segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Junto a um morto

Foto: Diego Moschkovich

Junto a um morto[1]

Guy de Maupassant

Tradução Augusto Patrini Menna Barreto Gomes

Ele estava morrendo, como morrem os cardíacos. Eu o via todos os dias se sentar, por volta das duas horas, sob as janelas do hotel, na frente do mar tranqüilo. Ele permanecia por algum tempo imóvel no calor do sol, contemplando com olhos mornos o mediterrâneo. As vezes ele dirigia seus olhar para a alta montanha com seus cumes vaporosos, que circundavam Menton; depois ele cruzava com movimentos muito lentos, suas longas pernas, tão magras que elas pareciam dois ossos, em torno dos quais flutuava o tecido da calça, e ele abria um livro, sempre o mesmo.

Assim ele não se mexia mais, ele lia, lia com os olhos e com o pensamento; todo seu pobre corpo expirando parecia ler, toda sua alma submergia-se, perdia-se neste livro ate a hora quando o ar refrescava-se o fazia tossir um pouco. Ele então se levantava e recolhia-se.

Era um alemão grande, com a barba loira, que almoçava e jantava em seu quarto e não falava com ninguém.

Uma vaga curiosidade me levava até ele. Um dia, eu me sentei ao seu lado, tendo pego também, para me dar postura, um volume de poesias de Musset.

E eu me pus a percorrer Rolla.

Meu vizinho disse-me de súbito, em bom francês: - “Você sabe alemão, senhor?”

- Não sei nada, senhor.

- É uma pena. Pois que a sorte nos colocou lado à lado, eu lhe teria emprestado uma coisa inestimável: este livro que eu tenho aqui.

- O que ele é?

- É um exemplar de meu mestre Schopenhauer, anotado por sua própria mão. Todas as margens, como você vê, estão cobertas por sua escrita.

Eu peguei o livro com respeito e eu contemplei as formas incompreensíveis para mim, mas que revelavam a imortalidade pensada do maior destruidor de sonhos que já passou sobre a terra.

E os versos de Musset explodiram em minha memória:

Você dorme contente, Voltaire e seu hediondo sorriso

Ainda faz malabarismos sobre os descarnados?

E eu comparei involuntariamente o sarcasmo religioso infantil de Voltaire a irresistível ironia do filosofo alemão cuja influencia é, não obstante, indisfarçável.

Não importa o quanto se proteste ou zangue-se, ou se indigne ou que se exaspere; Shopenhauer marcou a humanidade com o selo de seu desdém e de seu desencantamento.

Gozador desabusado, ele inverteu as crenças, as esperanças, a poesia, as quimeras, destruiu as aspirações, devastou a confiança das almas, matou o amor, abateu o culto ao Idea da mulher, arrasou com as ilusões do corações, e realizou a maior tarefa céptica que jamais havia sido feita. Ele tudo atravessou com seu sarcasmo e tudo esvaziou. E hoje mesmo, todos aqueles que o execram, parecem possuir, involuntariamente, parcelas de seu espírito.

- Você então conheceu particularmente Schopenhauer? – disse eu ao alemão.

Ele sorriu tristemente.

- Até sua morte, senhor.

E ele me fala dele, ele me conta da impressão quase sobrenatural que causava esse ser estranho a todos aqueles que se aproximavam.

Ele falou-me de uma conversa que teve o velho demolidor com um político francês, doutrinariamente republicano, que o quis conhecer e o encontrou em uma brasserie tumultuosa, sentado no meio dos discípulos, seco, reto, sorrindo com uma expressão imóvel, sarcástico e rasgando as idéias e as crenças com apenas uma palavra, como um cão que com uma mordida rasga os tecidos com os quais brinca.

Ele me repetiu as palavras deste francês, que retirando-se assustado, horrorizado e se exclamando:

- Eu pensei ter passado uma hora com o diabo.

- Ele tinha, de fato, senhor, um assustador sorriso, que nos causou medo, mesmo depois de sua morte. É uma história quase desconhecida que eu posso te contar se ela te interessa.

E ele começou, com uma voz cansada, com acessos de tosse o interrompendo a todo o momento.

*

Schopenhauer acabara de morrer, e foi decidido que nos o velaríamos em turnos, em duplas, até a manhã.

Ele estava deitando em um grande quarto, muito simples, vasto e sombrio. Duas velas queimavam na mesa do quarto.

