quinta-feira, 29 de setembro de 2011

SALMO


de Paul Celan


Ninguém tornará a nos amassar com terra e argila,

Ninguem soprará a palavra sobre o nosso pó.

Ninguém.


Louvado sejas tu, Ninguém.

É para agradar-te que queremos

florir.

É ao teu

encontro.


Um Nada

é o que fomos, somos e continuaremos

sendo, florindo:

a rosa de Nada, a

rosa de Ninguém.


Com

o estíolo luminoso da alma,

o estame de céu agreste,

a coroa vermelha

do verbo púrpura que cantamos

acima, oh acima

do espinho.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O Progresso Contínuo do Passado



Não existe [...] matéria mais resistente nem mais substancial (o tempo). Porque a nossa duração não é apenas um instante a seguir ao outro; se fosse, nunca haveria mais nada além do presente - nenhum prolongamento do passado na actualidade, nenhuma evolução, nenhuma duração concreta. A duração é o progresso contínuo do passado que morde o futuro e vai inchando à medida que avança. E, como o passado cresce sem parar, não há nenhum limite à sua preservação. A memória [...] não é uma faculdade de arrumar recordações numa gaveta, ou de inscrevê-las num registo [...] Na realidade, o passado preserva-se a si mesmo, automaticamente. Provavelmente acompanha-nos na sua totalidade a cada instante [...]

Henri Bergson, in 'A Evolução Criadora'

Elogio da Distância



Na fonte dos teus olhos
vivem os fios dos pescadores do lago da loucura.
Na fonte dos teus olhos
o mar cumpre a sua promessa.

Aqui, coração
que andou entre os homens, arranco
do corpo as vestes e o brilho de uma jura:

Mais negro no negro, estou mais nu.
Só quando sou falso sou fiel.
Sou tu quando sou eu.

Na fonte dos teus olhos
ando à deriva sonhando o rapto.

Um fio apanhou um fio:
separamo-nos enlaçados.

Na fonte dos teus olhos
um enforcado estrangula o baraço.

Paul Celan, in "Papoila e Memória"

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O Erotismo



Os homens mais novos não entendem o... como é que vocês dizem?... o erotismo. Até aos quarenta, caímos sempre no mesmo erro, não sabemos libertar-nos do amor: um homem que, em vez de pensar numa mulher como complemento de um sexo, pensa no sexo como complemento de uma mulher, está pronto para o amor: tanto pior para ele.

André Malraux, in 'A Estrada Real'

sábado, 17 de setembro de 2011

Quem É Que Tu Amas?



- Quem é que tu amas? - continuou Murphy. - Eu, tal como sou. Podes desejar o que não existe, não podes amá-lo. - Nada mal, para um Murphy. - Se assim é, por que diabo te esforças tanto para me modificar? Para poderes deixar de me amar - aqui, a voz subiu e atingiu uma nota bastante honrosa - para deixares de estar condenada a amar-me, para seres dispensada de me amar.

Samuel Beckett, in 'Murphy'

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

rosa roxa



Convaincu du néant de tout, il reste délicieux de s'attendrir sur la fragilité des roses
(Maurice Renan)

Ao som de Wild Is The Wind – David Bowie ou Nina Simone

I: João

   Ele entrou. Enterneceu-me com coragem, uma rosa roxa nas mãos. Seus olhos lacrimejando lívidos, alívio desanvergonhado. Encontrando-se os dois, pelos cantos dos olhos, belas beiras e fissuras, pelas ruas, quartos, cafés, bares baratos e esquinas. Dias escuros e dias claros, entardeceres e visões instantâneas de um paraíso há tanto tempo ansiado. Divagações a dois. Instantes, afagos e beijos trêmulos. Medo. Medo da possibilidade. Tremores. Eram dois, e eram muitos. Múltiplos e únicos dentro da multidão surda. Enfurecida. Esse vir-à-ser tsunami. E eles “devires” tontos.
   
