quarta-feira, 21 de julho de 2010

Orfeu Extático na Metrópole.



Por Augusto Patrini Menna Barreto Gomes

Historiador formado pela USP, tradutor Francês/Português


  1. Introdução

Se me explico, me implico:

Não posso a mim mesmo interpretar.

Mas quem seguir sempre seu próprio caminho

Minha imagem a uma luz mais clara também levará.

Nietzsche, Astúcia e Vingança, § 23 - Interpretação in: Gaia Ciência


A Subjetividade é a verdade.

Søren Kierkegaard


Os historiadores devem estar sempre abertos para a discussão; interpretação e exame crítico de documentos e fontes. Um texto, seja ele de natureza documental ou não – pode ter várias interpretações nenhuma certa ou errada, mas apenas miradas diversas, a partir de lugares diferentes. É assim também que talvez o autor de meu livro encare seus documentos[2] e assim encaro seu próprio texto.

Não se pode esquecer, que mesmo que nossas idéias pareçam claras e exatas, elas são sempre suposições – e que o “texto” possui sempre, em alguma medida autonomia - se esquecermos disto e tomá-los como verdades, perdemos a chance de que por meio da interpretação e reflexão – destes textos e símbolos, de vislumbrar o que somos e como poderíamos conhecer do mundo. Temos que ter em vista que somente em diálogo com eles e sua época, conscientes de nossas próprias experiências, podemos tentar compreendê-los profundamente.[3] Nicolau Sevcenko parece, em seu livro estar bem consciente disto, e esta parece ser uma das atitudes epistemológicas centrais em sua escrita.


É nesta perspectiva que inscrevo minha análise da obra do professor Nicoulau Sevcenko, Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras:2003. (pp.351) 3ª Edição.


  1. Começando pelo fim.

Um pequeno livro floresceu neste começo de século entre a inteliguentsia brasileira. Trata-se, de um pequeno grande livro,Virando Séculos – A Corrida para o Século XXI[4], de Nicolau Sevsenko. Ele traça uma perturbadora e lúcida reflexão sobre o século XX e principalmente a passagem para o século XXI. Tomando uma viagem de montanha-russa como sua imagem e inspiração básicas, o historiador e crítico da cultura Nicolau Sevcenko avalia a transição do século XX para o XXI como um processo de aceleração contínua, e nos alerta para a importância de se analisar criticamente estas transformações.


O livro, em certo sentido é assustador, por diagnosticar de forma impiedosa os principais problemas da atualidade: aquecimento global, desmonte do estado de bem estar social, fragmentação de paradigmas, mercantilização da arte e da cultura, transformações tecnológicas - desigualdades sociais e políticas. Mesmo assim, Sevsenko não deixa de apresentar-nos alguma esperança. Se, por um lado o desmoronamento das utopias “socialistas” realizadas trousse em seu bojo alguma desilusão, também permitiu que pensemos outras soluções para a contemporaneidade, livre das prisões dogmáticas e dos ismos, que tanto enquadraram o pensamento de esquerda latino-americano e mundial.


Parece-me que Sevcenko, por sua lucidez é capaz de enxergar uma saída para nós. Para ele, como para outros homens de sua geração, a saída estará sempre nas margens: é por isso que no final do livro ele aponta para a contra-cultura, em suas expressões, plásticas e principalmente musical; com seus possíveis e necessários desdobramentos políticos e sociais.


Esse pequeno livro é fundamental nesse começo de século, tão farto em niilismo e desilusão. Fundamental para historiadores, sociólogos, comunicólogos e outros intelectuais. É interessante constatar como justamente essa crise de paradigmas, e o fim dos nacionalismos, e do Estado -Nação como estava configurado no século que passou, pode ter ares de emancipação e libertação, desde que saibamos ver um caminho, e que estejamos prontos para olhar para as margens, onde surge, segundo nosso autor, uma nova geração disposta a lutar por mudanças.

