Augusto Patrini Menna Barreto Gomes
História – FFLCH – LabTeo (bolsista FAPESP)
Este artigo pretende fazer uma breve análise dos comentários feitos por Lucien Febvre e Fernand Braudel a respeito da obra “A Decadência do Ocidente”[1], de Oswald Spengler. Este livro, pontilhado de fulgurantes imagens vitalistas, comparações ousadas e algo de arrogância profética, foi bastante influente no mundo germânico dos anos 1922 – 1929. Sua interpretação sobre a história, cultura e civilização ecoou fortemente entre leitores cultos de língua alemã, como testemunha-nos L. Febvre:
Vejo ainda nas vitrinas renanas as pilhas impressionantes feitas com esse in-octavo: elas se desmanchavam como neve ao sol. Em algumas semanas o nome de O. Spengler estava célebre no mundo germânico – e seu livro conhecia o maior sucesso já alcançado na Alemanha por um livro de filosofia desde Gibbon. Sucesso ainda não seria bem o termo: seria necessário falar-se de revelação.[2]
Já no mundo anglo-latino, sua recepção foi bem mais timida. Entretanto pode-se afirmar que posteriormente as ideias contidas em “A Decadência do Ocidente” estiveram ressoando em Arnold Toynbee, André Malraux e Ortegat y Gasset[3].
Peter Burke chega arriscar em “A Escola dos Analles” que mesmo Braudel repercute algumas ideias spenglerianas:
Sua concepção [a de Braudel] de civilização material merece também uma análise mais acurada. A ideia de um domínio da rotina (civilization), contra um domínio da criatividade (Kultur), foi muito cara a Oswald Spengler, um historiador com o qual braudel tem mais afinidades do que as geralmente admitidas.[4]
Talvez pela popularidade e influência da obra de Spengler no mundo de língua alemã, L. Febvre e Braudel escreveram artigos sobre seu principal.
Lucien Febvre em “Deux philosophies opportunistes de l´histoire: de Spengler à Toynbee” empreende uma crítica ácida ao livro, apontando nele características negativas como o “antiintelectualismo resoluto, a noção heróica de destino, o antiesteticismo, o frênio da criatura humana diante da majestade, a ampla majestade da história”[5] Para o fundador dos annalles é como que se estas características decorressem de um tipo de zeitgeist pré-nazista, que deram a Spengler a possibilidade de responder aos anseios ideológicos de uma Alemanha pós 1ª Guerra Mundial, ressentida com o liberalismo ocidental e as concepções hegemônicas de progresso e ciências naturais. Trata-se, deste modo, para Febvre, de uma teoria da história “totalitária”:
Todos os fatos humanos de uma mesma época se integram em “culturas”. Essas culturas são seres vivos. São digamos plantas – que nascem, se desenvolvem, murcham e morrem. Seu destino começa quando o impulso, a proliferação de tudo o que elas englobam em sua unidade, se fazem anárquicos e desregrados. Além disso, ainda que todas realizem na mesma ordem as mesmas etapas – cada uma delas difere profundamente de suas vizinhas pela própria alma que a anima.[6]
Lucien Fevbre vê essa concepção de histórica como organicista como expressão do “anúncio do declínio da civilização” e do “ódio pessimista da Kultur alemã da época” – era quilo que os alemães desejavam escutar dos historiadores profissionais alemães. Mas como estes, nesta época, encontravam-se ilhados em um antiquado elitismo acadêmico, Spengler pôde espezinha-lhes oferecendo à psicologia ressentida dos alemães “imagens vivamente coloridas”, e “regras da analogia” da decadência. Já que nas palavras de Febvre os alemães preferiam “sentir confusamente” à “compreender com toda a lucidez”.
