quinta-feira, 13 de agosto de 2009

“Não pode haver conciliação com a indignidade”, diz Fábio Comparato

“Não pode haver conciliação com a indignidade”, diz Fábio Comparato

“O modo como a lei foi interpretada no início em 79 pelos políticos da oposição inclusive, não pode permanecer como está. É preciso uma decisão do Judiciário que ponha fim nesta confusão”

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Por Tatiana Merlino

Após três décadas da promulgação da Lei de Anistia, em 28 de agosto de 1979, ela continua sendo utilizada como pretexto para que o país não julgue e puna os torturadores da ditadura civil militar (1964-1985). Para o jurista e professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, Fábio Konder Comparato, o suposto benefício que a lei concede aos torturadores não pode ser admitido “nem perante a ética nem perante o direito”. Comparato acredita que “o modo como a lei foi interpretada no início em 79 pelos políticos da oposição inclusive, não pode permanecer como está. É preciso uma decisão do Judiciário que ponha fim nesta confusão”.

Caros Amigos- Quais são as pendências que ficaram no país desde a promulgação da Lei de Anistia, de 1979? Fábio Comparato - É preciso compreender a Lei de Anistia no seu contexto político. Em primeiro lugar, não devemos esquecer que a política no Brasil é uma atividade que sempre se desenvolve dentro de um grupo fechado, onde só são admitidos os profissionais da área. O povo sempre foi excluído desse clube, até mesmo dentro da esquerda, que em sua maioria sempre entendeu que o povo é incapaz, que ele precisa de um tutor, que o partido é a vanguarda da classe operária. As disputas dentro dos clubes são sempre resolvidas por meio de acordos ou conciliação. Conciliação é a palavra chave na política brasileira. Nos outros países, os grandes conflitos se resolvem violentamente. No Brasil, tudo termina em conciliação.

Quando da decadência do regime militar, iniciou-se um diálogo entre os políticos excluídos do regime, vários exilados e dirigentes do regime: o objetivo desse diálogo não era criar uma coisa nova, mas voltar ao estado anterior ao golpe militar. Foi esse diálogo que desembocou na Lei de Anistia. É preciso dizer que os políticos excluídos do regime militar quiseram realizar a famosa conciliação nacional. É por isso que eles aceitaram a anistia dos crimes hediondos cometidos durante o regime militar contra os opositores políticos. Que eu me lembre, não havia um só político que fosse contrário a se conceder anistia aos criminosos.

No entanto, essa anistia não pode ser admitida nem perante a ética nem perante o direito. Sob o aspecto ético, ela é indecente. Em primeiro lugar porque é uma auto absolvição. O general Figueiredo ainda estava no poder, o Congresso ainda estava sob a pressão absoluta dos dirigentes militares e eles mesmos, como condição para sair do poder, quiseram se absolver.

Em segundo lugar, essa anistia é indecente porque os criminosos do regime militar, todos eles, não só os militares, mas os banqueiros, jornalistas, políticos civis, todos esses criminosos não foram identificados e nem foram chamados publicamente a reconhecer seus crimes. Se isso tivesse sido feito, ainda se poderia dizer que houve presunção por parte do povo de aceitar a anistia. Mas, na verdade, o povo jamais foi consultado para dizer se aceitaria ou não essa absolvição geral e abstrata sem identificação dos criminosos.

Caros Amigos- Essa lei precisa ser reinterpretada?

Fábio Comparato - Sob o aspecto jurídico, essa lei de anistia é incompatível com a Constituição de 1988. O que é preciso entender juridicamente é que uma constituição nova cria um regime novo, e portanto as leis anteriores à constituição só continuam em vigor se forem compatíveis com o novo regime. Daí a razão do conselho federal da OAB ter ingressado com uma argüição de descumprimento de preceito fundamental no Supremo Tribunal Federal. O que se pediu e se pede é que o STF diga se a anistia aos torturadores, assassinos, estupradores de presos políticos durante o regime militar é ou não é compatível com a Constituição. No artigo quinto, inciso 43 a Constituição considera a tortura um crime inafiançável, não passí vel de anistia. Então, qual é a única maneira de se preservar a lei de anistia? Interpretá-la no sentido de que ela só se aplique àqueles que cometeram crimes políticos. Tortura não é um crime político. E se o STF achar que a lei de anistia se aplica, se extenda aos criminosos do regime militar, nesse caso haverá uma ofensa grave ao sistema americano de direitos humanos.

