segunda-feira, 9 de maio de 2011

Felizes Juntos


“Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.”

Caio Fernando Abreu em “A terra do Coração” – Pequenas Epifanias.

Por Augusto Patrini


Mais uma noite de insônia. Chega então uma manhã-tarde ensolarada. Nesta São Paulo luminosa e solar, tão diferente das tenebrosas sombras das minhas noites mal-dormidas, a semana chuvosa agora parece estar bem longe. No rádio toca: “O meu amor sozinho/ É assim como um jardim sem flor,... Estrela, eu lhe diria/ Desce à terra, o amor existe,... Não há amor sozinho...” na voz de Maria Bethânea. É a “Primavera” de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes.

Debruço um vago olhar sobre o horizonte quadriculado-urbano deste dia iluminado e puro. Azul forte brilhante no céu sul-americano da metrópole ensandecida. Hoje quero ter esperança e força, penso. Lembro dos encontros e desencontros, de nossas fugas e buscas. Tento ainda acreditar, apesar dos carros rugirem lá fora, das megeras (e seus celulares), dos canos fumegantes e de nossos amores perdidos e estraçalhados. Apesar de toda a fumaça, guerra e dor, no meio das cinzas de São Paulo e dos “meninos que choram”, quero acreditar que não estamos no tempo dos risos amarelos. Os algodões do céu, nesta manhã são feitos de solidões e buscas. Por isso continuamos, não é? Sempre.

Lembro-me, assim, talvez como você também, dos amores que tive e que perdi. Das pessoas que cruzei o olhar e partiram para sempre. Foram talvez apenas possibilidades? Ou pessoas que nos marcaram? Foram alguns (ou tantos) os olhares? Nas noites e nos dias, em museus e padarias, nas ruas e nos bares. Lembro-me também, inutilmente, das bocas úmidas e dos beijos. Das mãos em minhas mãos. Dos olhares na mesma direção e dos olhares, depois, em direções diversas:

“Happy Toguether” !

Nesse dia estranho, me lembro de um filme maravilhoso. Como o céu de hoje, colorido, triste e intenso: “Happy Together” (Felizes Juntos) é um longa-metragem que combina mais com a música do Astor Piazzola do que com a brasilidade trágica de Maria Bethânea. O realizador deste filme, Wong Kar-Wai, nascido em Hong Kong, é considerado na Europa um dos novos gênios do cinema. Ele usa de elementos kitsh, mas subvertendo sempre a linguagem e o ritmo dos enquadramentos. Kar-Wai traz em seu currículo filmes intensos na forma e no enredo como, por exemplo, “Anjos Caídos”, “Amores Expressos” e “Amor à Flor da Pele”.

Na verdade, seu penúltimo filme, “Happy Together”, seja talvez uma tragédia-filme ou um tango-filme. Daquele tipo de tragédia ou tango que nos acomete quando, entre nossos encontros e desencontros, perdemos um amor ou um amigo. O filme é a história de um amor migrante e incerto entre dois rapazes (os ótimos Leslie Cheung e Tony Leung Chi-Wai), que juntos mudam de Hong Kong para uma romântica Buenos Aires inexistente. Mais do que um simples filme que poderia ser “rotulado-reduzido” como gay, trata-se aqui de uma tragédia-farsa maravilhosamente bem encenada, ao som de Piazzolla, Caetano Veloso e Frank Zappa. O filme trata fundamentalmente daquilo que sentimos às vezes, ao vislumbrarmos alguns olhares nas ruas e nos bares, da certeza que todos vivemos perdas, encontros e desencontros em nossas vidas/buscas/viagens.

O filme faz com que nos perguntemos sobre o porquê dessa busca estranha e desse algo misterioso e intenso que arranca de nossas estranhas ausências insossas. Lembra-nos também das perdas, daqueles a quem se amava, mas que acabaram separados de nós pela vida e pelo tempo. Mas, talvez a questão maior seja aquilo que realmente buscamos no outro.

