domingo, 28 de dezembro de 2008

Humano...



" Uma convicção é a crença de estar, num ponto qualquer do conhecimento de posse da verdade absoluta.
Essa crença supõe, portanto, que há verdades absolutas; ao mesmo tempo que foram encontrados os métodos perfeitos para chegar a isso; finalmente, que todo o homem que tem convicções aplica esses métodos perfeitos.
Essas três condições mostram logo a seguir que o homem das convicções não é um homem do pensamento científico; ele está diante de nós na idade da inocência teórica, é uma criança, qualquer que seja o seu porte.
Mas séculos inteiros viveram nessas idéias pueris que jorraram as mais poderosas fontes de energia da humanidade. Esses homens inumeráveis que se sacrificavam por suas convicções acreditavam fazê-lo pela verdade absoluta.
(...)
Não foi a luta de opiniões que tornou a história tão violenta, mas a luta da fé nas opiniões, isto é, nas convicções.
Se no entanto, todos aqueles que faziam de sua convicção uma idéia tão grande, que lhe ofereceriam sacrifícios de toda a espécie e não poupavam a metade de sua força para procurar por qual direito se ligavam a essa convicção antes que a essa outra, por cujo caminho tinham chegado que aspecto pacífico teria tomado a história da humanidade!
Como teria sido muito maior o número de conhecimentos! Todas essas cenas cruéis que a perseguição dos herdeiros em todos os tipos oferece nos teriam sido poupadas por duas razões: em primeiro lugar, porque os inquisidores teriam dirigido antes de tudo sua inquisição para eles mesmos e com ela teriam terminado com a pretensão de defender a verdade absoluta; em segundo lugar, porque os próprios partidários de princípios tão mal fundados como são os princípios de todos os sectários e todos os “crentes no direito”, teriam cessado de compartilhá-los depois de tê-los estudado".




Friedrich Nietzsche in: Humano, demasiado humano

sábado, 27 de dezembro de 2008

Ressuscite-me


Por Ecos del Plata

Ao som de Strange Fruit com Antony And The Johnsons (Live)



Por mais que procure não encontro. Pois que. Buenos Aires se habita em dentro de mim, e tuas/vossas pontas, luzes. Grita-me uma saída. Um alento, um suspiro. Por que ainda me dói um pouco, perdi-me para sempre na gosma das coisas-tolas. Em vossos braços, homens, cinco mil apóstolos. Ressoa-me na boca uma milonga escassa e branda. Terrível. Crava-me tonta. Um poço. Mata-me aos poucos, lenta.

Dói-me aquele olhar crepuscular pelos cantos. As vossas indiferenças sem pudor. A vossa piedade sem amor. Não me submeto nem personifico as vossas máscaras, nego. Cerco-me. Perco-me. Nesta incomunicabilidade. Nada mais transcende. Mãos suadas em meu corpo-em-minha carne. Cindo-me, encho-me de espinhos e morro. Renasço fera. Acuada cheia de dor. Cindido, esquizofrênico, precipito-me fera. Abismo. Gosma branca de G.H. Morro. Afago-me felino em nossas fantasmagorias todas. Dói-me tanto, lamina fria: vos cinco apóstolos. Que me seduzem, e que me fazem cheio de garras. São estas as labaredas frias a queimar-me por dentro, atravessam-me. Morro para ressurgir como máscara, que quer sangue, vossa gosma de barata partida; meio-viva, meio-morta. Precipito-me em um abismo de sangue. Oh, mãos suadas, beijos ternos. Salvem-se de mim.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008



