Flor
azul
I
Nunca
achei que alcançaríamos um
sentimento assim. No meio
de todo esse barulho,
ônibus, carro, buzinas,
pessoas. Há tanto ruído
e apesar disso estamos flutuando no meio
de tudo como dois
espíritos em harmonia
com todo o resto,
dois corpos sem
matéria permeados por
todos os objetos sólidos
que nos perpassam sem
causar ruptura alguma. Mas,
então, o que é que
temos? O que é esse sentimento?
A flor azul. Sim,
a flor azul, apertada
contra meu peito
enquanto caminhamos em
plena Avenida Paulista
no horário do rush,
de mãos dadas.
Pela
primeira vez nos
sentimos vivos. E você? Você
consegue ouvir todo o resto?
Sim, e você? Sim.
E ficamos ouvindo. Caos e ordem.
O caos na ordem. Não
há ordem sem o caos,
mas há a ordem. Há
a ordem. Tem de haver.
Agora tudo parece tão
claro! Tão... tão...
(Um grito,
uma forte batida
de carro em
dois corpos
sólidos.)
II
Tudo o que
Pedro e Paulo sabiam era que
era preciso viver.
Por quê? Talvez
porque era o que
se tinha, e nada mais.
Tinham alcançado a consciência de que
era preciso arrumar
um modo de sobreviver,
uma brecha através da
qual pudessem se esgueirar furtivamente.
E de que a morte era
o mais sincero dos acontecimentos,
pois não havia mistérios
por trás dela.
Contudo,
sabiam ser impossível a ausência
de interferência na harmonia
do encontro de ambos.
Havia sempre o ruído de fora
– de modo que
decidiram, assim, dar-lhe as boas-vindas também.
Ouviam, enquanto caminhavam como
dois recipientes cuja
vedação já havia se rompido para sempre,
a realidade irromper violenta
como uma enchente e transbordar.
E embora houvesse vez
ou outra tentativas
– frustradas e que se tornavam cada
vez menos frequentes
– de um passo só
deles, tinham de algum modo
que compassá-lo com todo
o resto.
Pois não era muito comum sentirem-se
trapaceados quando, de repente, ao pegar o metrô, por exemplo, percebiam a
tolice de tudo o que pensavam? Seria, então, um momento de imersão ideológica?,
Paulo perguntava-se. Não sei, respondia Pedro. Talvez, ele acrescentou, não
tenhamos conseguido superar a estrutura binária das coisas. O quê?, Paulo
virou-se surpreso. Tinham acabado de fumar um beck antes de sair de casa.
A-es-tru-tu-ra-bi-ná-ria-das-coi-sas, repetiu Pedro lentamente. (Silêncio.)
De qualquer forma, é preciso viver, continuou dizendo Pedro, que tinha o hábito
engraçado de às vezes puxar Paulo adiante pelas mãos, embora sozinho, Paulo
sabia, ele jamais fosse.
Mas isso era no começo. A verdade
(?) agora é que tinham superado a binariedade que constrangia suas mentes e sua
relação. É que já tinham sido tanta coisa! Pedro já foi um ativista do
Greenpeace, do movimento gay, teve um blog muito interessante sobre a vida, foi
voluntário em Moçambique, voltou para o Brasil e decidiu fazer Ciências
Sociais, largou o curso, fez Filosofia, largou, e depois, bebeu, fumou,
experimentou, e depois. Quanto a Paulo, já não tinha alcançado o estágio mais
completo da fé? De fato, às vezes brincava de acreditar entre uma coisa e
outra, e dia era budista, dia era ateu, dia era católico ou espírita ou drogado
ou prostituto ou. E realmente acreditava.
E havia a natureza. Pedro tinha o
hábito de, enquanto caminhavam, ao topar com uma árvore – de repente arrancou
uma folha e a fechou entre as mãos para senti-la consigo. E Paulo tinha o
hábito – de repente viu-se esperando o momento em que Pedro iria, enquanto
estivesse distraído, fazer cosquinha com a folha em seus ouvidos e ele se
irritaria, rindo. Tinham o prazer de possuir e sentir a natureza, mas
destruí-la ao mesmo tempo num só gesto.