Lucien Febvre termina seu duro artigo afirmando que Spengler de forma burlesca – afastou-se explicitamente do nacional-socialismo em seu último livro “Anos de Decisão”[7], mas continuou oferecendo conselhos aos seus líderes. Este posicionamento político, de acordo com Febvre, não teria acontecido por que o nazismo não era mais compatível com as teorias pessimistas de Spengler - posto que, uma vez no poder, o hitlerismo necessitava do otimismo redentor do “recomeçar, novo homem” (Neubeginnen, Der neue Mensch).
Essa interpretação do fundador dos annalles sobre a obra de Spengler é provavelmente fortemente marcada pelo clima de disputa e sofreguidão da época da 2a Guerra Mundial. De alguma forma, o artigo diz muito sobre a obra de Spengler, mas também diz muito sobre o tempo e o lugar do historiador Lucien Febvre. Considero que sua crítica é eminentemente política, e não teórica ou historiográfica.
Já o olhar de Braudel, é muito menos marcado por essa sofreguidão, pois escreveu sobre Spengler muito após a guerra. Braudel percebeu as inovações metodológicas contidas em “A decadência do Ocidente”, e julgou o livro de forma mais tranquila. Em seu texto “A História das Civilizações: o passado explica o presente”[8], de 1959, notou acertadamente que a compreensão da Kultur spengleriana relaciona-se com aquela concepção medieval relativa à alma, e não como muitos intérpretes pensam, ao organismo biológico:
[...] cada cultura particular é um ser unitário de ordem superior’: o maior personagem da história. Mas personagem não é um termo conveniente, nem organismo tão pouco. Como se acentuou recentemente, as culturas, no pensamento de spengler, são seres; não seres no sentido de biologia, mas antes no sentido do pensamento medieval: corpos inertes se uma alma os não animar (a Kulturseele). O que este livro veementemente fustiga sob o nome de cultura do ocidente é decididamente, um ser místico, uma alma.[9]
Braudel também percebeu que a questão central na concepção de história de Spengler é que “uma cultura é um encadeamento ou, como diríamos na nossa gíria atual, uma estrutura dinâmica e de larga duração.” Além disso, ele não deixa de ressaltar o caráter curioso do método comparativo spengleriano que coloca em “contato” cronologicamente e geograficamente culturas históricas diversas, sem deixar de observar, entretanto, o problema de como estabelecer o ponto de contato entre essas várias culturas:
Ao definirmos uma cultura através de uns quantos traços originais, ou mais ainda pelo feixe particular que estas originalidades formam, o método do historiador das civilizações ganha em simplicidade: reduz-se a extrair, a estudar estas peculiaridades. Depois não tem mais que pô-las em relação umas com as outras e compará-las, a fim de comparar assim as próprias civilizações. A partir destas premissas, vemo-nos arrastados a estranhas viagens através do tempo, dos séculos, dos milênios; viagens que sugerem as descrições e as antecipações que, agora, nos permitem as viagens cósmicas. Subitamente fora das leis da gravidade, todas as bagagens, todos os corpos são arrancados do seu lugar e flutuam juntos livre e estranhamente.[10]
O problema de Spengler, para Braudel, não é seu método, mas sua pretensão em dar a História uma ordem coerente marcada por fases determinantes e inevitáveis - ao colocar em destaque “o destino dos valores espirituais” a que reduz as culturas e as civilizações. Algo, que hoje, parece-nos no mínimo irracional ou determinista.
Uma teória da história totálitária?
Mas, como devemos entender as ideias de Spengler? Como classificá-las dentro das teorias da história? Precisamos, como o faz Lucien Febvre, definí-lo politicamente? Seria acertado classificá-lo nestes parâmetros?
O declínio ou a decadência são temas muito comuns ao romantismo. Em certa medida, Spengler foi parte da tradicional Kulturpessimismus alemã. Por isso, muitos intérpretes o relacionam ao romantismo, assim como o faz Le Goff[11]. Às vezes, Spengler é considerado como o último romântico filosófico, ou como um precursor do estruturalismo, ou simplesmente, já em termos mais políticos, tachado como um teórico protonazista.
