sábado, 28 de junho de 2008

ONDE ENCONTRAR A DIFERENÇA ENTRE UMA OBRA DE ARTE E UMA MERCADORIA




Teoria da mídia em Walter Benjamin

Norbert W. Bolz

Tradução de George Bernard Sperber

Na minha opinião, a resposta a esta pergunta é muito simples, a saber, não há qualquer diferença entre obra de arte e mercadoria, pelo menos a partir da perspectiva de Walter Benjamin. Usando uma redução cabível numa palestra de apenas trinta minutos, eu até diria que, segundo o ponto de vista de Benjamin, só existem obras de arte na medida em que elas estão embutidas na forma de mercadorias. E que tudo aquilo que foi produzido esteticamente antes da configuração da arte pela forma da mercadoria não tinha a qualidade específica da arte autônoma, mas tinha caráter de culto. Quer dizer que, antes da autonomia, poder-se-ia dizer também antes da constituição da arte especificamente burguesa, as práticas estéticas eram momentos de um contexto cultual abrangente. Ou seja, antes da arte, a práxis estética era práxis cultual. Assim que a arte se constitui, no sentido próprio que hoje lhe damos, ela é inseparável da forma de mercadoria. Ou seja, não há qualquer diferença entre obra de arte e mercadoria. E depois da arte burguesa - e eu quero, a seguir, formular perspectivas de uma arte pós-burguesa, tal como ela se constituía para Benjamin através da mídia moderna - depois desta arte burguesa não mais existem obras de arte no sentido tradicional, mas existe um retorno da práxis estética, ou da prática da estética.

Talvez fosse o caso de dar ainda uma breve explanação, totalmente imanente a Benjamin, desta minha tese fundamental, talvez um pouco decepcionante, de que não há qualquer diferença entre obra de arte e mercadoria. Ela não existe, pelo menos do ponto de vista metodológico, para Benjamin. O que Benjamin pesquisou, por exemplo, no século XVII, sob o título "Emblema e Alegoria", visava sempre os efeitos de um esvaziamento do mundo. Quer dizer, a alegoria esvaziara o mundo, tornara-o isento de substância, aleatório e funcionalmente aplicável em seus componentes. Este esvaziamento alegórico do mundo é ultrapassado infinitamente na nossa modernidade tardia, isto é, mais tardar desde o século XIX, por aquilo que a mercadoria oferece. Para nós, para o nosso próprio horizonte de experiências, a mercadoria produz, enquanto esvaziamento do mundo, exatamente aquilo que a maneira alegórica dc ' ver havia produzido ainda no século XVII. Num determinado trecho de seu livro sobre o drama barroco alemão, Benjamin diz, de uma forma muito bonita, "a cosmovisão alegórica faz jus a este mundo, pois ele é um mundo no qual o detalhe não tem a menor importância".

Daqui em diante, deixarei as minhas elucubrações fluírem para a teoria do cinema de Benjamin, para mostrar que Benjamin vê no cinema uma ótica aberta pela técnica, dentro da qual, sim, o detalhe tem importância. Isto é, ele mostra como, num mundo dentro do qual o detalhe não tem, na verdade, importância, há, assim mesmo, a abertura de um novo mundo, no qual o detalhe tem importância. Benjamim também fala do inferno do detalhe, onde se abrem, portanto, estruturas e formas de percepção inteiramente novas. E deste modo, o cinema se torna a síntese, o resumo de todos os questionamentos estéticos de Benjamin.

Acho que o que antecede é o bastante, enquanto exposição de uma estética dos meios de comunicação, da qual falarei a seguir. Foi difícil, para mim, ficar calado no debate anterior, quando se falou da filosofia da linguagem, porque não vejo a atualidade de Benjamin naquele campo. Eu diria que a atualidade de Benjamin se dá radicalmente no campo da estética dos meios de comunicação de massas. Benjamin não mais pensa no conceito da estética no sentido tradicional para nós, no sentido de uma teoria das belas artes, nem mesmo no sentido geral dc uma teoria das artes, mas pensa na estética a partir de sua etimologia grega, isto é, da aisthesisê, ou seja, como doutrina da percepção. E, enquanto uma tal doutrina da percepção, a estética não é um departamento entre outros, mas é para Benjamin, uma nova ciência diretriz.