O sistema universal de direitos humanos não admite a auto anistia, não considera que a tortura seja um crime político, e portanto, suscetível de anistia.É evidente que a lei de anistia tal como ela foi interpretada no inicio em 79 pelos políticos da oposição inclusive, não pode permanecer como esta. É preciso uma decisão do judiciário que ponha fim a essa confusão.

Caros Amigos- Por que no Brasil a reparação teve um aspecto majoritariamente econômico?

Fábio Comparato- Foi para que todo mundo se contentasse com isso e não exigisse o esclarecimento sobre a lei anistiar torturadores. Isso também faz parte do espírito de conciliação da política brasileira. Acontece que não pode haver conciliação com a indignidade. Isso é degradante e é nesse sentido que estamos lutando para que haja uma decisão judicial que também será uma medida pedagógica de educação do cidadão brasileiro.

Caros Amigos- Entre as pendências desse período, além da interpretação da lei, critica-se que não houve abertura dos arquivos...

Fábio Comparato- Sim, mas isso está dentro daquela ideia de que é preciso virar a página. Não se pode esquecer que no início da Republica, Ruy Barbosa mandou destruir todos os documentos referentes à escravidão, como o número de escravos, idade, localização.. É sempre a mesma tendência brasileira de não querer olhar o passado. Isso é muito grave porque deforma a consciência, sobretudo dos jovens, que não sabem minimamente os horrores da escravidão, assim como não sabem o que ocorreu no regime militar. É por isso que esses crimes se repetem. Caros Amigos- O que o senhor acha da comissão que foi criada pelo ministério da Defesa para buscar as ossadas dos militantes da guerrilha do Araguaia?

Fábio Comparato- Para dizer o mínimo, não corresponde ao princípio democrático, e no caso, o grande ofendido foi o povo brasileiro. O povo não tem um só representante para acompanhar essas pesquisas, e evidentemente não se pode pretender que o principal interessado em escondê-las, que é a corporação militar, tenha isenção de ânimos para chegar à verdade.

Caros Amigos- Como o senhor compara o andamento da responsabilização aos torturadores no Brasil e em outros países da América Latina?

Fábio Comparato- Os outros países da América Latina não tem essa tradição da conciliação a qualquer preço, de modo que chega-se sempre a uma solução radical, seja a favor ou contra os criminosos.

Caros Amigos- O senhor acha que todos países onde houve ditaduras militares deveria passar pelo que se chama de “justiça de transição”?

Fábio Comparato- Evidentemente

Caros Amigos- E por aqui não passamos por conta do mesmo espírito conciliatório?

Fábio Comparato - Exatamente

Caros Amigos- Como o senhor vê esse debate dentro do governo Lula: de um lado está o ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial de Direitos Humanos, e o ministro da Justiça, Tarso Genro; e de outro o ministro da Defesa, Nelson Jobim, o presidente do STF, Gilmar Mendes; e o chefe da Advocacia Geral da União (AGU), José Antonio Dias Toffoli...

Fábio Comparato- Há muito tempo que não me interesso pelo governo Lula porque o poder é o principal corruptor. Os homens que estão lá e não querem entrar em conflito com ninguém. O Lula é amigo dos militares, dos banqueiros, dos latifundiários... Ele não tem interesse nenhum em resolver essa questão, que é polêmica.

Caros Amigos- O que impede que se movam ações penais contra os torturadores?

Fábio Comparato- Nada. Mas para se preservarem, os juízes, que seguem uma carreira e são de certa maneira controlados pelos superiores, como desembargadores, ministros, preferem declarar que é necessário aguardar a solução da argüição. Aí eles não se comprometem. O grande defeito do magistrado não é a corrupção, é a covardia.

Tatiana Merlino jornalista, é editora adjunta da Revista Caros Amigos


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