O historiador Jeffrey Herf[12], em seu livro “O Modernismo Reacionário” aborda o conteúdo político dos escritos de Spengler e os classifica como um tipo ambíguo de modernismo reacionário. Sua hipótese é que em sua principal obra Spengler conseguiu unir valores opostos, como crítica à sociedade moderna, à democracia liberal e ao capital com a valorização da técnica, do nacionalismo e da Kultur. Não se pode negar que havia em Spengler (assim como seus colegas defensores da revolução conservadora) uma vontade de mudar, ao modo nietzscheano a situação política, intelectual e econômica da Alemanha. Spengler parece ter defendido, principalmente em seus livros menores, a ordem técnica de massa, a modernidade técnica e social, como vetor de uma mobilização total. Isso tudo, não obstante suas várias críticas à modernidade.[13]
Herf afirma sobre A Decadência do Ocidente:
A obra está repleta de conhecidos itens do repertório antimodernista, mas também apresenta um tema que recebia menor atenção, qual seja, a conciliação de sentimentos românticos e irracionalistas com o entusiasmo pelo avanço técnico. Os íntimos laços pessoais de Spengler com os industriais alemães e os revolucionários conservadores[14] do Clube de Junho alimentavam sua síntese ambígua de técnica e irracionalismo, que mais tarde propiciou aos engenheiros papel fundamental dentro da nova elite cuja tarefa era resgatar a Alemanha do liberalismo da República de Weimar.[15]
Ou seja, nesta obra, mas, sobretudo seus livros posteriores, Spengler conciliou os valores da Kultur com o nacionalismo e a defesa da técnica. Spengler via o nacionalismo e a tecnologia como expressões da intuição e da vontade[16] – para ele, motores da vida e da História (Destino).
É interessante notar que para a perspectiva spengleriana, a ciência encarnaria os mesmos aspectos rituais e míticos daqueles da religião, esta posição expressa, nas palavras de Herf, uma “sensação de mundo faustiana”, “um impulso para se espalhar através dos espaços naturais da terra a fim de sobrepujar a resistência e amorfia.”[17] O desenvolvimento das técnicas modernas representava para o autor a renovação do mito e reencantamento do mundo. O mundo da forma – política, cultura, economia etc - seria apenas expressão daquilo antigo e imanente - a alma cósmica. Essa visão é característica de uma aceitação e de uma rejeição seletiva da modernidade.
É claro que Spengler foi também, como deixou claro Lucien Febvre, um “profeta” que anunciou a ascendência das massas, dos exércitos, de um partido, e o advento de novas ditaduras[18]. Defendeu mesmo a conciliação entre o Volk, os operários e os conservadores, os valores essenciais da Prússia – coração da Alemanha[19].
Herf afirma sobre a visão política de Spengler:
(...) a originalidade de Spengler situava-se na amálgama de um panorama do passado com uma visão de mito e símbolo que indicava a possibilidade de uma nova era de política estetizada amanhecendo no futuro. Mais ainda, ver os avanços da técnica moderna através dos prismas de semelhante simbolismo transformava fatos profanos da vida cotidiana em fatos sagrados e transcendentais.[20]
Essa visão estabelecia um tipo de anticapitalismo de direita, cujo principal elemento a ser criticado não era a máquina, mas o dinheiro, enquanto fator desenraizado, e parasitário.
Não resta dúvida de que seus dos repetitivos volumes estejam cheios de queixas antimodernistas padrão. Mas a obra [A Decadência do Ocidente] não termina em nota de desespero e resignação. É um apelo à ação, o manifesto de um modernismo fendido. A política, o sangue, e tradição devem se levantar para derrotar o poder da Geist e do Geld.[21]
Herf também conclui que Spengler enxergava os problemas de sua época e da história por meio do “prisma de mitos e de símbolos” que possibilitavam tornar a realidade muito menos complexa do que de fato era. Essa visão permitiu justamente ligar a tecnologia à tradição romântica e irracionalista, e o nacionalismo, com ideias de socialismo e revolução. Entretanto, em muitos textos, Spengler acaba por exibir um tipo lúgubre de estoicismo, onde na História a tragédia apresenta-se sempre como inexorável.