O que temos que perceber agora é que a modernidade estruturou cada vez mais, através da tecnologia, as funções da percepção, e que faz parte de nossas experiências mais fundamentais o fato dc nossa percepção ser perpassada por aparelhos e construções. Estas construções, pelo menos segundo Benjamin, não devem ser entendidas de tal forma que obstruam a nossa visão natural do mundo. É muito mais importante ver que estes aparelhos e construções configuram de maneira fundamental - filosoficamente eu diria a priori - a nossa percepção do mundo. Onde quero chegar? Quero chegar a dizer que estes novos meios representam algo assim como um novo a priori histórico e tecnológico da percepção do mundo. Por isso, hoje, uma estética científica deve ser formulada como uma teoria da mídia.

Para que isso se torne historicamente mais plausível, vamos partir do meio diretor da própria razão ocidental, daquilo que o Sr. Witte debateu quando falou em logocentrismo: da escrita alfabética. Esta escrita alfabética sofre, ao longo do desenvolvimento da modernidade, mudanças decisivas, que poderiam ser resumidas com a seguinte frase: "A escrita se emancipa do livro". A escrita sai do livro, emigra do livro e imigra para as formas da moda, para as formas da arquitetura e, sobretudo, naturalmente, para as formas da propaganda. E por isso, estes fenômenos, moda, arquitetura e propaganda, são tão infinitamente importantes para Benjamin, justamente por poderem ser decifrados como escrita. E também por isso a moderna metrópole se apresenta a Walter Benjamin como um fluxo cristalizado de dados. Max Bense cunhou certa vez uma expressão muito marcante para este novo mundo, chamando-o de "mundo dos cartazes".

As letras da propaganda diferenciam-se das letras do livro simplesmente pelo fato de não mais poderem ser distanciadas de forma contemplativa, mas de serem penetrantes, no sentido literal da palavra. Penetram no leitor quase que fisicamente. Poder-se-ia dizer até que elas incomodam o leitor. E no fundo, a propaganda, exatamente como a moda e a arquitetura, é uma escrita que nem mesmo precisa ser lida, porque ataca fisicamente o ser humano. E o ataca naquilo que o homem faz no seu dia-a-dia, nos seus hábitos mais corriqueiros, como morar, trabalhar - enfim, em todas as atividades mais evidentes. Este é um dos pontos que poderíamos resumir com a frase da emancipação da escrita do livro.

O segundo momento decisivo para Benjamin é a técnica da reprodução da imagem. É sabido que ele escreveu uma breve história da fotografia, ou seja, a fotografia teve para ele um papel relevante. Quero chamar a atenção para um ponto importante, a saber, para o instante decisivo para a fotografia em que ela se libera de sua aura. É fácil lembrar, seja pela própria experiência, seja pela leitura de Benjamin, que as primeiras fotografias apresentavam características de aura, simplesmente pelo fato de as primeiras câmaras não possuírem objetivas muito eficientes. Por isso ocorriam estes fenômenos peculiares, fantasmagóricos, que hoje nos parecem esteticamente atraentes. Há pouco tempo foi organizada uma exposição de Henry Fox Talbot que apresentava efeitos estéticos notáveis, justamente devido a esta característica de aura das fotografias primitivas. O decisivo para Benjamin é justamente o momento da destruição desta aura das fotografias, devido ao desenvolvimento de objetivas mais eficientes e de material fotográfico melhor. Este desencantamento da fotografia fornece-nos, pois, imagens desprovidas de impressões, ricas em detalhes detetivescos da realidade. É claro que mais recentemente voltou a ser moda fazer fotografias com aura. Este ponto poderia ser tratado durante o debate, porque ele tem grande importância sistemática para mim. As fotografias que interessam a Benjamin mostram imagens de "cenários", de locais onde algo ocorreu, mas que foram esvaziados de seres humanos. Esta visão do mundo sem aura ainda não fornece, contudo, o conhecimento desse mundo.