   João não sabia outra vez onde estava. Acordou e viu pela fenda de luz azul-lilás a poeira flutuar no ar abafado-quente do quarto. Em um móvel, velho, aquela estúpida rosa. Uma rosa roxa, que lhe calou a boca e deixou-o sem palavras. O outro a tirava do peito, das entranhas, das carnes, e da experiência. Uma rosa nascia-lhe, súbito, no seu asfalto. Preenchida de espinhos e visgos iluminados. Sangue. “Somos feitos de sangue”. Descobriu junto que era sangue, feito de sangue e de gosmas. E dois, emparedaram-se naquela noite, juntos na fenda, na dor, carne de um, e na compreensão silenciosa do outro. Era dois, eram um choque, um eco, uma voragem, e muitos – todos aqueles que foram, e talvez ainda fossem. 

   - Suspiros. João esticava-se preguiçoso, encolhendo, tímido, os brios de sua juventude rija e, esperando. Essa solidão lhe era estrangeira, e atordoada. O outro lhe pendia, fendia, interiormente, pelo peito. Como um nó, como um sopro. Ele, em sua solidão de menino, tinha medo. Não sabia que era, nem o que queria, nem onde estava. Nunca o soubera. Porém fingia, furiosamente fingia, fingia ter ânimo, vigor, força - fingia ser capaz de se confiar e se oferecer. Mas. Seu fingimento era apenas uma promessa.

   E dessa afeição, nascida inesperadamente, abruptamente, de mística diferença: espaço e deslocamento. O outro com 14 anos a mais. Às vezes lhe parecia um gigante, esmagando-lhe a alma e as carnes. Mas também tinha seus medos. Com suas altercões mudas, seus suspiros de adolesceste velho, e o efeito da voz de João,... João fazia-lhe um efeito, sua voz dúbia, insegura, cheia de estonteamento – viril e infantil. Jovem e fresca. Sem esperanças de normas, caixas e contratos. Era tudo apenas hoje, depois e amanhã, e talvez um pouco mais, por que o outro lhe dizia doce, e algo desesperado, “Não solte minha mão”. Suando juntos, de mãos com mãos, ele, tão cheio de anos, experiência, e vida, sentia-se frágil e medroso. E isso lhe dava muito medo.

    Esse era o outro. João lembrou-se um dia, subindo uma escada, que “com algum afeto e amor até um cão faz poesia”. Não se lembrava de onde tirava a frase, mas repetia, pelo metrô, nas ruas e nas esquinas. E, sobretudo nos bares baratos de São Paulo.

   João não entendia bem, e nem sabia o que o outro significava. Vivia apenas. O outro dava-lhe certo pavor, dava-lhe paz, dava-lhe algo que não tinha nome. O outro, o segundo Pedro, obrigava-lhe a engolir alguma coisa. Isso lhe doía. Assustava. Era uma fragilidade adulta de homem feito apavorava-se, pois que às vezes pareciam-se, espelhos. Era um destes apavorados, destes que andam nas ruas e nos becos com os olhos no céu, e as mãos cheias de flores. “Um lunático?” – perguntava-se. Receio, que se desdobrava nos dois e que se completava, aversão a possível perda (?). E então, viria aquela coisa: sombras inomináveis, ocos sem fundo, e a dor sem nome. Isso de se estar vivo. Covardia fresca, ou preguiça? E se dizia, “preciso ser forte”, o prontamente o outro, Pedro, perguntava o que isso enfim queria dizer,...

    Encontraram-se na rua, no meio da multidão, e um olhou para o rosto do outro, reconhecendo e estranhando uma possibilidade de existência, de ânimo, e de amor fati, Pois que viver, dizia um, “é respirar um dia após o outro”, sem se perguntar se isso ou aquilo é possível, certo, bom ou ruim, apenas, assim, sem esperança, sendo, e caminhando. Dizendo sim!