Pois não era preciso ser feliz
também?, comentavam em silêncio e sem grandes pretensões, lembrando-se do que
uma vez tinham dito a eles. Assim, quando perceberam que tudo era uma
construção, que também o amor era uma construção, decidiram conscientemente
construir. Pois, é claro, a construção é também a realidade. E agora até mesmo
“Eu te amo” eles conseguiam dizer um pro outro.
(À noite, deitados na cama antes
de dormir, costumavam sentirem-se protegidos um com o outro na vastidão da
madrugada, dos estranhos barulhos e ruídos que ouviam distantes e próximos, sem
saber ao certo de onde. Nesse momento, então, eles cresciam dentro do seu
pequeno quarto de pensão, cresciam além de todas as paredes e telhado e portas
e janelas, além de sua casa, rua e bairro, e abarcavam toda a cidade com seus
prédios, a madrugada e seus sons. Mas dormiam e não se lembravam disso no dia
seguinte.)
E então veio a flor azul.
Estavam conversando distraídos, caminhando de mãos dadas, quando
III
-
Você não acha que.
-
Não sei, eu.
-
É só que.
-
Sério?
-
Por que não?
(Silêncio.
Uma ambulância abria espaço entre os carros e um mendigo sem pernas pedia
esmola e um homem de terno gritava furioso no celular e duas meninas riam
chupando duas casquinhas do McDonald's e fumaça de cigarro e.)
-
Você acha que chegaremos
a algum lugar assim?
-
Isso importa?
-
Mas é preciso.
-
Sim.
(Pedro e
Paulo de repente pararam. Um muro coberto de flores azuis. E viram. Frágil e
delicada uma delas se desprender e cair lentamente sobre a calçada.)
Pedro, em lágrimas, correu para
pegá-la antes que fosse dilacerada pela multidão, enquanto Paulo, tremendo,
chorava sem saber o que fazer. É pra você, disse Pedro, oferecendo-a a Paulo. (Soluços.)
Mas Paulo não podia aceitar. Ela é nossa, respondeu. (Soluços.) E
Pedro, com delicadeza, mal tocando-a entre seus dedos grossos e rígidos,
concordou. De modo que eles só podiam, inevitavelmente, compartilhá-la. Afinal,
sentiram, o resultado de tudo aquilo era a flor azul, as lágrimas agora
escorrendo não de tristeza, mas da emoção que tinha desabrochado da flor que
tinham colhido do concreto.
IV
Mas havia o momento. O momento e
a morte. A flor azul.
V
Se alguém do alto de um prédio visse
aqueles dois entre o turbilhão de autômatos inexoráveis, talvez os visse como
dois pontinhos luminosos de mãos dadas. Mas não era bem assim – eles eram um
só, entre si e entre todos. Eram o barulho e o movimento, e eram eles mesmos
também. Eram sintomáticos. E um descuido tão estúpido e pequeno enquanto assim
se mantinham revelou-lhes a fatalidade da contingência das coisas.
Pedro e Paulo, enquanto caminhavam
pela Avenida Paulista, encontraram uma flor azul. De mãos dadas, flutuavam
juntos sem se darem conta de que o sinal estava fechado para eles. Atravessaram
a rua e foram atropelados por um ônibus. Ambos sofreram o choque da batida
calados, mas. Não.
Diz...
a flor azul, ela
Estamos
morrendo...
apesar do sangue e da dor que
eles sentiam
Agonizamos
no asfalto, mas...
como continuar, como seguir em
frente, quando
É
preciso...
a flor azul, ela
Diz...
mas dói
A
dor é inevitável...
quando... não... há... saída?
A
flor azul...
ainda a apertamos firme contra
nosso peito ensanguentado.