Uma frase famosa de Bertholt Brecht, fartamente conhecida, refere-se exatamente a esta questão, e diz mais ou menos assim: "Uma foto da fábrica da AEG nada diz a respeito da realidade da AEG". É claro que isso pode ser aplicado a qualquer outra fábrica ou instituição social. Uma fotografia de uma situação econômica ou social complexa não fornece qualquer conhecimento sobre esta situação. Se, mesmo assim, a fotografia enquanto moderno meio de comunicação - talvez o primeiro deles - quiser contribuir para o conhecimento histórico, ela própria deverá tornar-se construtiva. E este "tornar-se construtivo" da fotografia leva Benjamin fundamentalmente para duas técnicas. A primeira técnica consiste em legendar as fotografias. O exemplo mais simples disso, mas talvez não o mais importante, embora possa ser compreendido mais facilmente, é o do jornal. Qualquer fotografia publicada num jornal não diz praticamente nada se não for lida a legenda com que vem acompanhada. É só a legenda que transmite, por assim dizer, o conhecimento que a imagem pretende transmitir. Há formas mais sutis de legendar fotografias, a respeito das quais voltaremos a falar. Antes disso, porém, quero explicar a segunda técnica. A fotografia cria conhecimento no momento em que não age isolada, mas quando, através de efeitos de montagem, é interligada com outras imagens. Um maravilhoso exemplo disso aparece na capa de nosso programa, onde de maneira genial ou, quem sabe, inconscientemente genial, há uma superposição de uma foto de Benjamin com um seu manuscrito. Ou seja, há um confronto entre Benjamin e um meio de comunicação moderno e o meio de comunicação mais arcaico de todos: a escrita manual. É um belo exemplo de nossa teoria.

Retomando o fio da meada, a fotografia, para se tornar um meio para a transmissão do conhecimento histórico, necessita ganhar uma função construtiva, para além da função meramente reprodutiva. É necessário dizer, pois, como o dizia a frase de Brecht, que quanto mais funcional for a existência, tanto mais difícil é sua reprodução em imagens. Brecht também cunhou outra frase famosa, ao dizer que a realidade deslizou para o funcional. Nem sei se isso pode ser traduzido de forma a ficar tão bonito como em alemão. O que ela quer dizer é que, quanto mais a nossa vida se dissolve em relacionamentos funcionais, tanto mais difícil fica retratar simplesmente esta vida ou reproduzi-la fotograficamente. Mas, quando a gente quer se fazer uma imagem do mundo, por exemplo através de uma fotografia, são mister preparativos especiais. Por isso a fotografia (e a palavra fotografia significa, literalmente, escrita feita com luz) precisa desenvolver uma técnica construtiva.

A minha tese seguinte diz que a fotografia se torna técnica construtiva exatamente na medida em que se emancipa do homem. A fotografia liberta-se do ser humano, tornando-se, assim, um meio para o conhecimento histórico. Deixarei claro o que isso significa em base a um exemplo simples. O olho natural somente nos oferece o mundo cotidiano que, para nós, não tem qualquer qualidade de conhecimento, de entendimento. O argumento de Benjamin consiste em dizer que a lente, as diversas possibilidades da lente da câmara, assim como a condução da câmara, nos libertam da ótica dos nossos olhos naturais e nos apresentam mundos, nos mostram recortes de uma espécie antifísica, contranatural, na qual se delineiam nitidamente formações estruturais às quais o nosso olho natural nunca teria acesso. Esta seria, pois, uma forma de conhecimento através de uma ótica antifísica.