   Deitado ainda, moreno. Cheio de - suspiros - Doce e ácido:
- E eu, percebendo, que de mim você guardava mais do que uma flor; escandalizava-te com minha alucinada e cruel juventude, saindo-me pelos poros, pelos olhos, e furando-lhe os teus. Teus gestos me tornavam aberto, úmido e doce – e imensamente fingidor e cruel. Sua boca espreitava-me o cadafalso da carne... Nunca encontrar uma réstia da música ideal, a situação ideal ou sonhada, e ainda desistir, conformar-se e entregar-se ao torpor do que é sintético e pronto. Seremos daqueles homens loucos que com nitidez tudo vêm? Toda terrível lucidez. O trágico de nossas vidas, e a fúria bela desse nosso querer desamparado. Aquela lucidez dos desamparados. Dos loucos e das bruxas.

    João levanta-se. Senta na cama. Observa a luz roxa entrar pela cortina azul da janela. Acende um cigarro, traga-o profundamente. Mente para si, finge que sente falta do outro. Ele era muitas máscaras, e talvez, nunca saberia onde eu, só-eu, aquele verdadeiro, estava. Alucinava máscaras, e perdia-se em si, dentro de si. E já nem sabia quem era e onde estava.
    Levantou-se, tomou um café e foi para a faculdade.


II: Pedro

  "E de repente a vida te vira ao avesso. E você descobre que o avesso é o seu lado certo". (C. F. Abreu)

   (Essa é a história de um homem feito?)

   Pedro, homem feito. Aos 17 anos começou a namorar a menina com quem um dia casaria (secretamente, ele sabia que ela era cínica)... Modelo padrão, dois filhos, formado no Largo de São Francisco, família tradicional, uma carreira consolidada. Trinta e sete anos de vida responsável. 12 anos de casamento monogâmico e estável. Dois filhos, uma conta bancária gorda, várias aplicações, e muito trabalho. E então? Um dia... Descobrira-se cadáver. Morto por dentro. Não sabia mais onde estava, e quem era. Existir para quê, e para quem.

   - E eu achava que era homem. Que me encontrava feito. Tão seguro, infinito, culto, ativo e produtivo. E eu achava que era grande. E eu nem sabia que me enganava. Pois que eu estava sendo apenas um camelo, que carrega culpas, tarefas e o mundo. Eu achava que sabia das coisas, dos aparelhos e das ideias do mundo. Era apenas um bruto, um bobo, uma criança de braços grandes. Longos e brancos. Triste e lamacento. Eu era esse eco do mundo que se comportava segunda as normas, tão regular, previsível, e estático. Eu não era umvida”, e então, pronto. Deparei-me comum grande rato ruivo, feio e sujo, com as patas esmagadas”. E esse menino-rato, com sua juventude cheia de vozes, me arrastou para fora dessa vida mortificada...

  - Pergunto-me, espantado doutor, como foi, diabos, que subitamente comecei a tanto amar a vida?

   Pedro levanta-se do divã, pensando que talvez o médico anotava: “crise da meia idade, homossexualidade latente,, neurose,...” entre outros termos cruéis e psicanalíticos. Saindo estonteado, depois de pagar a sessão e dizer boa tarde a secretária, Pedro caiu ofuscado na Avenida Angélica. Perguntava-se: “perdera a razão?” Justamente ele, tão ponderado, sério, racional e técnico.