Leveza
- Vocês não olham para os lados, e respiram o veneno que fixa os seus pés de chumbo sobre esse solo polvoroso e seco. Vocês não se olham nos olhos, vocês não olham para dentro. Vocês não sabem quem são e nem o que querem. A sua moral é a moral dos rebanhos, vocês escolhem o destino que têm. Vocês se flagelam por prazer e vingança. Vocês sentem prazer na dor, na culpa e na doença religiosa de sua crença em sua vã eternidade.
Mas agora, chegou a hora de libertar a criança. Aquela que brinca dentro de cada um, aquela que está dentro de você, preza pelos ferrolhos do cristianismo ou da ambição. Está na hora de perceber a nossa falência - intelectual, econômica e filosófica. Nossa falência é a ruína deste sistema. Deste mundo.
Este é um aviso, talvez vão. Ele vem das redes de fluxos oníricos de uma mente transviada, duplicada, deslocada, e em ebulição. Ele vêm de uma Legião, nós somos a Multidão. Esse vosso sistema “eterno” e “inevitável” implodirá, brevemente, e não será homem ou mulher, nem Deus ou Estado – pois estes que pela luz já estão bem esturricados e quase mortos, não!(esses são mumias decrepitas!) A grande hecatombe virá de onde menos esperam ou fingem não perceber. Ela virá da mãe mais carinhosa, do seio mais farto, e dos lábios mais úmidos e doces. A Natureza em revolta e fúria derrotará este “único” e “inquebrantável” sistema. As bolsas quebrarão, os bancos fecharão, e países quebrarão – e o mar avançará e o céu, como em uma velha profecia dos povos originários cairá. E isso não procurem nas estrelas, não procurem em números dos economistas e dos burocratas, não procurem em velhas profecias decrepitas, não procurem na palavra dos inúmeros e ambiciosos charlatões espirituais. Esse anúncio de desastre está ao seu lado. Olhem para suas vidas, para suas idéias, para seus afetos e para o que são. Vocês, se mirarem com atenção, e escutarem direito, verão e ouvirão: Morte e destruição. E, se nada mudar mesmo assim, os gritos de dor e pavor, serão apenas o eco do espanto idiota estampado em seus olhos, em suas inúteis montadoras falidas, em suas vitrinas vazias, e em seu comércio desarticulado. A produção e o consumo finalmente nus. Chorar? Não, do caos e da grande dor pode ainda renascer o pássaro de fogo, ou uma águia negra feita de sonhos.
Do que adiantaria chorar, culpar-se, arrepender-se. Basta olhar para frente, e entender que o presente tem que enfim ser presente, e que o que contraria a vida – seja em qualquer forma, é somente morte e destruição. Está na hora de acordar para a vida e para a leveza de ser, deixar essa criança em cada um de nós livre, sair, rodopiando por entre campos, flores e escombros, e dizer, que afinal, a vida, é o que realmente importa. Que a vida deve ser devir. Basta você perguntar-se isso nos seus atos do hoje, será vida, cria mais vida, é natureza? Por que enquanto a técnica e a ciência estiverem ancoradas ainda na luz da racionalidade seca, colheremos o que plantamos: tragédia, dor, ressacas, secas e inundações. E Chuvas – eternas., ácidas e intermitentes. Calotas que derretem e crianças que morrem, por que vocês não podem e nem sabem abandonar o progresso e o trabalho como valores supremos e totais, por que vocês se apaixonaram pelo espírito Tanatos da produção, por que vocês se apaixonaram pelo sacrifício e todas suas estúpidas religiões – laicas ou não. Por que vocês estão enamorados da morte e da destruição. A sua produção é na verdade destruição.
Por isso, somente a leveza das brizas e da poesia pode salvar o mundo, a leveza da liberdade dos que não condenam e daqueles que esquecem. Não é preciso perdoar, mas somente esquecer, para que a reatividade rancorosa não cause sempre e continua dor. É preciso perceber que viver é fazer arte, que viver é sonhar e transformar-se continuado. Que viver é deixar-se ser o que realmente é. Ou vamos escolher, viver como bárbaros tecnocráticos destruidores de vida, piores que qualquer primitiva fera, ou vamos libertar-nos para nós e para o mundo...
Vamos todos reaprender a sonhar, vamos todos pintar uma águia negra carregando duas rosas em nossos corpos – uma águia feita de sonhos púrpuras. Vamos todos cantar e esquecer toda a podridão da culpa, da ambição e da vaidade, assumamos enfim, a criança tontinha e linda que somos, e sorriamos assim leves para vida e para o mundo. Vamos cuidar da terra e de nós mesmo, cultivo filosófico, afetivo e artístico serão nossa salvação. Aprendamos a falar todas as línguas do mundo, as mais faladas, e as menos faladas, para sonharmos uma comunicação global e total, onde nossos contatos sejam humanos e verdadeiros e não maquinários e robóticos – cheios de máscaras. Cultuemos com carinho e respeito nossas mentes, nossos corpos e nossas emoções – para comunicá-los aos outros, transmitir cada vez mais vida, mais louca, alegre e estranha, como uma dionisíaca e criativa transformação. Assumir nossa pluralidade, nossa diversidade, nossa loucura, nossas travessuras, será assumir a vida, o amor e a verdadeira comunicação entre os homens. Por que o que é translúcido, suave e onírico, é mais forte do que milhões de tanques de guerra, milhões que usinas nucleares – por que assim em idéias e em sonho escolhemos a vida, impediremos a morte, a dor e o fim, e seremos salvos de nós mesmos - desta pequena inútil vida de castração e fúria em que a maioria de nós se perdeu.