Mas, como já foi dito de início, todas as reflexões estéticas de Benjamin a respeito da mídia, tanto as que se referem à escrita como as que se referem à fotografia, desembocam numa teoria do cinema. Para Benjamin, o cinema se encontra no fim de um desenvolvimento da percepção que foi deslanchado na Alemanha lá por volta de 1800, ou seja, nos tempos do romantismo precoce. Esta evolução da percepção, que vai de 1800 até nossos dias, não é passível de ser descrita suficientemente com conceitos da modernidade clássica. Este fato pode ser verificado com as seguintes experiências marcantes. O que antes era chamado de estilo é substituído pela moda; o que era chamado de arte, ou celebrado como arte, é substituído pela propaganda. E o lugar da bela aparência é ocupado pela realidade cinematográfica. Este termo "realidade cinematográfica" é uma citação da obra de Benjamin sobre as galerias, e eu tentarei explicitá-lo um pouco. Para Benjamin, o cinema não é nada mais nada menos do que a escola de uma forma de percepção do tempo, a saber, uma percepção do tempo para a qual não há mais continuidade, para a qual não há nenhum valor no sentido clássico do termo. Todos nós nos exercitamos nesta forma de perceber o tempo toda vez que vamos ao cinema.

Talvez seja necessário dizer agora algo de fundamental para se entender tudo o que se segue: Benjamin, em princípio, não se interessa pelo conteúdo dos filmes. Ou, para formulá-lo de uma maneira mais cautelosa, o que interessa na teoria de Benjamin nada tem a ver com o conteúdo dos filmes, mas única e exclusivamente com a sua forma. Esta constatação é importante, para que não haja mal-entendidos a respeito do que segue, porque a nova percepção do tempo, este novo ritmo irregular, feito de empurrões, com as suas superposições e montagens, corresponde a um fluxo de notícias, a um fluxo de dados que é afunilado pelo princípio seletivo da sensação. Portanto, a sensação é, por assim dizer, o critério, também o critério de seleção para este novo fluxo de dados e notícias.

Muitos afirmam, afirmaram hoje mesmo, que Benjamin é marxista. Tenho minhas dúvidas a respeito. Mas há um ponto em que ele poderia ser considerado, pelo menos aqui e agora, como marxista, a saber, como alguém que concebe as máquinas modernas, tais quais Marx as descreve n'O Capital, como modelos, como protótipos para o desenvolvimento das formas de percepção. Benjamin vê, concebe o cinema como o meio em que as formas de percepção são treinadas para serem correspondentes às modernas máquinas. O cinema oferece um aprofundamento da percepção, mas não fornece, de jeito nenhum, uma interpretação do sentido. Através destes choques, produzidos pelos jatos de imagens, o cinema corresponde a uma das necessidades decisivas da modernidade, a saber, a de viver em descontinuidade. Portanto, numa perspectiva bem mais otimista que a de Adorno, Benjamin não parte do princípio de que sofremos pelo fato de não mais existir um devir, uma continuidade. Ele diz que nós, enquanto homens modernos, temos necessidade de viver em descontinuidade. Nietzsche diz algo que corresponde muito bem a esta posição, numa frase belíssima: "Gostamos dos hábitos breves". Da mesma forma que o cinema, também o jornal rompe com a continuidade da leitura. E quem há de negar que o trânsito das grandes cidades rompe com os movimentos naturais do ser humano.

Dessa forma, portanto, no cinema a gente aprende a incorporar descontinuidades e se exercita nelas. O ponto decisivo nisso tudo é o seguinte: no cinema a gente aprende a exercitar descontinuidades num estado de distração. Eu gostaria de reduzir tudo isso a uma definição: hoje em dia, perceber significa tomar os choques como rotina.

