e que propriamente não foi tão terrível assim. É moda na Alemanha falar mal da educação política, que certamente poderia ser melhorada, porém existem dados da sociologia da educação indicando que, onde a educação política é levada a sério e não como simples obrigação inoportuna, ela provoca um bem maior do que normalmente se supõe. Se avaliarmos o potencial objetivo de sobrevivência da nazismo com a gravidade que lhe atribuo, então isto significará inclusive uma limitação da pedagogia do esclarecimento. Quer seja ela psicológica ou sociológica, na prática só atingirá os que se revelarem abertos a ela, que são justamente aqueles que se fecham ao fascismo. Entretanto nunca é demais utilizar o esclarecimento para reforçar ainda mais este grupo contra a opinião não-pública. Poderíamos imaginar inclusive que deste grupo surjam quadros de liderança cuja atuação nos diferentes planos acabe atingindo o todo, e as chances para uma tal atuação são tanto mais favoráveis quanto mais conscientes forem eles próprios. Obviamente o esclarecimento não se restringirá a esses grupos. Vou me abster de considerações acerca da questão difícil e de muita responsabilidade relativa à dimensão em que é apropriado referir-se ao passado em experiências de esclarecimento público, se uma insistência neste sentido não provocaria uma resistência obstinada, produzindo justamente o contrário do que se pretendia. Contudo, penso, ao contrário, que o consciente jamais se relaciona à infelicidade nos mesmos termos em que isto ocorre com o semiconsciente e o pré-consciente. No fundo, tudo dependerá do modo pelo qual o passado será referido no presente; se permanecemos no simples remorso ou se resistimos ao horror com base na força de compreender até mesmo o incompreensível. Naturalmente, para isto será necessária uma educação dos educadores. Esta sofre gravemente pelo fato de o que se chama de behavioural sciences (ciências do comportamento) por ora não serem, ou serem muito pouco, representadas na Alemanha. Seria urgente fortalecer nas universidades uma sociologia vinculada à pesquisa histórica de nossa própria época. Em vez de se resumir a palavrório melancólico de segunda mão sobre o ser das homens, a pedagogia deveria assumir a tarefa cujo tratamento insuficiente se critica com tanta insistência na reeducation (reeducação). Na Alemanha a criminologia nem de longe atingiu o seu nível moderno. Mas é preciso pensar principalmente na psicanálise, que permanece reprimida. Ela, ou se encontra completamente ausente, ou foi substituída por orientações que, enquanto se vangloriam de superar o malfadado século XIX, na verdade regridem para aquém da teoria de Freud, possivelmente deturpando a mesma em seu contrário.
O saber preciso e incisivo da psicanálise é mais atual do que nunca. O ódio em relação a ela se identifica diretamente ao anti-semitismo, e não simplesmente porque Freud era judeu, mas porque a psicanálise consiste exatamente naquela autoconsciência crítica que enfurece os anti-semitas. Em que pesem as dificuldades, nem que sejam apenas de tempo, em realizar uma espécie de análise de massas, e supondo que a psicanálise rigorosa dispusesse de um lugar institucional, a influência da mesma sobre o clima espiritual na Alemanha seria muito salutar, mesmo que se resumisse a tornar natural a atitude de não exteriorizar a violência, mas refletir sobre si mesmo e sobre a relação com os outros que costumam ser os destinatários dessa violência. De qualquer modo, tentativas de se opor subjetivamente ao potencial objetivo fatal não são satisfeitas com considerações que pouco afetariam a gravidade do que precisa ser confrontado. Assim, por exemplo, indicações acerca das grandes realizaçõeS dos judeus no passado. por mais verdadeiras que sejam, são de pouca serventia porque lembram propaganda. E a propaganda. a manipulação racional do irracional, constitui um privilégio dos totalitárias. Os que se opõem aos mesmos não deveriam imitá-los de um modo que apenas se voltará contra eles próprios. Panegíricos aos judeus que caracterizam os mesmos como grupo terminam por servir ao anti-semitismo. É tão difícil criticar o anti-semitismo justamente porque a economia psíquica de muitas pessoas precisou dele e possivelmente ainda precisa. Tudo o que acontece pela via da propaganda permanece ambíguo. Contaram-me a história de uma mulher que, após assistir a uma dramatização do Diário de Anne Frank,. declarou: "Bem, poderiam ao menos ter poupado esta menina". E certamente até mesmo esta foi uma declaração positiva, enquanto primeiro passo em