Por: Augusto Patrini

Esquecer

“Esquecer não é uma simples vis inertiae [força inercial], como crêem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva.
(Segunda dissertação - § 01)


“Não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento”. (Segunda dissertação - § 01)


“Com ajuda da moralidade do costume e da camisa-de-força social, o homem foi realmente tornado confiável”.

(Segunda dissertação - § 02)


“Quanto sangue e quanto horror há no fundo de todas as ‘coisas boas’”.

(Segunda dissertação - § 03)

Nietzsche In: Genealogia da Moral

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008



«À qui vit de fiction la vérité est infecte. » (Victor Hugo).


“Para quem vive da ficção a verdade é infecta.” (V. Hugo)


Tradução: Augusto Patrini


A descoberta da verdade é impedida mais efetivamente não pela falsa aparência das coisas presentes que nos leva ao erro, e não diretamente pela fraqueza dos poderes do raciocínio, mas sim pela opinião pré-concebida, pelo preconceito."
- Arthur Schopenhauer, filósofo alemão, 1788–1860.

Osip Mandelstam

C’est qu’un poème s’adresse toujours à quelqu’un, à un «destinataire inconnu».


En me privant des mers, de l’élan, de l’envol, Pour donner à mon pied l’appui forcé du sol, Quel brillant résultat avez-vous obtenu, Vous ne m’avez pas pris ces lèvres qui remuent.


L'amour et la peur ne connaissent pas d'issue.



Il n'est pas rare d'entendre dire : Bon, mais tout cela c'est d'hier. Or je dis que cet hier n'est pas encore venu, qu'il n'a pas réellement existé.




Osip Mandelstam


sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Feliz "Festas" !


Feliz “Festas”

"Lei contra o cristianismo - Dada no dia da Salvação primeiro dia do ano Um (a 30 de Setembro de 1888, pelo falso calendário): Artigo Primeiro - É vício qualquer forma de antinatureza. A mais viciosa espécie de homens é o padre: ele ensina a antinatureza. Conta o padre não temos razões, temos a casa de correção; Artigo Segundo: Qualquer participação num ofício divino é um atentado contra a moral pública. Seremos mais duros para um protestante do que para um católico, mais duros para um protestante liberal que para um puritano. Quanto mais próximo se está da ciência, maior é o crime de se ser cristão. Por conseguinte o maior dos criminosos é o filósofo; Artigo Terceiro: O lugar de maldição onde o cristianismo chocou seus ovos de basilisco será completamente arrasado e, sendo sobre a Terra o local sacrílego, constituirá motivo de pavor para a posteridade. Aí serão criadas serpentes venenosas; Artigo Quarto: A apologia da castidade é uma pública incitação ao antinatural. Desprezar a vida sexual, enxovalhá-la com a noção de 'impuro', eis o verdadeiro pecado contra o Espírito Santo da Vida; Artigo Quinto: Comer à mesa com um padre exclui-vos; fazendo, excomungam-se da justa sociedade. O padre é o nosso tchandala - será encarcerado, privado de alimentos, expulso para um local como o deserto; Artigo Sexto: Dar-se-á à história 'santa' o nome que merece, isto é, história maldita; serão usadas as palavras 'Deus', 'Salvador', 'Redentor', 'Santo' para injuriar, para com elas marcar os criminosos; Artigo Sétimo: O resto nasce aqui."

O Anticristo, escrita em 1888 e publicada em 1895, é uma das mais ácidas críticas de Nietzsche ao cristianismo e ao budismo.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Convite debater UTOPIA !


Gostaria de Informar-vos que estou em contato com um movimento social de esquerda internacional anti-capitalista transpartidário e internacionalista, e atualmente estou articulando debates sobre as idéias deste movimento.

