Em primeiro lugar, cumpre destacar que o caput do art. 5º da Carta Magna celebra o chamado princípio da igualdade formal, segundo o qual todos os seres humanos são iguais em dignidade perante a lei, sem distinções. De tal mandamento, importa dizer que o Estado não deve apenas evitar as disposições discriminadoras, mas que também deve ter uma atuação positiva no sentido de coibi-las – e outra não poderia ser a conclusão, tendo em vista o teor de seu art. 3º, III –, se necessário até mesmo por meio da lei penal (RIOS, 2011). Apenas por meio desta atuação é que a sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos descrita em seu preâmbulo pode se efetivar.
Devido a tal, a política criminal brasileira tem-se marcado pelo progressivo combate ao preconceito, seja ele racial, religioso, ou de outra natureza, de forma que a criminalização da homofobia apenas segue esta tendência (BOTTINI, 2010). Tal entendimento levou o Ministro Marco Aurélio de Mello (2007) a eloquentemente questionar “Se a discriminação racial e a de gênero já são crimes, por que não a homofobia?”.
Deve-se destacar, entretanto, que o preconceito – ou antes, os preconceitos –, ainda que ad totum rechaçados na Carta Magna, são antes de uma categoria jurídica, um constructo histórico-social, de forma que certas discriminações são mais ou menos aceitas em nossa sociedade, o que acaba por refletir no tratamento legal de determinada questão.
Neste sentido, cumpre destacar que a própria Lei Maior, no seu art. 5º, XLII, determina expressamente a criminalização do racismo, não por ser este preconceito mais grave que outros ou a igualdade étnico-racial mais importante que, por exemplo, a igualdade de gênero. Tal previsão advém de um processo histórico específico que terminou pela incorporação formal das demandas dos movimentos negros na constituinte.
A Lei 7.716/89, a chamada Lei do Racismo, se num primeiro momento tão somente concretizava tal mandamento constitucional, acabou por se tornar a base jurídica da criminalização de qualquer forma de discriminação, por meio da inserção em seu primeiro artigo da em função de procedência nacional e por religião.
Tal situação levou o criminalista Guilherme de Souza Nucci (apud VECCHIATTI, [s.d.]) a afirmar que o termo racismo contemplaria toda ideologia que prega a superioridade ou a inferioridade de um grupo em relação a outro, ao comentar o conceito jurídico-constitucional de “raça” com base na decisão do STF no caso Ellwanger (HC 82.424/RS)[1].
De tal entendimento resulta que a inserção da homofobia na Lei do Racismo, longe de ser incoerente, visa apenas à sistematização do Direito Penal por meio de um único diploma que disponha sobre a criminalização das discriminações. Assim a lei estará punindo não apenas homofobia, mas também o sexismo, a discriminação religiosa, a xenofobia, etc. com as mesmas penas previstas para os casos de segregação racial (BOTTINI, 2010).
Esta igualdade entre as penas busca a concretização do princípio da proporcionalidade, uma vez que a punição cominada a determinado delito deve situar-se em patamar similar àquela imposta a outro delito que externe semelhante danosidade social (FELDENS, 2007). Com isto, procura-se demonstrar que o Estado brasileiro além de não tolerar nenhum tipo de discriminação não faz distinção entre estas.
O montante de pena dos crimes de discriminação (tanto daqueles constantes da Lei do Racismo, quanto o da chamada injúria discriminatória – Art 140, §3º do CP), por sua vez, recebe críticas de parte da doutrina por ser excessivamente rigoroso. Luiz Regis Prado (2010) especificamente conclui que a pena da injúria discriminatória é desproporcional frente ao bem jurídico que pretende tutelar – honra –, comparando-a a punição prevista para o homicídio culposo, que tutela a vida, bem jurídico axiologicamente mais elevado.
Tais críticas, entretanto, não permitem que a homofobia seja criminalizada com penas reduzidas em relação a outras formas de discriminação, tendo em vista que isto resultaria em dois problemas: de um lado, redundaria na declaração de que a homofobia é menos grave – isto é, mais aceitável – do que outras formas de preconceito; de outro lado, se aquela pena elevada foi a punição que o legislador considerou adequada para a tutela do bem jurídico igualdade racial, liberdade religiosa, etc., faz-se mister concluir que uma pena reduzida para os crimes de ódio devido ao preconceito sexual importaria, neste sistema, em lesão ao princípio da vedação da proteção deficiente, segundo o qual o legislador pode vulnerar determinado direito fundamental ao não protegê-lo de forma suficientemente efetiva (PULIDO, 2007).