Freud disse um dia que somos pulsões de amor e morte, e é disto que é feito esse filme estranho e azul. Sua cena mais bela, e acredito, seu ápice romântico, é aquela em que os dois rapazes dançam em uma cozinha magnificamente iluminada (fotografia de Homayun Pievar). Um momento lindo e suave, onde a real possibilidade de amor intenso e verdadeiro entre seres humanos ficará para sempre eternizada na película. Apesar disso, logo vemos que esse amor, sacudido pela vida, pode tomar novos rumos. Essa enorme força da vida que tudo muda é simbolizada no filme pela visão majestosa das Cataratas do Iguaçu.

Ética amorosa

Isso nos leva a pensar na forma como praticamos regularmente nossos atos amorosos. Tudo bem que somos meio arrastados pela vida, mas você já pensou o que um beijo pode significar? Não se trata apenas de uma troca de fluídos, ou de um comportamento animal. Trata-se também de um ato consciente de entrega amorosa, de intercâmbio de emoções e sensações. Temos certa responsabilidade sobre aquilo que acontece em nossas relações afetivas.

Hoje também acho que sexo sem entrega amorosa é muito chato. Prefiro acreditar em uma espécie de ética da entrega amorosa, onde nossa prática sexual-amorosa seja pautada por troca emocional-amorosa sincera. Esse algo mais do que apenas sensualidade, faz das nossas trocas/relacionamentos algo louco e misterioso que modifica o que somos hoje e o que podemos vir a ser no futuro, tornando-nos seres humanos mais ricos e múltiplos. É disso também que trata o filme. É sobre como somos eternamente um “vir-à-ser”.

Mesmo se nos entregamos no amor e por isso sofremos, perdidos entre margaridinhas vagabundas e sacos de lixo - como cães sujos ou gatos errantes - sabemos que estamos verdadeiramente vivos. Porque a ausência do amor nos é mais insuportável que as possíveis dores da perda sempre inerente ao amor. Por isso buscamos o outro? Eu não sei. Mas quero acreditar e confio. Acredito nesse algo mais da vida (o amor), algo profundo, sim absurdo e forte: o fogo ou a brasa que queimam - dor, amor, perdição, fuga e sonhos toscos-bobos, cheios de espinhos e flores. Tudo isso, encontramos verdadeiramente no outro, naquele que nos sorri, beija ou abraça, quando nos entregamos emocionalmente de forma profunda. Mesmo que por alguns segundos, minutos, uma noite, umas horas, cinco ou cinqüenta anos.

Mas, nesta busca/entrega estamos todos divididos entre o que queremos ser e o que seremos, neste devir eterno que somos, se tragados pela força da vida. E um dia engolidos pela morte, Desejamos sermos fortes e, vibrando além desta solidão toda, cheia de falsas cores e cuspe, somos arco-íris tensos. Todas nossas bocas e penas. São esses nossos deuses e monstros, os nossos “sonhos e mentiras de Franco”.

Se nos perdemos, às vezes, entre esses tempos e essas escolhas queremos amar além, na sarjeta e na chuva, entre o céu estrelado e as tantas margaridas livres e vadias que encontramos pelo caminho da vida.

Ainda que sua vida pareça mais uma lanchonete suja de beira de estrada com aquela luz fraquinha, não se desespere. Logo, logo, aparece o olhar, a mão e a boca de outra margaridinha louca para te trazer essa coisa misteriosa que buscas. Basta acreditar!

Crônica escrita em São Paulo, 26 de setembro de 2006

4 comentários:

Guy Franco disse...

Por que buscamos o outro? Não sei, mas quero acreditar.

E pronto. E que bom que não sabe. =)

FOXX disse...

ai ai ai, basta apenas acreditar? eu já acreditei tanto... e no que deu? em absolutamente nada. estou cansado de acreditar, de acreditar sozinho.

Augusto Patrini Menna Barreto Gomes disse...

Tudo que começa termina. É preciso aceitar que tudo que está vivo morre... e não há nada de errado nisso. Pois morrer ainda é viver até o fim.
Tudo que morre, torna-se!
Augusto

Augusto Patrini Menna Barreto Gomes disse...

Como já falava Lacan, o Desejo está na ausência.