   Definitivamente, Pedro andava em direção a avenida Paulista, pensando que essa felicidade o assustava. E que toda sua vida parecia-lhe agora uma enorme mentira. Seu rosto, aquele encaixado sobre a gravata, uma máscara tosca. - O que fazer? Largar tudo? Esposa, filhos, segurança? Apavorava-se se acovardando. E pensando, “mudo o número de meu celular, mas e se ele procurar minha filha, se contar para alguém o que fizemos? E se alguém ficar sabendo? “Porém pensar em nunca mais ver João parecia-lhe tão insuportavelmente necessário, mas por dentro, era como se encolhesse a morte e o suicídio-em-vida. Pensou então em matar-se realmente. Pois que amar, e viver parecia-lhe muito trabalhoso e arriscado, e que já não podia como antes voltar para aquela vida cinza e morna. Por instantes, odiou profundamente sua mulher, seu cinismo e suas compras; odiou também seus filhos, e lá no fundo onde não ousava ter consciência, pensou em matá-los.
Simplesmente cansou-se desse “um dia depois do outro” Já não sabia onde estava, e nem quem era. Resolveu tudo abandonar. Os filhos, a mulher, a casa, o trabalho, e ser outro. Outra probabilidade ou talvez, ainda, outra máscara.


III.

   Apenas uma carona.

   - Olha pai, esse é o João, ele faz jornalismo, e também estuda alemão. Ele também gosta de fotografias antigas.
Foi isso. Apenas isso, um encontro nascido de reminiscências duplas do passado.

   Lembrou-se: dezenove anos, uma luz dourada entrando pela clarabóia da galeria Lust. Suas mãos empoeiradas entre fotografias antigas, cartas abandonadas e livros antigos. Muitos rostos, várias vozes – memórias abandonadas, postas a venda. Um dia na galeria encontrou o professor, seu vizinho; Mateus. Solteiro (estranho!) 41 anos, com também a inexplicável paixão: Fotografias antigas. Alguns cafés, algumas conversas soltas, e aos poucos se tornando diferentemente amigos. Contava ao professor como adorava cada vez mais tocar piado, sua solidão, e seus ecos juvenis... e o outro apenas sorria, meio tímido e medroso. O outro, professor de história, um dia convidara-lhe para conhecer sua coleção e mais alguns copos de vinho.

   E subitamente, descobrira o que era aquilo que lhe faltava. Aquela mancha cinza e sem forma tinha um nome. Podia ser preenchida, entendida. O amor enlouquece?, pensava. O outro, mirando-lhe, em sua beleza branca e rija pensava: “A beleza enlouquece”.

   E então,um dia, rompendo com tudo, vestiu furiosamente aquela mesma máscara, essa que até hoje carregava. Mentindo, furiosamente mentindo, tornando-se um patético cadáver ganhador de dinheiro, uma caricatura da felicidade negada, uma desenho primitivo, apenas uma ave de rapina, infeliz e triste. Esquecera tudo, o professor, os copos de vinho, a luz dourada da galeria Lust, aquela poeira antiga...Assim, teorizaria com os olhos e dominaria o mundo com as mãos.



IV

   E então. Era aquela roxa rosa. E aquela luz azul entrando pela janela.


V.

   Entardecer em São Paulo. A luz azulada-roxa entrando pela janela-cortina-entre-aberta. Liberando na memória uma remota luz dourada. Fotografias antigas e poeira flutuando como aquela envelhecida e ausente poeira de outro apego. Os dois, cansados e ofegantes, deitados em uma cama de solteiro. E aquela forma sem nome formando-lhe de novo no peito. Rosas saindo-lhe pela boca, pétalas escorrendo-lhe pelos ombros, pelo corpo, e aquele perfume estranho saindo-lhe pela boca, e pelos poros. Pedro sentiu-se então outro, cheio de coragem e força – não para arrancar, humilhar e planejar. Mas apenas para se deixar estar. Uma entrega, um deixar ser. Arrebatamento.

   João, moreno, ávido e tanto negligente, esticou-se inteiro abraçando grave e já maduro corpo branco do outro, sentindo-lhe os pelos e as dobras – as curvas e as pequenas rugas. Beijou-lhe o rosto e cantarolou despreocupado e fingidor:

 “Like the leaf clings to the tree, oh my darling cling to me. For we're like creatures of the wind. Wild is the wind, wild is the wind”. 

