Alexey Dodsworth Magnavita
Não escrevo para os que concordam com a decisão do STF de reconhecimento das uniões homoafetivas, mas para aqueles que discordam. Não faz, afinal, muito sentido tentar convencer quem já concorda. O que me interessa, aqui, é fazer algumas considerações a partir das principais argumentações de quem não gostou da decisão do STF.
Para isso, partirei do principal argumento, que é religioso: tais relacionamentos seriam “pecado”. Em momento algum pretendo convencer o leitor de que relacionamentos homossexuais não são pecado, não é isso o que se pretende discutir aqui. Deste modo, fazendo um exercício de imaginação, admitirei as seguintes afirmações como sendo corretas:
1. Deus existe, a partir de uma perspectiva cristã.
2. A vontade de Deus se revela através do livro chamado “Biblia”.
3. Por conta das instruções contidas na Biblia, lideres religiosos cristãos sabem qual é a vontade de Deus.
Não creio que seja profícuo, aqui, discutir se deus existe ou não existe, se a visão cristã acerca de deus está ou não correta, se a Biblia é realmente a palavra deste deus ou se não é. Isso é assunto pra outro momento, além de ser discussão que vai muito além da decisão do STF.
O que me parece espantoso, dentro do universo de alguns indivíduos religiosos, é que o suposto pecado do relacionamento homossexual assuma proporções imensas, em detrimento de todos os outros “pecados” que existem. Alguns pastores dedicam seu tempo quase que exclusivamente a combater este pecado (o que me parece muito sintomático).
Por vezes, o proselitismo coloca tais pastores contra seus próprios confrades. Ontem, após a decisão do STF, o pastor Silas Malafaia fez chover uma saraivada de acusações contra pessoas que partilham de sua fé religiosa. Acusou-os de “não fazer pressão suficiente” através do Twitter. O fato é que, à parte Malafaia e alguns gatos pingados, muitos expoentes do cristianismo pentecostal pouco se lixaram para a decisão do STF, partindo de um princípio muito simples: não é a existência de leis que faz as pessoas se voltarem para deus (ou para aquilo que eles entendem como sendo o chamado de deus). É o que se passa no coração desta pessoa. Vejamos o que argumentou a cantora gospel Ana Paula Valadão, após ser acusada de “omissão” por Malafaia. Disse ela, no Twitter:
“Avivamento, a volta de uma pessoa ou de uma nação para Deus e Seus princípios, a meu ver não é algo que aconteça de cima para baixo…Podem haver leis proibindo isso ou aquilo e as pessoas continuarem na prática de pecado. Creio que o avivamento vem de baixo para cima, e a mudança ou estabelecimento de leis segundo os padrões de Deus serão consequência do que se passa numa sociedade em avivamento, que quer Deus. Mais do que querer mudança ou impedimento de legislação, de cima para baixo, clamo por mudança do coração das gentes, da nação, de baixo para cima. Por exemplo, se as pessoas temerem a Deus não abortarão seus bebês, ainda que haja uma lei a favor do aborto.”
Me parece que Ana Paula Valadão compreendeu sua religião melhor do que o pastor Malafaia. Enquanto este pretende impor suas crenças a todo um grupo de pessoas que provavelmente sequer partilha delas (ou, pelo menos, não do modo como ele entendeu), Ana Paula compreende a fé como um processo pessoal, e aquilo que ela chama de “avivamento” ou revelação é um processo íntimo, um movimento estritamente pessoal, que não se impõe ao outro. Sobre isso, o filósofo Agostinho de Hipona, um dos principais pensadores cristãos, já disse bem: a fé é uma graça, e as graças vêm de deus. De nada adianta exigir do outro uma fé que ele não tem, pois será uma falsa fé. Malafaia, pelo visto, não leu Agostinho, e não leu direito a própria Biblia que diz professar. Declarou ele, no Twitter: “Avivamento não é uma ação sobrenatural de Deus independente da nossa acao“. Errado. A revelação, se considerarmos o que professa a fé cristã, é algo que vem de deus, se ele quiser.
No entender de Malafaia, impor suas crenças a toda uma população é o que deus espera dele. Ele tem todo o direito de manifestar sua contrariedade, e é o que faz, continuamente. O problema é que Malafaia demoniza quem pensa diferente, e depois reclama quando é demonizado de volta. Quer dizer: ele solicita que Ana Paula Valadão faça pressão. Ela se recusa a obedecê-lo. Então ele tem a pachorra de acusá-la de não agir como uma “verdadeira evangélica”. O que podemos concluir é que ser um “verdadeiro evangélico” é fazer o que ele, Malafaia, quer. Que eu saiba, ser um verdadeiro evangélico é agir conforme deus determina em seu coração. E, para Ana Paula Valadão, ela pode contribuir para o bem do mundo de outro modo. Independentemente do meu ateismo, me parece que Ana Paula confia em deus mais do que Malafaia…
Mas deixemos o Arauto da Verdade pra lá. Vou considerar que você pensa por si próprio, a exemplo de Ana Paula Valadão.
De acordo com o IBGE, há mais de 60 mil casais formados por pessoas do mesmo sexo em nosso país. Não creio que seja fantasioso da minha parte imaginar que o número é bem maior, considerando que muitos indivíduos devem ter declarado que vivem com seu “primo” ou “prima”, ou com “um amigo(a)”. Se você acha que o reconhecimento destes casais por parte do STF é um erro, ainda assim não pode ignorar o fato de que, mesmo que o STF não reconhecesse tais casais, eles continuariam a existir.