Penso mesmo que este livro pode ser base teórica, para o fazer historiográfico contemporâneo, já não pautado por antigas formas e categorias, como Estado e Economia, mas um fazer historiográfico aberto para a cultura, para as idéias, para o imaginário e para as representações. Parece-me que este livro situa bem o lugar e as perspectivas epistemológicas do autor de Orfeu, assim como as minhas próprias e meu lugar no tempo.


  1. Hermenêutica dos anos 20

O Livro Orfeu é todo um exercício de interpretação crítica nos marcos do perpectivismo teórico. Uma crítica veemente ao processo de modernização, em São Paulo, e também no mundo. Essa crítica está focada principalmente na análise do processo de urbanização de São Paulo e na vida cultural da cidade na década de vinte do século passado. Ela , no entanto, não deixar de perceber todas as conexões entre a vida na cidade e no mundo, e sua fremente modificação . O autor considera a política no seu sentido mais amplo – aquela que penetra em nível micropolítico – na vida social, urbana, cultural. Contando com uma gama de documentos de várias naturezas, o historiador não deixa-se levar por uma perspectiva temática nem mesmo cronológica – para estruturar seu texto sem causalidades e nexos deterministas, mas elaborando uma fina e microscópica leitura.


Em termos estruturais o texto é dividido em três momentos: o primeiro deles trata de São Paulo entre o final do século XIX até mais ou menos a década de 20 do século XX – o foco central parece ser a urbanização da cidade, mas para isso o autor tece toda uma rede de sociabilidades, apresentando aspectos culturais (Esportes, carnaval, simbologia identitária, música etc) e políticos - em seus aspectos institucionais – econômicos e macro-políticos, mas também em seus níveis “microscópicos” – apresentando a vida popular, dos imigrantes, as agruras do povo, assim como as expectativas da elite, e a formação simbólica da identidade “paulista”, industrialização etc. Sua atenção para a configuração desordenada da cidade em meados do começo do século XX é muito pertinente e instrutiva, e deixa claro de todo seu impacto social e cultural, que podem, no limite, ser sentidos até nossos dias. Neste primeiro momento do livro são lidos e interpretados uma série documental proveniente principalmente de artigos da imprensa (sobretudo do jornal Estado de São Paulo). Fica claro como o caótico desenvolvimento urbano paulistano, não é como se costuma dizer, por falta de políticas públicas, mas justamente o contrário, por políticas que privilegiaram o transporte sobre rodas, a construção de rodovias marginais e beneficiaram a especulação imobiliária, em detrimento de uma política igualitária e que privilegiasse o transporte sobre trilhos e a implementação de serviços públicos para todos e bem distribuídos.


Em um segundo momento, o autor, consciente que nenhuma categoria social ou política pode ser isolada das conexões mundiais, sejam históricas – políticas, econômicas ou culturais - dirige seu olhar para a Europa, e toda convulsão sócio-cultural no fim do século e começo do século XX, analisando assim uma série de poetas, críticos de arte (música, balé e sobretudo pintura), e vanguardistas, estetas – todos imersos em uma ambiente de mudanças, transformações e “revoluções”, além de claro no impacto destruidor da 1ª Guerra Mundial, e toda suas conseqüências. Além disso, é neste momento que narra, de forma muito elegante e eficiente, as conexões entre as vanguardas européias e as vanguardas modernistas que se constituiriam então no Brasil, mas sobretudo em São Paulo. Este é o terceiro momento do livro, onde seu guia preferencial parece ser o “exexota”, estrangeiro, nômade, poeta e romancista Blaise Cendras.