  Pedro sorriu-lhe medroso, como se ainda fosse aquele moço antigo de muitos anos... “O que seria então, agora isso...” 

Infinitamente,finalmente. entregou-se. E viveu.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Declaração de Amor

(e o poeta cai na armadilha)

Ó maravilha! Voará ainda?

Sobe e as suas asas não se mexem?

Quem é então que o leva e faz subir?

Que fim tem ele, caminho ou rédea, agora?

Como a estrela e a eternidade

Vive nas alturas de que se afasta a vida,

Compassivo, mesmo para com a inveja...

E quem o subir sobe também alto.

Ó albatroz! Ó minha ave!

Um desejo eterno me empurra para os cimos

Pensei em ti e chorei.

Chorei mais e mais... Sim, eu amo-te!

Friedrich Nietzsche, in "A Gaia Ciência"

A Mão que a Seu Amigo Hesita em Dar-se


Perguntaste se eu amo o meu amigo?
como rompendo um demorado açude
na tua voz quis hausto que transmude
todo o cristal dos ímpetos consigo

Neste meu choro enevoado abrigo
pôs-me a palavra o peito em alaúde
que uma doce pergunta tua ajude
no sim furtivo que eu levei comigo

Mas a meu lábio lento em confessar-se
um mestre inda melhor o cunharia
A mão que a seu amigo hesita em dar-se

ele a tomou o que mais firme a guia
para que ao coração secreto amando
ao mundo todo em rimas o vá dando.

Walter Benjamin, in "Sonetos"
Tradução de Vasco Graça Moura

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

É Impossível Fazer Amor sem um Certo Abandono


Mas é exactamente isso que é supreendente em ti: tu gostas de dar prazer. Gostas de fazer do teu corpo um objecto agradável, gostas de dar prazer com o teu próprio corpo: é precisamente isso o que os ocidentais já não conseguem fazer. Perderam completamente o sentimento da dádiva. Mesmo esforçando-se, não conseguem assumir o sexo como uma coisa natural. Além de terem vergonha do seu corpo, muito diferente do corpo das estrelas pornográficas, também não sentem uma verdadeira atracção pelo corpo dos outros. Ora, é impossível fazer amor sem um certo abandono, sem a aceitação, pelo menos temporária, de um certo estado de fraqueza e de dependência. Tanto a exaltação sentimental como a obsessão sexual têm a mesma origem, resultam ambas do esquecimento parcial do eu; é algo que não pode acontecer sem que a pessoa perca alguma coisa de si mesma. E nós tornámo-nos frios, racionais, extremamente conscientes dos nossos direitos e da nossa existência individual; primeiro que tudo, queremos evitar a alienação e a dependência; além disso, vivemos obcecados com a saúde e com a higiene: e não são essas as condições ideais para fazer amor.

Michel Houellebecq, in 'Plataforma'

domingo, 4 de setembro de 2011

Tirania e Liberdade Lado a Lado



Tirania e liberdade não se podem considerar isoladas, mesmo se, vistas temporalmente, se revezam uma à outra. Não há dúvidas de que se pode dizer que a tirania suprime e aniquila a liberdade - mas, por outro lado, uma tirania só pode ser possível, quando a liberdade se domestica e se volatiliza no seu conveito vazio.O ser humano tende a confiar no aparelho político ou ainda a submeter-se-lhe, quando devia haurir das suas próprias fontes. O que é uma falha em imaginação. Ele tem de conhecer os pontos nos quais não pode deixar que a sua decisão soberana seja negociada. Enquanto as coisas estiverem em ordem, a água estará canalizada e a corrente eléctrica ligada. Se a vida e a propriedade forem ameaçadas, um grito de alarme fará afluir magicamente Bombeiros e Polícia. O grande perigo está em que o ser humano conta em excesso com estas ajudas e fica desamparado quando lhe faltam. Todo o conforto tem de ser pago. A situação do animal doméstico arrasta atrás de si a do animal de abate.

