domingo, 19 de dezembro de 2010

Perder-se



Augusto Patrini

Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.”

Caio Fernando Abreu em “A terra do Coração” – Pequenas Epifanias.

UM

A história. Começou como medo. Não sabia como. Mas era um medo rubro sangueescarlate brilhante. Rubra força infunda. Rubro de sangue, rubro de vergonha, de timidez ou de ódio. Um grande hematoma roxo. Era assim sua dor-medo de cara contorcida. Uma viagem funda e torta, entrando em espiral dentro de si. As vagas rompendo a terra por que lhes doíam as almas todas. Era seu medo rubro e fogo que lhe rebentavam a carapraia. Torcendo-lhe a face.

Mas, era além daquele rosto torcido. Era para e por que amar era necessário que chegara até ali assim, cambaleando antes – procurado algo que não sabia o que era - e revoltoso do mundo. Quando encontrou jogou-se no fundo. No breu brilhante.

Agora, doíam-lhe as carnes suas, atormentadas e loucas, o medo enfiando-lhe duro na boca aberta uma angústia meio fina e longacheia de espinhos e rosas. Era a força que lhe guiava. A força de não se pertencer. Um gole de gasolina.

A história do medo começara assim devagarzinho, sutil e poderoso, como quando pombos recolhem as migalhas nas praças. Dos homens e dos sonhos. Amando e amado descobrira-se mortal e homem. Tão tolo e são.

Mas agora era essa força poderosa, um medo de perder-se e perder o outro. Uma flama tonta e louca era esse “perder-se” entre o seu eu e o outro. Mas depois e após, assim de rebento, lentamente e de forma frágil ele não era mais ele. Era ele e o outro, misturados e trançados – no fundo. Era o outro.

O pânico de ser e de não poder invadiu-lhe aos poucos a alma irrequieta. Por que a insurreição não lhe bastava. O outro não se insurgia do mundo. Insurgia-se dele mesmo. E era além dele a miséria dos homens e então mergulhava em si – nele-outro – misturado e múltiplo. Assim o seu eu não era mais eu, era também ele e nós. E foi daí, então, choroso e rubro que lhe nasceu esse medo. Medo de amor. Pois prezava muito esse outro, agora misturado nele mesmo.

Tratava-se de uma extravagância? se perguntara ele-outro em certo momento. Mas não podia saber, por que o outro eu tomava-lhe a palavra e não respondia o que lhe perguntava. Pastava. Ele-outro-coletivo pastava-lhe sensorialmente e sentimentalmente no outro além dele.

DOIS

Você acorda apavorado. Sua – sente frio. Você tem medo da voz. Ouve um guincho vindo do térreo. Um gato caiu pela janela. embaixo, no meio do clarão ensolarado do meio-dia, ele chora. Costelas e ossos quebrados. Boca sangrando. Você sua e encharca os lençóis brancos. Mas o sangue tinge o apartamento do térreo. Porra de gato idiota, pensa você. Mas por instantes sente-se como o gatocaído pela janela.

Você se levanta e vai para o banheiro. Olha no espelhodiretodireito – olheiras fundas – de pouco dormir e fumar demais. Fica confuso. Não sabe se toma um banho, fuma um cigarro ou faz um café. Sente falta do outro.

Você continua a ouvir os gritos do gato esborrachado embaixo. Por um momento, pensa em pegar uma espingarda imaginaria e dar uns tiros no bicho. Angustia-lhe o peito seus gritos de dor. Mas vai apenas para baixo do chuveiro frio. No prédio do lado toca uma música: “... a flor também é ferida aberta e não se chorar,...”

A água fria escorre por teu corpo. Nos cantos e nos becos. Nas dobraduras inquietas e roxas.

TRÊS

Não se sente o que não se pode dizer. A língua constrói o mundo. Era estranho. Mas pronto, estava feito. O quê? Bem, não sabia ao certo. Mas sabia que estava feito algo que mudava as coisaspois aceitava assim. Não sabia como era, se estava feliz ou tristesimplesmente estava longe do outro. Aceitava e pronto. Ali parado era agora ele. Solitário no cafezinho da esquina, diante do jornal lido nos solavancos do ônibus ou no escritório enfadonho, não sabia mais o que era sentir – o que devia sentir. Não sabia se sentia ou dessentia. Levava uma hora e meia até o trabalho e duas horas, no final do expediente, até em casa. Muita fumaça, canos fumegando e barulho. Dor em sua cabeça tonta. Mas o seu perder-se no outro, há tanto tempo se fora,... Agora queria esquecer. Pelo Medo que sentia, medo de estar tudo acabado, borrado, pela peste, pela dor e pelo nada. Queria, mesmo assim, como antes, beijar-lhe ainda a boca forte e vermelhalouco. Neste fim de tarde cinza, doía lhe a cabeça tontacafé demaiscafé de menosnoites mal dormidas. Querer contido. Doíam-lhe as dobraduras do corpo. Esticou a espinha e espiou. Pela janela, um menino que brincava entre sacos de lixo com pedaços de vidro.

QUATRO

De repente, agora era o branco. Perdera seu perder-se nele “outro”.

CINCO

Era também aquele niilismo burro que corrompera tudo. Aquilo que o tornara cínico e seco. Sem esperança. Duro. Mesmo lembrando do bonito, do seu encontro em perder-se no outro e pelo outro,...

Mastempos aquela coisa lenta, misteriosa e triste foi invadindo aquelas duas carcaças-corpos com lama nos olhos. Era a angustiosa roseira presa na gargantaum misto de tédio, medo e revolta. Por que afinal não se pode mais ser feliz para o resto da vida. Paz, segurança e compaixão são mentiras – cínicas e deslavadas. Utopias desiludidas.

Ele e o outro não se viam com os mesmos olhos. Eram agora eles outros-outros separados. Distanciados e brancos. E os olhos eram olhos de lama. Paciência, diriam alguns. A utopia acabou, a História se foi e o que resta, talvez seja apenas uma longínqua “Viens Mallika”- suspirosa. A saudade é hoje mais triste e, sobretudo. Cínica.

Da lama – surgiu o feto. Feto, triste, branco e deformado. Seu desejo desesperado - por outras carnes aparvalhadas, por outros perderes possíveis. Por outros quereres. Mas não conseguia. Eram, um, dois, três, quatro ou cinco. Não se aproximavam e nem ele se perdia como queria.

Todos longe no seu ego melancólico. Lembrava-se sempre de “Ah! Ridi, Pagliaccio, sul tuo amore infranto!” E via-se piegas e bobo. Junto da carne de diversos outros que não eram definitivamente aquele seuoutro” de antesmas que queriam, certamente, perderem-se nele e com ele. Mas não dependia deles – um, dois, três, quatro ou cinco. Tinham apenas alguns momentos, minutos e segundos dele. Umoi”, um perto de mão e diretodireito - para a cama. Pernas abertas, sexo – plastificado e tristepor que eram apavorados com a peste. Depois do gozo - era vestir as calças e sair por . Afogado de solidão desinibida e úmida. Mostrando a todos, pelas ruas da cidade esse seu filho-feto branco e gélido. Solidão, desejo e a ternura do “outro” perdidos na lama.

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