É justamente esse seu pessimismo trágico que acabou afastando-o de intelectuais como Ernest Jünger[22], e dos próprios nacional-socialistas, que “acreditavam na sobrevivência do homem faustiano no moderno mundo tecnológico.”[23]
Conclusão
Assim, admitamos que politicamente Oswald Spengler era um homem de direita, um conservador. Contudo, considero, que esta conclusão, já há muito tempo apontada por Lucien Febvre, e reforçada na obra de Herf, não invalida em absoluto o estudo acurado da Teoria da História contida em “A Decadência do Ocidente”. Fenômeno editorial, cultural e histórico-filosófico, esta obra deve ser estudada em seu aspecto histórico-teórico, e não apenas no político. Não é possível que um autor que foi um imenso fenômeno intelectual no começo do século passado, seja ainda praticamente um desconhecido entre historiadores brasileiros.
Como historiadores sabemos que a história não é feita somente de flores, e assim, não podemos permitir que preconceitos ideológicos nos afastem de teorias, obras ou documentos históricos que podem contribuir para o enriquecimento do conhecimento e do fazer historiográfico.
[1] SPENGLER, O. L´Déclin de L´Occident. Tomos I e II. Paris: Gallimand, 1976.
[2] FEBVRE, Lucien. Combats pour l’histoire IN: MOTA, Carlos Guilherme. Febvre. São Paulo: Editora Ática, 1978. p. 131.
[3] É possível também destacar que essa obra influenciou autores importantes, como o são por exemplo: Thomas Mann, Ernst Jünger, Emil Cioran, Martin Heidegger, Ludwig Wittgenstein, Arnold Joseph Toynbee, e Richard de Coudenhove-Kalergi.
[4] BURKE, Peter. A escola dos Annales. São Paulo, Ed. Unesp, 1991. p. 60
[5] FEBVRE . Op. Cit. P. 135.
[6] Op. Cit. P. 132
[7] SPENGLER, Oswald. Anos de Decisão. Porto Alegre, Edições Meridiano, 1941.
[8] IN: BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais. Lisboa, Editora Presença, 1990.
[9] Op. Cit. p. 100.
[10] Op. Cit. P. 99.
[11] LE GOFF, Jacques. História e Memória, Campinas: Editora da UNICAMP, 1990
[12] Herf, Jeffrey. O Modernismo Reacionário: Tecnologia, Cultura e Política na República de Weimar e no 3º Reich. São Paulo: Editora Ensaio/Editora da Unicamp
[13] Essa postura política marcou-o com o rótulo de filósofo e historiador filo-nazista, e de alguma forma transformou sua teoria da História em um tabu teórico - responsável por seu relativo banimento entre historiadores e filósofos.
[14] grifos meus.
[15] Idem, p. 63
[16] Idem, p. 68
[17] Idem.
[18] Koehn, Barbara, La Révolution conservatrice et les élites intellectuelles, Presses universitaires de Rennes, Rennes, s/d
[19] SPENGLER, O. Pressentun und Sozialismus. München, C. H. Beck.Muünchen, 1924.
[20] Herf, Jeffrey. O Modernismo Reacionário: Tecnologia, Cultura e Política na República de Weimar e no 3º Reich. São Paulo: Editora Ensaio/Editora da Unicamp, p. 69
[21] Idem, p. 71 - Herf afirma ainda falando sobre Spengler e o ambiente intelectual da época : “ A guerra e o nacionalismo ligavam as tradições românticas e irracionalistas da Alemanha a uma forma defeituosa e reacionária de modernismo, um apelo aos ditadores da política para porem fim ao domínio do liberalismo econômico sobre a vida social.” P. 72
[22] Ernst Jünger (1895 1998) , escritor, filósofo e entomologista alemão.
[23] idem, p. 83