O reconhecimento do STF, portanto, não deveria ser encarado como uma “afronta teológica” ou uma “ofensa aos cristãos”. Se você acha que um casal – que muitas vezes nem cristão é, ou seja, nada tem a ver com sua vida e sua religião – te ofende ou ofende a deus, a “suposta ofensa a deus” já existia. O STF não está preocupado com a religião alheia. Está preocupado em dirimir injustiças, e legisla a partir de argumentos laicos. Argumentos laicos não são “argumentos ateus”. São argumentos que não se pretendem atrelados a esta ou aquela religião.
Passemos a duas histórias reais, cujos nomes foram alterados. Começo com a história de Luciana. Após ter se revelado lésbica, Luciana foi execrada por sua família, palavras duras foram trocadas e nunca mais a garota sequer ouviu falar de seus pais e irmãos. Foi expulsa de casa. Neste ponto, muita gente se choca, acham que é fantasia que uma família rejeite um filho, mas isso não é nada incomum. De ontem pra hoje, colecionei declarações no Twitter: “se meu filho se declarasse homossexual, eu o expulsaria de casa”. Em alguns casos, esta ameaça é feita da boca pra fora. Em outros, é real. Eu diria que é um presente ao filho: ele se liberta de uma família que o ama condicionalmente e está livre para criar seu novo núcleo familiar, com entes queridos que, apesar da ausência de laços de sangue, o amem como ele é. O curioso – pra não usar termos piores – é que estes familiares que execram seus filhos costumam aparecer do nada após uma eventual morte ou doença incapacitante, com o intuito claro de se beneficiar materialmente. Isso não lhe parece pecado, não lhe parece injusto? O STF não pode legislar sobre os corpos dos cidadãos, não pode impedir que pessoas estabeleçam conjunções carnais homossexuais, mas pode evitar injustiças e rapinagem patrimonial.
Continuando: Luciana conheceu Márcia, por quem se apaixonou e foi correspondida. Mantiveram relacionamento estável por doze anos. Construíram uma vida em comum, o que inclui o patrimônio. Luciana tinha um apartamento em seu nome, Márcia tinha uma casa de praia. Eis que uma fatalidade ocorre: Luciana morre num acidente de carro. Mesmo que você ache que a relação entre as duas era “pecaminosa”, tente ser justo: de quem deveria ser o apartamento de Luciana? De sua companheira, que dedicou grande parte da vida a colaborar na construção deste patrimônio, ou da família que a renegou? Pois a família biológica, que renegou Luciana e sequer apareceu enquanto ela estava internada na UTI, surgiu do nada depois de sua morte, e herdou todos os seus bens materiais. Márcia teve que lutar para provar que muitos dos móveis do apartamento tinham sido comprados por ela, e não por Luciana. Lhe parece justo?
Se suas convicções religiosas – sejam elas quais forem – ainda não lhe permitiram enxergar a injustiça desta circunstância, criarei outro cenário: e se Luciana e Márcia não fossem amantes, mas apenas amigas muito próximas que moravam juntas e criaram patrimônio em comum? Mantendo amizade próxima, elas formariam um núcleo familiar fraterno, e isso deveria ser reconhecido. Você se oporia neste caso? Márcia não teria mais direito aos bens de Luciana do que a família que a execrou e em nada colaborou para a construção deste patrimônio? Porque o que está envolvido é muito mais do que o reconhecimento de apenas casais homossexuais como um núcleo afetivo. O que está envolvido na decisão do STF é o reconhecimento do conceito de “família” como algo muito mais amplo. E esta ampliação do entendimento não influencia na suafamília, que você pode constituir do jeito que seu coração, deus, o que for, determinar.
Se, para você, “família” significa um núcleo formado por marido, mulher e filhos, tudo bem. Não se pode fugir à verdade, contudo, que ninguém é impedido de se divorciar, ainda que isso seja considerado por alguns como “pecado”. A lei brasileira garante o direito ao divórcio.
Vamos a um caso mais drástico: Marcos, como Luciana, foi execrado por sua família biológica ao assumir sua orientação homossexual. Uniu-se ao namorado, André, com quem viveu por 35 anos. Certo dia, veio o diagnóstico fatal: Marcos tinha câncer em estado avançado, e apenas alguns meses de vida. André cuidou de Marcos, que terminou vivendo mais dois anos, até falecer. Assim como na história anterior, a família biológica que abandonou completamente o filho ressurgiu das cinzas, pleiteando todo o patrimônio que ele construiu junto com André. André só pôde ficar com aquilo que estava em seu próprio nome. De resto, a família biológica levou tudo, “fez a limpa”. Isso lhe parece justo?
Eu e minha irmã moramos juntos. Formamos um núcleo familiar, e por acaso temos laços biológicos. Mas ela poderia ser uma amiga, ou amigo, com quem eu teria ou não um relacionamento sexual. Isso constitui um núcleo familiar. Não é a biologia que determina familiaridade – e isso foi amplamente repetido pelos juízes no STF – e sim os afetos. Se estes afetos têm componente sexual ou não, isso não cabe ao STF legislar. Cabe, sim, reconhecer que pessoas que cuidam umas das outras precisam ter seus direitos salvaguardados.
Deste modo, espero que tenha ficado claro que o STF não “sancionou um pecado”. Afinal, se o voto fosse “não”, o tal do “pecado” continuaria a existir! Ao contrário, o STF está ajudando a impedir uma série de outros pecados: a usura, o oportunismo, a injustiça, só para citar alguns. De resto, se você estiver certo e deus existir, caberá a ele, e apenas a ele, julgar o que cada um fez de sua vida. Se você acredita mesmo em deus, confie nele. Revoltar-se é duvidar que tudo o que ocorre, ocorre segundo sua vontade. O incréu aqui sou eu, e não você.
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