Convaincu du néant de tout, il reste délicieux de s'attendrir sur la fragilité des roses
(Maurice Renan)
Ao som de Wild Is The Wind – David Bowie ou Nina Simone
I: João
Ele entrou. Enterneceu-me com coragem, uma rosa roxa nas mãos. Seus olhos lacrimejando lívidos, alívio desanvergonhado. Encontrando-se os dois, pelos cantos dos olhos, belas beiras e fissuras, pelas ruas, quartos, cafés, bares baratos e esquinas. Dias escuros e dias claros, entardeceres e visões instantâneas de um paraíso há tanto tempo ansiado. Divagações a dois. Instantes, afagos e beijos trêmulos. Medo. Medo da possibilidade. Tremores. Eram dois, e eram muitos. Múltiplos e únicos dentro da multidão surda. Enfurecida. Esse vir-à-ser tsunami. E eles “devires” tontos.
João não sabia outra vez onde estava. Acordou e viu pela fenda de luz azul-lilás a poeira flutuar no ar abafado-quente do quarto. Em um móvel, velho, aquela estúpida rosa. Uma rosa roxa, que lhe calou a boca e deixou-o sem palavras. O outro a tirava do peito, das entranhas, das carnes, e da experiência. Uma rosa nascia-lhe, súbito, no seu asfalto. Preenchida de espinhos e visgos iluminados. Sangue. “Somos feitos de sangue”. Descobriu junto que era sangue, feito de sangue e de gosmas. E dois, emparedaram-se naquela noite, juntos na fenda, na dor, carne de um, e na compreensão silenciosa do outro. Era dois, eram um choque, um eco, uma voragem, e muitos – todos aqueles que foram, e talvez ainda fossem.
- Suspiros. João esticava-se preguiçoso, encolhendo, tímido, os brios de sua juventude rija e, esperando. Essa solidão lhe era estrangeira, e atordoada. O outro lhe pendia, fendia, interiormente, pelo peito. Como um nó, como um sopro. Ele, em sua solidão de menino, tinha medo. Não sabia que era, nem o que queria, nem onde estava. Nunca o soubera. Porém fingia, furiosamente fingia, fingia ter ânimo, vigor, força - fingia ser capaz de se confiar e se oferecer. Mas. Seu fingimento era apenas uma promessa.
E dessa afeição, nascida inesperadamente, abruptamente, de mística diferença: espaço e deslocamento. O outro com 14 anos a mais. Às vezes lhe parecia um gigante, esmagando-lhe a alma e as carnes. Mas também tinha seus medos. Com suas altercões mudas, seus suspiros de adolesceste velho, e o efeito da voz de João,... João fazia-lhe um efeito, sua voz dúbia, insegura, cheia de estonteamento – viril e infantil. Jovem e fresca. Sem esperanças de normas, caixas e contratos. Era tudo apenas hoje, depois e amanhã, e talvez um pouco mais, por que o outro lhe dizia doce, e algo desesperado, “Não solte minha mão”. Suando juntos, de mãos com mãos, ele, tão cheio de anos, experiência, e vida, sentia-se frágil e medroso. E isso lhe dava muito medo.
Esse era o outro. João lembrou-se um dia, subindo uma escada, que “com algum afeto e amor até um cão faz poesia”. Não se lembrava de onde tirava a frase, mas repetia, pelo metrô, nas ruas e nas esquinas. E, sobretudo nos bares baratos de São Paulo.
João não entendia bem, e nem sabia o que o outro significava. Vivia apenas. O outro dava-lhe certo pavor, dava-lhe paz, dava-lhe algo que não tinha nome. O outro, o segundo Pedro, obrigava-lhe a engolir alguma coisa. Isso lhe doía. Assustava. Era uma fragilidade adulta de homem feito apavorava-se, pois que às vezes pareciam-se, espelhos. Era um destes apavorados, destes que andam nas ruas e nos becos com os olhos no céu, e as mãos cheias de flores. “Um lunático?” – perguntava-se. Receio, que se desdobrava nos dois e que se completava, aversão a possível perda (?). E então, viria aquela coisa: sombras inomináveis, ocos sem fundo, e a dor sem nome. Isso de se estar vivo. Covardia fresca, ou preguiça? E se dizia, “preciso ser forte”, o prontamente o outro, Pedro, perguntava o que isso enfim queria dizer,...