Como já mencionado, do princípio da ultima ratio extrai-se que se outras formas de sanção jurídica ou de controle social protegerem suficiente determinado bem jurídico, a criminalização é inadequada e não recomendável (BITTENCOURT, 2009). Neste sentido, cumpre assinalar que o tratamento da questão não é homogêneo no Brasil, por ausência de uma lei nacional. No entanto, existem importantes leis visando combater a discriminação em alguns Estados e Municípios, como por exemplo, as constituições de Mato Grosso, Sergipe e Pará, que expressamente proíbem a discriminação em função de orientação sexual, além de haver legislação específica em cinco Estados (RJ, SC, MG, SP, RS) e o Distrito Federal.
No âmbito do Estado do Rio de Janeiro, a Lei nº 3406/00 prevê penalidades para estabelecimentos comerciais e agentes públicos que discriminem indivíduos em função de sua orientação sexual. Para aqueles as punições podem variar de multa até a interdição do local, e para estes podem provocar até mesmo o afastamento definitivo do servidor.
Todavia, uma lei nacional acerca do tema se impõe, uma vez que estados e municípios em nosso atual sistema federativo possuem pouca competência para lidar com questões deste gênero e sua iniciativas, embora de importância inolvidável, possuem baixa efetividade devido a sua aplicação geográfica reduzida e tratamento pontual do problema.
Este tratamento legislativo em âmbito nacional é, ademais, premente. A violência de cunho homofóbico atinge níveis elevados no Brasil e, embora não existam estatísticas oficiais sobre o problema, os que se debruçam sobre o tema são unânimes em afirmar que o país é recordista em casos de violência contra homossexuais, travestis e transexuais (GGB,2011).
De acordo com o Ministro Marco Aurélio de Mello (2007), o Brasil é campeão mundial em se tratando de homofobia, com mais de 100 homicídios cometidos anualmente. Segundo dados coletados pelo Grupo Gay da Bahia (2011), em 2010 foram cometidos 260 homicídios motivados por homofobia, sendo a região Nordeste a que apresenta mais casos. Já a UNAIDS – órgão da ONU para a questão da Aids – constata um assassinato homofóbico no Brasil a cada três dias.
Os assassinatos de cunho homofóbico são, ainda assim, apenas uma das facetas do problema, pois os crimes de ódio não se resumem ao homicídio e o preconceito opera por maneiras muito mais sutis do que a violência física, oprimindo o individuo moral e psicologicamente na sua comunidade, no seu trabalho e até mesmo no seio de sua família.
Diante deste cenário, não é demais invocar a tutela penal. Contudo, ressalva-se que esta não intenta promover a conscientização ou ensinar os valores da tolerância e do convívio, que devem ser buscados por outros meios; não lhe é própria uma função verdadeiramente pedagógica, visando apenas impedir a negação de direitos a determinados grupos sociais (BOTTINI, 2010).
Uma das críticas recorrentes feitas à criminalização da homofobia é a de que importaria na criação de “direitos especiais” ou “privilégios”, isto é, num estatuto jurídico mais protetivo à comunidade homossexual do que a outros grupos. Tal entendimento ignora o fato de que as legislações que buscam combater a discriminação das minorias – ainda que não expressamente previstas na Constituição – pretendem apenas buscar a igualdade material em situações concretamente desiguais, tendo em vista que na sociedade existem grupos privilegiados e oprimidos, que não podem ser ignorados. A promoção do principio geral da igualdade em sua esfera material pressupõe a análise das circunstâncias históricas da realidade dada (RIOS, 2006).
Outra dura crítica que estes projetos sofrem é a de que importariam em lesão ao direito de liberdade de expressão, principalmente no âmbito religioso. Estes críticos, não obstante, parecem se esquecer de que não há direito absoluto e que a proibição do discurso de ódio não inviabiliza a liberdade de opinião ou crença, pelo contrário, apenas a efetiva, na medida em que a prática das liberdades num mundo plural pressupõe seu exercício pacífico e tolerante (RIOS, 2011).