Ernst Jünger, in "O Passo da Floresta"

sábado, 3 de setembro de 2011

A casa do Palhaço


(Ou Cinco lances ao Tártaro)


Ao som de Rabbit Run (Eminem)



Um.

Pisa na poça. Água fria, ácida, sobre o chão de concreto. Um passo após outro. Lento. Caminha o palhaço, bobo – sem tinta na cara. Perde-se em reflexões de mesmices tolas e intensas. Sobe a lomba branca cheia de nadas e de rasgos. Controla suas pulsões. Treme. Teme, por ele e por algo seu como ódio. Mas caminha ainda, caminha, continua com uma música na cabeça. “Smile”. Não dá para continuar assim, por que não pode mais agüentar. A vida é um circo e ele o palhaço. Mas, anda, anda e anda,... Sem se perguntar. Pobres e miseráveis, pensa, sem saber o porquê de ser e dos outros. Não pode, mas contém, como sempre, as lágrimas. Para isso sorri, ri, gargalha. Seu rosto é somente a máscara de tinta, branco, vermelho, e risos – falsos e doloridos.



Dois.

O Corredor morto. Escuro. É tua mente de palhaço e teu peito que falham. Silêncio e vapores de “ais”. Enfia a chave no buraco. Entra. As mesmas paredes, vizinhos e móveis duros.

Torce a cara. Viscosidades subindo do estômago até a boca. Vomita na pia. Grita. Convulsiona. Em silêncio, esperneia e berra. Paredes cinzas, sujas e úmidas. Escuta – ou imagina - “Litte Bombardier” ao fundo dos blocos parados de prédios. Não sabe quem é, e nem o que quer.


Três.

São Paulo, 6 de junho de 85.

Querida Lu,

Hoje, quando chegava, vomitei na pia. Não consegui ainda deixar de nos ver no copo transparente e licoroso. A vodka ainda é mais clara que minha vida louca-tola. A vida é um circo. Eu sou o palhaço e você é a mulher serrada. Hoje foi horrível. Cheiro de álcool na boca. O sol estava coberto por uma estranha nuvem cinza de poeira inconsciente que invadiu todo o circo (vida). O picadeiro estava cheio de sombras. Meus olhos alegres de palhaço – bêbado equilibrista, não são mais os mesmos vaga-lumes. De repente me dei conta, que não sou essa máscara.

Mas um raio de luz ultrapassou essa escuridão imensa e fiquei lembrando dos nossos cabelos dourados emaranhados naqueles dias de verão. O Azul do mar e aquela solidão a dois. Lembra? Você ainda sabe o que eu penso e sinto? Você ainda sabe quem sou eu? Você se lembra?

Você sabe a irritação que dá quando uma torneira pinga sem parar? A aparência de uma sarjeta imunda e cinza? Assim sinto as coisas agora, todos os dias – irrito-me com minha própria aparência, embaixo da tinta, da máscara - sou sujo, lamacento e cinza.

Bom, minha mulher-serrada, é isso aí, os risos já não são verdadeiros e as coisas estão por aí,... E nós que sonhamos com um picadeiro de cores, alegria e sonho, somos tragados pela realidade das coisas vãs e reais de nossos cotidianos tolos e sem sonhos. Você ainda sonha em ser livre? O que podemos fazer se já não somos mais nada?

Amo-te sempre.

Cuida-te.

M.


PS: Dois anjos ainda hão de encontrar-se. No picadeiro, ou no trapézio. Quando bebo. Ainda acredito, mesmo cinza. E você?