Encontraram-se na rua, no meio da multidão, e um olhou para o rosto do outro, reconhecendo e estranhando uma possibilidade de existência, de ânimo, e de amor fati, Pois que viver, dizia um, “é respirar um dia após o outro”, sem se perguntar se isso ou aquilo é possível, certo, bom ou ruim, apenas, assim, sem esperança, sendo, e caminhando. Dizendo sim!
Deitado ainda, moreno. Cheio de - suspiros - Doce e ácido:
- E eu, percebendo, que de mim você guardava mais do que uma flor; escandalizava-te com minha alucinada e cruel juventude, saindo-me pelos poros, pelos olhos, e furando-lhe os teus. Teus gestos me tornavam aberto, úmido e doce – e imensamente fingidor e cruel. Sua boca espreitava-me o cadafalso da carne... Nunca encontrar uma réstia da música ideal, a situação ideal ou sonhada, e ainda desistir, conformar-se e entregar-se ao torpor do que é sintético e pronto. Seremos daqueles homens loucos que com nitidez tudo vêm? Toda terrível lucidez. O trágico de nossas vidas, e a fúria bela desse nosso querer desamparado. Aquela lucidez dos desamparados. Dos loucos e das bruxas.
João levanta-se. Senta na cama. Observa a luz roxa entrar pela cortina azul da janela. Acende um cigarro, traga-o profundamente. Mente para si, finge que sente falta do outro. Ele era muitas máscaras, e talvez, nunca saberia onde eu, só-eu, aquele verdadeiro, estava. Alucinava máscaras, e perdia-se em si, dentro de si. E já nem sabia quem era e onde estava.
Levantou-se, tomou um café e foi para a faculdade.
II: Pedro
"E de repente a vida te vira ao avesso. E você descobre que o avesso é o seu lado certo". (C. F. Abreu)
(Essa é a história de um homem feito?)
Pedro, homem feito. Aos 17 anos começou a namorar a menina com quem um dia casaria (secretamente, ele sabia que ela era cínica)... Modelo padrão, dois filhos, formado no Largo de São Francisco, família tradicional, uma carreira consolidada. Trinta e sete anos de vida responsável. 12 anos de casamento monogâmico e estável. Dois filhos, uma conta bancária gorda, várias aplicações, e muito trabalho. E então? Um dia... Descobrira-se cadáver. Morto por dentro. Não sabia mais onde estava, e quem era. Existir para quê, e para quem.
- E eu achava que já era homem. Que já me encontrava feito. Tão seguro, infinito, culto, ativo e produtivo. E eu achava que já era grande. E eu nem sabia que me enganava. Pois que eu estava sendo apenas um camelo, que carrega culpas, tarefas e o mundo. Eu achava que sabia das coisas, dos aparelhos e das ideias do mundo. Era apenas um bruto, um bobo, uma criança de braços grandes. Longos e brancos. Triste e lamacento. Eu era esse eco do mundo que se comportava segunda as normas, tão regular, previsível, e estático. Eu já não era um “vida”, e então, pronto. Deparei-me com “um grande rato ruivo, feio e sujo, com as patas esmagadas”. E esse menino-rato, com sua juventude cheia de vozes, me arrastou para fora dessa vida mortificada...
- Pergunto-me, espantado doutor, como foi, diabos, que subitamente comecei a tanto amar a vida?
Pedro levanta-se do divã, pensando que talvez o médico anotava: “crise da meia idade, homossexualidade latente,, neurose,...” entre outros termos cruéis e psicanalíticos. Saindo estonteado, depois de pagar a sessão e dizer boa tarde a secretária, Pedro caiu ofuscado na Avenida Angélica. Perguntava-se: “perdera a razão?” Justamente ele, tão ponderado, sério, racional e técnico.