Ademais, a delimitação do direito de liberdade de expressão visa também evitar que os discursos discriminatórios – ainda que proferidos do púlpito – acabem por fomentar crimes ainda mais graves. Esta perigosa relação foi explicitada pelo ministro Ayres Britto (2011): “O homofóbico exacerba tanto o seu preconceito que o faz chafurdar no lamaçal do ódio. E o fato é que os crimes de ódio estão a meio palmo dos crimes de sangue”.
Os que tacham o PLC122/2006 de “mordaça gay” e a criminalização da homofobia de “ditadura gayzista” querem fazer parecer que existe um direito de discriminar ou condenar indivíduos unicamente em função de sua orientação sexual, assim como no passado outros discursos quiseram fazer crer que era legítimo e lícito diminuir pessoas em função de sua cor ou sexo. Todavia, tal discurso não encontra respaldo em nossa ordem jurídica e é francamente inconstitucional, sendo fundamental combatê-lo.
Por fim, cabe anotar que uma lei que criminalize a homofobia ou assegure direitos a minorias sexuais pode estar fadada a se tornar uma mera promessa se os aplicadores do direito forem eles mesmos preconceituosos. Destarte, cabe destacar que juízes, promotores, advogados, etc. muitas vezes se valem de clichês e pré-concepções sobre a homossexualidade. Tais discursos, não raro, reforçam a ideia de que as vítimas contribuíram para a perpetração da violência sofrida com sua “vida de risco” ou comportamento sexual “patológico”, “amoral”, definindo desde cedo o rumo da investigação e do processo, mesmo em casos de condenação (RAMOS; CARRARA, 2006).
* Extraído de: CARDINALI, Daniel; FREIRE, Lucas. "Orgulho e Preconceito: notas acerca do tratamento penal da homossexualidade e da homofobia". Contexto Jurídico. Rio de Janeiro: CALC/UERJ, vol. 2, n. 2, 2011, pp. 121-139
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[1] Este caso emblemático discutiu se a edição de livros anti-semitas por Siegfried Ellwanger estaria incluída no crime de racismo. A defesa sustentou que os judeusnão seriam uma raça, não estando, portanto, configurada a conduta típica. Contudo, o STF entendeu que a divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social, não havendo diferenças biológicas entre estes.
Referências
BITENCOURT, C. R. Tratado de Direito Penal: parte geral I. 14ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009, 822 p.
BOTTINI, P. C. Discriminação é a negação do pluralismo. Folha de São Paulo. Tendências/Debates. São Paulo; 04 de Dezembro de 2010.
BRITTO, C. A. Entrevista da 2ª. Folha de São Paulo. Cotidiano, São Paulo; 04 de Julho de 2011.
FELDENS, L. “A Conformação Constitucional do Direito Penal: realidades e perspectivas. In: SOUZA NETO, C. P.; SARMENTO, D. (coords.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 831-855.
GGB. Assassinato de Homossexuais no Brasil – 2010. 2011. Disponível em: . Acesso em: 07/07/2011.
MELLO, M. A. “A igualdade é colorida”. Folha de São Paulo.Tendências/Debates. São Paulo; 19 de Agosto de 2007.
PRADO, L. R. Curso de Direito Penal brasileiro. Vol. 2, 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, 816 p.
PULIDO, C. B. “O princípio da proporcionalidade da legislação penal” In: SOUZA NETO, C. P.; SARMENTO, D. (coords.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 805-830.
RAMOS, S.; CARRARA, S. “A Constituição da Problemática da Violência contra Homossexuais: a articulação entre ativismo e academia na elaboração de políticas públicas”. PHYSIS: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro: n. 16, v. 2, 2006, pp. 185-205.
RIOS, R. R. Notas Sobre o Substitutivo ao Projeto de Lei 122. 2011.Disponível em: < http://www.clam.org.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?UserActiveTemplate=_BR&infoid=8405&sid=4>. Acesso em: 14/07/2011.
___________. “Por um direito democrático da sexualidade”. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre: ano 12, n. 26, 2006, pp. 71-100.
VECCHIATTI, P. R. I. Entenda o PLC122/06. [s.d.]. Disponível em: < http://www.plc122.com.br/entenda-plc122/#axzz1SOgFYIbh>. Acesso em: 11/06/2011.
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