Trata-se do Mouvement Utopia - http://www.utopia-terre.fr ou http://www.mouvementutopia.org/blog/ com sede atualmente na França mas com atuação também na Espanha, Uruguai e agora possivelmente no Brasil.


Os eixos básicos de ação, propostas e reflexão deste movimento internacional são: A urgência social, a urgência ecológica e a urgência democrática. Isso significa para o movimento e seus integrantes quebrar, questionar, e colocar em cheque alguns dogmas políticos e sociais: a religão do crescimento econômico e material, a centralidade da sociedade de consumo e a centralidade do valor "trabalho". Suas propostas vão em direção a idéia de um Socialismo Civil democrático e radical, contrário ao capitalismo neoliberal ou ao socialismo burocrático.

Aproveito assim para convidar interessados para debater os documentos do Movimento.

Na França o movimento é transpartidário e atua como tendência institucionalizada no Partido Socialista e nos Verdes (partido Verde), mas também possui militantes no PCF, nos Alternatifs, no novo Partido de Esquerda, no Partido Radical de Esquerda, no Movimento Repúblicano e Cidadão, além de na Liga Comunista Revolucionária. Além disso o movimento Utopia atua em organizações civis internacionais como a ATTAC, e a Liga dos Direitos Humanos além de movimentos estudantis franceses de esquerda como: MJS, Jeunes Verts, Fac Verte, REVER.

Os principais intelectuais influenciadores do movimento UTOPIA são: o sociólogo Dominique Méda, os filosófos André Gorz e Hannah Arendt assim como o economista Jean Gadrey. Além disso podem ser citados como referências importantes: Cornelius Castoriadis, André Gorz, Edgar Morin, os escritores Guy Debord, Ivan Illich, Serge Latouche, François Partant, Jean-Marie Harribey, Karl Polanyi, Jean Baudrillard e Jean-Louis Laville.

Mais informações no meu e-mail: Augusto Patrini - apatrini@terra.com.br ou meu celular: (11) 79 85 19 18. Gostaria de criar um grupo de discussão baseando os debates no manifesto do Movimento e outros documentos elaborados por seus integrantes. Estes documentos ainda estão em françês ou espanhol, mas posso traduzi-los e ser facilitador para os interessados. A idéia é aglutinar em torno destes debates pessoas de sensibilidade de esquerda, sejam elas integrantes de qualquer movimento ou partido reconhecidamente democráticos e de esquerda.

abraços

Augusto Patrini

Recém formado em História (USP), jornalista, tradutor e professor.

Integrante do Movimento Internacional UTOPIA e Filiado ao PT http://sturmydrang.blogspot.com/

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Aurora !

«Dans la glorification du « travail », dans les infatigables discours sur la « bénédiction du travail », je vois la même arrière pensée que dans les louanges adressées aux actes impersonnels et utiles à tous: à savoir la peur de tout ce qui est individuel. Au fond, ce qu'on sent aujourd'hui, à la vue du travail – on vise toujours sous ce nom le dur labeur du matin au soir -, qu'un tel travail constitue la meilleure des polices, qu'il tient chacun en bride et s'entend à entraver puissamment le développement de la raison, des désirs, du goût de l'indépendance. Car il consume une extraordinaire quantité de force nerveuse et la soustrait à la réflexion, à la méditation, à la rêverie, aux soucis, à l'amour et à la haine, il présente constamment à la vue un but mesquin et assure des satisfactions faciles et régulières. Ainsi une société où l'on travaille dur en permanence aura davantage de sécurité : et l'on adore aujourd'hui la sécurité comme la divinité suprême. – Et puis ! épouvante ! Le « travailleur », justement, est devenu dangereux (1) ! Le monde fourmille d' « individus dangereux » ! Et derrière eux, le danger des dangers – l' individuum (2) ! [...] Êtes-vous complices de la folie actuelle des nations qui ne pensent qu'à produire le plus possible et à s'enrichir le plus possible ? Votre tâche serait de leur présenter l'addition négative : quelles énormes sommes de valeur intérieure sont gaspillées pour une fin aussi extérieure ! Mais qu'est devenue votre valeur intérieure si vous ne savez plus ce que c'est que respirer librement ? si vous n'avez même pas un minimum de maîtrise de vous-même ? »