Definitivamente, Pedro andava em direção a avenida Paulista, pensando que essa felicidade o assustava. E que toda sua vida parecia-lhe agora uma enorme mentira. Seu rosto, aquele encaixado sobre a gravata, uma máscara tosca. - O que fazer? Largar tudo? Esposa, filhos, segurança? Apavorava-se se acovardando. E pensando, “mudo o número de meu celular, mas e se ele procurar minha filha, se contar para alguém o que fizemos? E se alguém ficar sabendo? “Porém pensar em nunca mais ver João parecia-lhe tão insuportavelmente necessário, mas por dentro, era como se encolhesse a morte e o suicídio-em-vida. Pensou então em matar-se realmente. Pois que amar, e viver parecia-lhe muito trabalhoso e arriscado, e que já não podia como antes voltar para aquela vida cinza e morna. Por instantes, odiou profundamente sua mulher, seu cinismo e suas compras; odiou também seus filhos, e lá no fundo onde não ousava ter consciência, pensou em matá-los.
Simplesmente cansou-se desse “um dia depois do outro” Já não sabia onde estava, e nem quem era. Resolveu tudo abandonar. Os filhos, a mulher, a casa, o trabalho, e ser outro. Outra probabilidade ou talvez, ainda, outra máscara.
III.
Apenas uma carona.
- Olha pai, esse é o João, ele faz jornalismo, e também estuda alemão. Ele também gosta de fotografias antigas.
Foi isso. Apenas isso, um encontro nascido de reminiscências duplas do passado.
Lembrou-se: dezenove anos, uma luz dourada entrando pela clarabóia da galeria Lust. Suas mãos empoeiradas entre fotografias antigas, cartas abandonadas e livros antigos. Muitos rostos, várias vozes – memórias abandonadas, postas a venda. Um dia na galeria encontrou o professor, seu vizinho; Mateus. Solteiro (estranho!) 41 anos, com também a inexplicável paixão: Fotografias antigas. Alguns cafés, algumas conversas soltas, e aos poucos se tornando diferentemente amigos. Contava ao professor como adorava cada vez mais tocar piado, sua solidão, e seus ecos juvenis... e o outro apenas sorria, meio tímido e medroso. O outro, professor de história, um dia convidara-lhe para conhecer sua coleção e mais alguns copos de vinho.
E subitamente, descobrira o que era aquilo que lhe faltava. Aquela mancha cinza e sem forma tinha um nome. Podia ser preenchida, entendida. O amor enlouquece?, pensava. O outro, mirando-lhe, em sua beleza branca e rija pensava: “A beleza enlouquece”.
E então,um dia, rompendo com tudo, vestiu furiosamente aquela mesma máscara, essa que até hoje carregava. Mentindo, furiosamente mentindo, tornando-se um patético cadáver ganhador de dinheiro, uma caricatura da felicidade negada, uma desenho primitivo, apenas uma ave de rapina, infeliz e triste. Esquecera tudo, o professor, os copos de vinho, a luz dourada da galeria Lust, aquela poeira antiga...Assim, teorizaria com os olhos e dominaria o mundo com as mãos.
IV
E então. Era aquela roxa rosa. E aquela luz azul entrando pela janela.
V.
Entardecer em São Paulo. A luz azulada-roxa entrando pela janela-cortina-entre-aberta. Liberando na memória uma remota luz dourada. Fotografias antigas e poeira flutuando como aquela envelhecida e ausente poeira de outro apego. Os dois, cansados e ofegantes, deitados em uma cama de solteiro. E aquela forma sem nome formando-lhe de novo no peito. Rosas saindo-lhe pela boca, pétalas escorrendo-lhe pelos ombros, pelo corpo, e aquele perfume estranho saindo-lhe pela boca, e pelos poros. Pedro sentiu-se então outro, cheio de coragem e força – não para arrancar, humilhar e planejar. Mas apenas para se deixar estar. Uma entrega, um deixar ser. Arrebatamento.
João, moreno, ávido e tanto negligente, esticou-se inteiro abraçando grave e já maduro corpo branco do outro, sentindo-lhe os pelos e as dobras – as curvas e as pequenas rugas. Beijou-lhe o rosto e cantarolou despreocupado e fingidor:
“Like the leaf clings to the tree, oh my darling cling to me. For we're like creatures of the wind. Wild is the wind, wild is the wind”.
Pedro sorriu-lhe medroso, como se ainda fosse aquele moço antigo de muitos anos... “O que seria então, agora isso...”
Infinitamente,finalmente. entregou-se. E viveu.
Um comentário:
De certo rodopiar das palavras a uma estonteante mistura de sensações, o texto obscuro perde força no capítulo II. Ainda assim permanece latente. Manteria umas partes, tiraria outras e tornaria o texto mais vigoroso e fulgaz.
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