Nesse momento, apresenta-se o que era ser moderno nos anos 20; ele nos sugere, que apesar das aparentes rupturas havia, como ainda há, uma sertã continuidade sincrônica, mesmo no caso de movimentos como o Modernista. O que era definido pelos vários modernistas, podia assumir feições diferentes e em grande parte eram conjunções com experiências exteriores (muitas vezes se encontrou o Brasil desde um olhar de Paris). Para isso, o historiador faz a análise de documentos da vanguarda – e suas várias vertentes e representantes, poemas de Manuel Bandeira, Mario de Andrade, Oswald de Adrade além das correspondências de Tarsila do Amaral, as críticas sobre a música de Vila Lobos. Também indica as transformações e adaptações dos vários modernistas sob os acontecimentos políticos da época, como o surgimento do tenentismo, a revolução de 1924 e posteriormente, a revolução de 30 e a instauração do Estado Novo. Nestas transformações, lutas e movimentos o testemunho do poeta suíço assume importância notável na narrativa e interpretação do historiador. Ele destaca que somente podemos compreender o movimento modernista brasileiro, encarando como parte de um grande movimento de transformações estéticas, artísticas, e políticas que transformava as feições mundiais, e que o Brasil, mesmo em seu lugar “periférico” não se encontrava, em termos temporais, atrasado nestes movimentos. As vanguardas modernistas estavam intimamente ligadas às figuras e lugares do modernismo mundial. Acaba por concluir, inspirado em Sergio Buarque de Holanda, que não obstante a confusão estética e política da época, talvez, seja justamente esta que permitiu o desenvolvimento artístico variado e plural que caracteriza a produção modernista.


Vale a guisa de conclusão citar um dos autores empregados por Nicolau, Rubens Borba Morais:


Os historiadores brasileiros que insistem em buscar no Brasil as origens dos Modernistas [têm] uma visão restrita da literatura, não procuram encaixar a produção nacional no panorama mundial de uma época e nos grandes movimentos internacionais de idéias. Sem essa perspectiva o Movimento Modernista fica suspenso no ar, sem raízes, ou tem uma tem uma filiação espúria.[5]


Assim, fica mais que claro, que para o historiador de Orfeu, o Movimento Modernista brasileiro está, mesmo em suas vertentes nacionalistas, ou aquelas que buscam um americanismo ou uma certa entidade nacional (Mario de Andrade), e suas vertentes mais originais, estava intimamente ligado ao panorama estético e político mundial. É por isso, que Sevcenko se preocupa em estabelecer, em seu texto, o tempo todo, nexos entre nós e o outro. Além disso, cabe destacar, que ele percebe que mesmo quando se trata de movimentos de ruptura, estes guardam em seu interior estruturas, idéias, perspectivas do tempo em que hipoteticamente foi “rompido”. Parece assim, pois, que mesmo se os manifestos proclamem as rupturas, eles e seus desenvolvimentos guardam parte daquilo mesmo que queriam romper, e isso não os faz menos interessantes, mas ao contrário – identificar, estabelecer nexos e interpretar conexões pode ser um trabalho interessantíssimo para qualquer historiador, sobretudo aqueles que trabalham com cultura, política e idéias.


5. Bibliografia auxiliar.

  • GADAMER, Hans Georg. Esboço dos Fundamentos de uma hermenêutica. IN: O Problema da Consciência Histórica. (org FRUCHON, PIERRE). RJ: Fundação Getúlio Vargas, 2006
  • HUNT, Lynn (org.). A Nova História Cultural. SP: Martins Fontes, 2006
  • NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a verdade e a mentira no sentido extra moral. (org e trad.: Fernando de Morais Barros. SP: Editora Hedra, 2007
  • RICOEUR, P. La Mémoire, L´histoire, l´obli. Paris: Éditions de Seuil, 2000.


[2] Uma vez que Sevcenko utiliza-se como referencias teóricas Ludwig Wittgentein e o cita na epigrafe: “A Filosofia é a batalha contra o enfeitiçamento da nossa inteligência por meio da linguagem.” L. Wittgenstein. Philosophical Investigations apud: N. Sevcenko. Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras:2003. pp 6.

[3] RICOEUR, P. La Mémoire, L´histoire, l´obli. Paris: Éditions de Seuil, 2000.

[4] Nicolau Sevcenko; coordenação Laura de Mello e Souza, Lilia Moritz Schwarcz - São Paulo, Companhia das Letras, 2001 (Virando Séculos;7).

[5] Sevcenko, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras:2003. 3ª Edição, pp.309

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