Nietzsche, Aurores (1881), Livre III, § 173 et § 206, trad. J. Hervier, Gallimard, 1970

(1) allusion aux nombreuses grèves qui touchent le monde du travail

(2) du latin : ce qui ne peut être divisé (atome, au sens étymologique, pas physique)

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Falta de Ar



Por Augusto Patrini




Eu acordei sufocado, a garganta raspando, com as duas, e sempre rosas entaladas no peito. Lembrei-me de algum caminho cheio de flores antes da guerra, longe desta cidade suja e feia. Antes de nos trairmos, de sermos traídos. Agora, pensando bem, no meio deste colchão barato e lençóis encardidos, somente ficaram-me escombros. Sombras. E no horizonte essa fuligem cinza e sufocante. O que houve, às vezes eu me pergunto, não consigo entender, o que queriam e o que se tornou São Paulo. Claro, eu sempre soube, de sua hipertrofia, de sua feiúra inigualável e dos muros e paredes que sempre estavam lá: excluindo, excluindo, excluindo...
Mas agora tudo se tornou diferente, parece que o tempo parou e as pessoas que sobraram devoraram-se ou fugiram para o mato. Falta-nos tudo, água, amor e ternura – mas ainda não falta gás nem petróleo, e por isso, como mágica lá no canto, além de minha janela, na frente desse sol enegrecido ainda cospem fogo e fumaça, essas malditas usinas. Que me parecem ter tomado vida própria e funcionado sozinhas. Será? Por que nas ruas eu não vejo mais pessoas, somente lixo, ratos e carcaças de caros. Os que restaram estão trancados em paredes grossas, ou simplesmente cansaram – de como o mundo deixou-se morrer e quiçá fizeram o mesmo. Eu me pergunto. Sempre. Eternamente. Onde está você? Por que me abandonaste, eu que sempre te dediquei flores, rosas, violetas e amores. Ainda tenho aqui, algumas fotos puídas, de quando, antes da guerra, as pessoas ainda tinham cabelos, e mesmo assim, em algumas fotos não parecíamos satisfeitos- e hoje o que me resta é perguntar do porquê.
Eu me lembro quando o tempo começou a endoidecer, e que a água começou acabar, e que não se podia respirar esse ar, eu então dava-nos o luxo de colocar uma panela com água e canela no fogo – por que ainda havia um pouco mais de água. Hoje ainda tenho gás, mas muita pouca água (250ml por dia – já me acostumei) - e o ar tornou-se menos respirável do que naqueles dias. Quando já chorávamos um sonho desfeito, nossa ternura perdida, e por que havia no ar tanto ressentimento, mesmo com o cheiro de canela, e os vislumbres de minha fuga. Sempre para sul, sem parar, pensando ainda onde havia gelo, onde ainda havia ar. Contudo tudo saiu de nosso controle – quando viemos para cá avisaram que esta cidade engolia as pessoas, e as mastigava com seus dentes de aço e desilusão – mas o que nunca poderíamos imaginar é que a violência explodiria, e que por dias trancados em casa, ouviríamos apavorados gritos, tiros e pedidos de socorro. Porém sem nos mexermos estáticos em nossa solidão, em nossa incomunicabilidade. Não conseguíamos dizer nada mais. Só me lembro do vapor em teus olhos, e do medo que sentia. Eu nem sei o que sentia, sentia que tínhamos que ir, mas você queria ficar – mas até quando ficaríamos assim trancados? Precisávamos comer. Comeríamos livros? Aí as torneiras secaram, e tivemos que sair, procurar água. E nestes dias perigosos, na verdade noites, por que se saíssemos de dia, seriamos certamente mortos, víamos como havíamos perdido tudo, e que juntos estávamos sozinhos. E um dia enfim, por água, você se foi.
Eu fiquei aqui te esperando, esperando, esperando, ouvindo ainda tiros e os carros queimando – e eu nem sei o que sentia , só sei que não podia chorar, acho que não havia água no meu corpo – ou minha alma estava seca, esturricada – de tanta dor, violência e falta de amor. Foram longos meses esperando-te, mas você nunca apareceu. Sempre os mesmo sons, tiros, gritos e as usinas vivas funcionando sem parar. Algumas vezes eu ouvia um helicóptero passando, e me perguntava quem seriam, e por que não faziam algo? Eu me perguntei tantas vezes onde estava Deus, que não queria-nos mais. Que nos abandonou ou esqueceu ou simplesmente cansou-se. Talvez sejamos apenas um velho brinquedo de Deus esquecido...
O que eu podia fazer em meu mutismo, eu nem mais sabia como viver, pois que todos os homens pareciam ter enlouquecido e que eu também era um homem, me perguntava quando eu perderia minha humanidade, quando que por água e comida eu teria que matar. Também me perguntava o que teria acontecido com você, você fugiu ou morreu? Isso eu nunca soube, mas aquele dia, chegou, e eu encharquei-me de sangue, por um punhado de farinha e uma lata de soda. E eu nem sentia mais. Todo aquele sangue, não significava mais nada. Naquele dia eu percebi que eu mataria outros, muitos, quantos fossem necessários para continuar a viver. Porém pensava: tudo isso para quê? Viver assim, só, entocado? Como uma fera pronta para matar e fugir. Você nunca voltou. Hoje, pensando bem, você já tinha partido muito antes de sumir, estávamos juntos separados – mudos, compreendi que mesmo antes da guerra matávamos. Matávamos por nossa capacidade de ficarmos parados, integrados naquele jogo perigoso. Antes de tudo explodir, você lembra como pulávamos mendigos, como desviávamos das pessoas? Tudo já havia se perdido muito antes.
Pois bem, ontem cansei de te esperar, e decidi partir- arrumei a pouca água e comida que me restam, e procurei aquela velha bússola que eu tinha desde criança – a coloquei no bolso, e resolvi ir para o sul, esperando encontrar gelo, água e paz. Mas agora que junto minhas facas e o que sinto somente é uma secura estranha no peito e uma vontade de chorar. Por que sei que me perdi, sei que te perdi. Nós nos perdemos. Eles, todos eles, ganharam. Talvez eu nunca chegue lá. Mas eu tenho que ir. Desculpe-me. Se ficar mais morro, de fome, de dor ou de sede. Talvez você tenha se unido a uma destas gangues que andam quebrando tudo por aí. Talvez você tenha sido esperto, e já que talvez eu nem significava tanto assim, você escolheu viver. Mesmo no meio do lixo, da morte e da violência. Espero que não. Espero apenas que estejas morto. Pois saiba, que hoje se me encontrar no meio dos escombros que restam desta cidade-covil, eu estarei pronto a mirar-te no meio da testa – um pedaço de aço puro. Sem lembrar-me o que fui, o que eras e o que fomos.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008