Quatro.
Percorre, bobo, a parede branca da sua casa tola. É o que é, como uma planta ou um bicho. Assustado, parado, morno e bobo no canto do quarto branco. Pensa que pode fazer algo - um café, um chá? -, mas não consegue se levantar. Está parado em uma motricidade morna e banal. Não está em “que-porra-de-lugar-é-esse-aí-que-dor-na-cabeça” e mesmo assim não consegue agüentar este nada enorme - algo ríspido que lhe invade a alma dolorida e roxa. Por isso quer escrever na mente com lápis - no papel branco de si - algo que lhe dê um rosto, nem tão roxo, nem tão torcido e triste. Neste silêncio trágico-parado e gordo, o telefone não toca, as coisas são paradas e tolas. Os livros, os discos e os papéis então além de. Mas está neles, com eles e está para eles - por que vive para tê-los. Qual a diferença entre eles e M.? É esse amor-coisa dolorido e roxo, meio frouxo que transforma as coisas e infelizmente. Não afasta todas as folhas secas, mortas e vermelhas. O tédio morno da noite/tarde/manhã de quinta-feira, e o ponteiro-porteiro dos segundos do relógio continua andando, andando, andando, andando... Ele te olha. Sempre. E diz, morre palhaço!

Mesmo assim continua lá parado estático, deitado, em movimento. Caçando as moscas dos pensamentos.

Decide. Esvair-se.

Arranha o braço. Obsessivamente. Vê o sangue. Sangue, vermelho e rubro de amor e roseiras,... Traz-lhe paz. Quente, úmida, quente e viva. Lembra-se de uma boca. Vermelha, azul e roxa. Lambuza-se o rosto com esta paz – vermelho-úmida-morna - tinta de palhaço. Lembra-se que ainda pulsa. E por isso, todo palhaço, ri!


Quinto

Vê uma agulha penetrar-lhe as carnes e as veias do braço. Tiras de couro prendem seu corpo. Joga-se, debate, mas não se mexe, corta os lábios, separados pelos dentes,... Novamente sente paz, vermelha e úmida, desta vez salgada. Na boca. Mas você, de repente, se lembra de sua pequena avó, pequena, franzina e enrugada que lhe dizia: “Vai meu filho, coragem, que isso tudo passa!”. Lembra dela, para e vê a carne velha em putrefação no túmulo. O seu túmulo ou o dela? Quer gritar, mas já não pode. Algo trava sua boca... Uma nuvem branca invade sua mente, paz... Dor, horror, mix de ódio, amor e fúria. Lençóis brancos e suor. Seu pescoço dói. Trava. Tua espinha quebra-se em convulsões.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Certeza



Se é real a luz branca
desta lâmpada, real
a mão que escreve, são reais
os olhos que olham o escrito?

Duma palavra à outra
o que digo desvanece-se.
Sei que estou vivo
entre dois parênteses.

Octavio Paz, in "Dias Hábeis"
Tradução de Luis Pignatelli

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O Sexo Como Factor de Génio



O facto de o sexo desempenhar um maior ou menor papel na vida de alguém parece relativamente irrelevante. Algumas das maiores realizações de que temos notícia foram empreendidas por indivíduos cuja vida sexual foi reduzida ou nula. Em contrapartida, sabemos pela biografia de certos artistas - figuras de primeira grandeza - que as suas obras imponentes nunca teriam sido realizadas se eles não tivessem vivido mergulhados em sexo. No caso de alguns poucos, os períodos de criatividade excepcional coincidiram com períodos de extrema licença sexual. Nem a abstinência nem a licença explicam seja o que for.

No campo do sexo como noutros campos, costumamos referir-nos a uma norma - mas a norma indica apenas o que é estatisticamente verdade para a grande massa dos homens e das mulheres. Aquilo que pode ser normal, razoável, salutar, para a grande maioria, não nos fornece um critério de comportamento no caso do indivíduo excepcional. O homem de génio, quer pela sua obra, quer pelo seu exemplo pessoal, parece estar sempre a proclamar a verdade segundo a qual cada um é a sua própria lei, e o caminho para a realização passa pelo reconhecimento e pela compreensão do facto de que todos somos únicos.

Henry Miller, in "O Mundo do Sexo"