direção à tomada de consciência. Porém o caso individual, cuja função era servir de exemplo do todo, converteu-se por meio de sua própria jndividuação em um álibi do todo, todo que acabou sendo esquecido por aquela mulher. O complicado em observações como esta é que elas sequer nos devem induzir a não recomendar a exibição de peças como esta sobre Anne Frank, porque afinal elas acabam gerando uma influência positiva, por mais que critiquemos o dano que provocariam a dignidade dos mortos. Também não acredito que aproximações comunitárias sejam muito produtivas, encontros entre jovens alemães e jovens israelistas e outras manifestações de amizade, por mais louváveis que continuem sendo tais iniciativas. Elas partem do pressuposto de que o anti-semitismos tenha em sua essência algo a ver com judeus, podendo assim ser combatido por meio de experiências concretas com judeus, quando, ao contrário, o verdadeiro anti-semita é definido pela completa incapacidade de fazer experiências, por ser inteiramente inacessível. Se o anti-semitismo existe primariamente em bases sociais e objetivas, e a seguir nos anti-semitas, então haveria sentido na piada nazista de que, se os judeus não existissem, os anti-semitas teriam que inventá-los. Na medida em que se queira combater o anti-semitismo nos sujeitos, não se deveria esperar muito de atitudes envolvendo fatos que são rejeitados por eles ou então neutralizados como sendo simples exceções. Em vez disto a argumentação deveria se voltar para os sujeitos que são os interlocutores. Seria preciso tornar conscientes neles os mecanismos que provocam neles próprios o preconceito racial. A elaboração do passado como esclarecimento é essencialmente uma tal inflexão em direção ao sujeito, reforçando a sua auto-consciência e, por esta via, também o seu eu. Ela deveria ser concomitante ao conhecimento daqueles inevitáveis truques de propaganda que atingem de maneira certeira aquelas disposições psicológicas cuja existência precisamos pressupor nas pessoas. Como se trata de truques determinados e em número limitado, não é muito difícil mantê-los à disposição, utilizando-os numa espécie de vacinação preventiva. Provavelmente apenas uma atuação conjunta daqueles pedagogos e psicólogos que não se esquivam da mais prioritária das tarefas profissionais em nome da objetividade cientifica poderia solucionar o problema da realização prática de um tal esclarecimento subjetivo. Contudo, em face da violência objetiva existente por trás desse potencial sobrevivente, o esclarecimento subjetivo não será suficiente mesmo que seja enfrentado em termos diferenciados de energia e profundidade. Se quisermos contrapor objetivamente algo ao perigo objetivo, não bastará lançar mão de uma simples idéia, ainda que seja a idéia da liberdade ou da humanidade, cuja conformação abstrata, como vimos, não significa grande coisa para as pessoas. Se o potencial fascista se apóia em seus interesses, por mais limitados que sejam, então o antídoto mais eficaz, porque evidente em sua verdade, permanece sendo o de atentar aos interesses das pessoas, sobretudo os mais imediatos. Seríamos efetivamente acusados de psicologismo delirante caso não considerássemos em tais oportunidades que, embora a guerra e o sofrimento que trouxe ao povo alemão não tenham sido suficientes para evitar aquele potencial fascista, certamente são importantes para se contrapor ao mesmo. Lembremos às pessoas o mais simples: que o revigoramento direto ou indireto do fascismo representa sofrimento e miséria num regime autoritário, e, em última análise, provavelmente a hegemonia russa sobre a Europa; resumindo, que desta forma se instalaria uma política catastrófica. Isto surtirá mais efeito do que atentar a ideais ou então remeter ao sofrimento dos outros, o que já La Rochefoucauld sabia ser facilmente superado. Em face dessa perspectiva, o mal-estar do presente representa pouco mais do que o luxo de um estado de ânimo. Entretanto, apesar de toda repressão psicológica, Estalingrado e os bombardeios noturnos não foram esquecidos a ponto de impossibilitar a compreensão de todos acerca da relação que existe entre uma política igual à que levou àquela situação e a perspectiva de uma terceira guerra púnica. Mas, mesmo acontecendo isto, o perigo permanece. O passado só estará plenamente elaborado no instante em que estiverem eliminadas as causas do que passou. O encantamento do passado pôde manter-se até hoje unicamente porque continuam existindo as suas causas.
Nota
Esta frase consta da conferência original. Falta no texto impresso de 1963.