"Todo mundo então era pérfido, mentiroso e falso? E lágrimas lhe vieram aos olhos, pois choramos sempre a morte das nossas ilusões com a mesma mágoa com que choramos os nossos mortos."


Guy de Maupassant in: Uma vida


Tradução: Augusto Patrini

terça-feira, 2 de dezembro de 2008



"-¿Dices que el gobierno nos ayudará, profesor? ¿Tú conoces al gobierno?
-Les dije que sí
-También nosotros lo conocemos. Da esa casualidad. De lo que no sabemos nada es de la madre del gobierno.
-Yo les dije que era la Patria. Ellos movieron la cabeza diciendo que no. Y se rieron. Fue la única vez que he visto reir a la gente de Luvina. Pelaron sus dientes molenques y me dijeron que no, que el gobierno no tenía madre".


"Los muertos pesan más que los vivos; lo aplastan a uno"


"Me gusta matar matones, créame usted. No es la costumbre; pero se ha de sentir sabroso ayudarle a Dios a acabar con esos hijos del mal."


"Yo le doy gracias a Dios, porque si acaba con todas mis facultades, ya no pierdo mucho, ya que casi no me queda ninguna."


"Su desventura fue la de haber nacido."


"El tiempo es más pesado que la más pesada carga que puede soportar el hombre."


"Todos ustedes saben que nomás con que se presente el gobernador, con tal de que la gente lo mire, todo se queda arreglado. La cuestión está en que al menos venga a ver lo que sucede, y no que se esté, allá metido en su casa, nomás dando órdenes. En viniendo él, todo se arregla, y la gente, aunque se le haya caído la casa encima, queda muy contento con haberlo conocido."


Juan Rulfo in: El llano en llamas (1953)