Foi a meia noite que eu assumi meu posto, com um dos nossos camaradas. Os dois amigos que nos substituíamos saíram e nós fomos nos sentar ao pé da cama.

A sua aparência não tinha em nada mudado. Ele ria. O vinco que nós conhecíamos tão bem se mostrava nos cantos dos lábios, e nos parecia que ele abriria de novo os olhos, se mexeria e falaria. Seu pensamento, ou melhor, seus pensamentos nos envolviam, nós sentíamos como nunca a atmosfera de sua personalidade, invadidos e possuídos por ela. Sua dominação nos parecia até mesmo mais soberana agora que ele estava morto. Um mistério se misturava a potência deste espírito incomparável.

O corpo destes homens desaparece, mas eles permanecem vivos, e, na noite que segue a parada de seus corações, eu asseguro senhor, que eles são assustadores.

E, em todo caso, nós falávamos dele, nos lembrávamos de suas palavras, suas fórmulas, suas surpreendentes máximas que pareciam luzes jogadas, por meio de algumas palavras, nas trevas da Vida desconhecida.

“Eu tinha a impressão que ele ia falar” disse meu camarada. E nós olhamos, com uma inquietude beirando o medo, aquele rosto imóvel, ainda sorrindo.

Pouco a pouco nós nos sentimos desconfortáveis, oprimidos, enfraquecidos. Eu balbuciei:

“Eu não sei o que eu tenho, mas, eu te asseguro que eu estou doente.”

E nós percebemos então que o cadáver cheirava mal.

Então, meu companheiro me propôs que mudássemos para o quarto viszinho, deixando a porta aberta; e eu aceitei.

Eu peguei uma vela que queimava sobre a mesa do quarto, e deixei a segunda, e nós fomos nos sentar no outro lado do cômodo de forma que de nosso lugar a cama e o morto eram claramente vistos.

Mas ele nos obsedava ainda, podia-se dizer que seu ser imaterial, desprendido, livre, todo poderoso e dominador, rondava em nosso entorno. E às vezes, o odor infame do corpo decomposto chagava a nós, penetrando-nos, enjoativo e vago.

De súbito, um arrepio nos envolveu os ossos, um barulho, um pequeno barulho tinha vindo do quarto do morto. Nossos olhares dirigiram-se imediatamente sobre ele, e nós vimos, sim, senhor, alguma coisa branca correndo sobre a cama, cair no chão sobre o tapete e desaparecer embaixo de uma poltrona.

Ficamos de pé antes de ter tempo de pensar a qualquer coisa, loucos com um terror estúpido, prontos a fugir. Depois, nós nos olhamos. Estávamos horrivelmente pálidos. Nossos corações batiam tão forte que levantavam o tecido de nossas roupas. Eu falei primeiro.

“Você viu...?”

- Sim, eu vi.

- Será que ele não está morto?

- Mas isso é impossível já que já começou a putrefação?

- O que vamos fazer?

Meu companheiro pronuncia hesitante

- “Temos que ir ver.”

Eu peguei nossa vela, e eu entrei primeiro percorrendo os olhos por toda peça sombria e seus cantos escuros. Nada mais se movia; e eu me aproximei da cama. Mas eu permanecia dominado pelo estupor e pelo medo: Schopenhauer não ria mais! Ele fazia uma careta horrível, sua boca fechada, e as bochechas profundamente fundas. Eu balbuciei:

“Ele não está morto!”

Mas o odor insuportável me subia ao nariz, e sufocava-me. E eu não me mexi mais, olhando-o fixamente, assustado como diante de uma aparição.

Então meu companheiro, tendo pegado a vela se inclina. Depois sem dizer uma palavra ele me toca o braço. Eu segui seu olhar, totalmente branca sobre o tapete, aberta como que para morder, estava a dentadura de Schopenhauer.

O processo de decomposição desprendeu as suas mandíbulas, fazendo-a cair da boca.

Eu tive realmente medo nesse dia, senhor.

E como o sol se aproximava do sol do mar cintilante, o alemão tísico levantou-se, cumprimenta-me e voltou para o hotel.


[1] Conto presente no livro Le Colporteur.

4 comentários:

Euzer Lopes disse...

Posso fazer uma pergunta?
Eu vi que este texto foi uma tradução. Mas, dei uma passada de olhos pelos outros textos, e depois ao ver seu perfil, me diga uma coisa: você tem livros publicados, ou pretende fazê-los? Nem que seja uma coletãnea, compilação?
Obrigado por me seguir no Twitter.

Anônimo disse...

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