A conclusão desse raciocínio poderia ser, para uso dos intelectuais na galáxia de Gutenberg, a seguinte: o distanciamento diante da realidade, a procura permanente de uma certa perspectiva para a percepção do mundo, comportamento típico dos intelectuais e dos burgueses cultos da galáxia de Gutenberg, são substituídos integralmente pela proximidade objetiva. E com isso a crítica atinge a sua hora derradeira. Porque crítica pressupõe perspectiva, pressupõe afastamento correto e necessário para poder diferenciar, criticar, julgar com distanciamento. De fato, o crítico ainda era capaz de assumir um ponto de vista e gozava ainda da despreocupação permitida por uma observação isenta. Mas tudo isso não mais existe, em vista da realidade cinematográfica. O lugar do golpe de vista e da consciência crítica é ocupado pela tatilidade e pela proximidade. Benjamin entende o cinema como o lugar em que acorre algo que já fora prometido por um grandioso mito no nascimento da tragédia de Nietzsche, a saber, a ressurreição do espectador genuinamente estético.

Não há aqui espaço nem tempo para explicitar o nascimento da tragédia em Nietzsche. Em todo caso, para ele a grande experiência de Bayreuth consistiu não apenas em que, graças à Gesamtkunstwerk, a obra de arte integral wagneriana, haja sido possível recuperar a tragédia, retomar a Antigüidade, mas também em que a Gesamtkunstwerk tenha dado nascimento, pelo lado da recepção, a um espectador estético, que estava perdido há dois mil anos. E ele tinha se perdido pelo fato de existirem personagens como o burguês "curtidor" e o crítico intelectual. E, pelo fato de os críticos intelectuais não saberem "curtir" e os burgueses "curtidores" não saberem criticar nem serem sagazes, dois mil anos de cultura burguesa foram atrozes, do pondo de vista de Nietzsche. Ergo ele via na Gesamtkunstwerk a grande esperança para a ressurreição deste espectador antigo, genuinamente estético.

O que a nós interessa, neste momento, é verificar que Benjamin afirma a mesma coisa a respeito do cinema, e que este espectador genuinamente estético que, por assim dizer, nasce com o público cinematográfico, torna supérfluos os críticos. Isso porque o filme, diferentemente da obra de arte burguesa, não é objeto de contemplação, mas é o objeto, o instrumento, de um exercício prático. A palavra preferida de Benjamin neste contexto é "teste", pois de fato o espectador estético testa, no cinema, quer dizer, sua atitude não é crítico-intelectual nem burguesa-"curtidora", mas se torna uma síntese, na medida em que ele testa. Testa com prazer, se esta expressão for preferível.

Estou chegando ao fim das minhas reflexões com dois pensamentos a respeito da relação entre estes novos meios de comunicação de massa e a psicanálise, por um lado, e com a experiência da Guerra Mundial, pelo outro. O cinema produz uma imagem peculiar do mundo, uma imagem que é jeitosa e operacional, e não contemplativa e distanciada. É jeitosa porque dá para lidar com ela. É o resultado do fato técnico de que a câmara parte o todo do mundo das imagens em pedaços. Poder-se-ia dizer que a aparência que a câmara produz - porque o que o cinema nos apresenta não é a realidade, mas aparência - que esta aparência se torna aproveitável graças ao cinema e às suas técnicas. É a primeira aparência aproveitável. Segundo a experiência de Benjamin, não é mais possível a gente submergir, se aprofundar nas imagens do cinema. Portanto, não é mais possível comportar-se contemplativamente diante delas. O que, trocado em miúdos, significa que as imagens do cinema, a realidade cinematográfica, excluem, impedem a interiorização. Os meios técnicos de que a câmara se utiliza para penetrar na realidade e para fornecer imagens despedaçadas da realidade são fartamente conhecidos. O close-up, a câmara lenta, a trucagem, a montagem.

É necessário lembrar o que já afirmei, que Benjamin vê a emancipação da nova mídia como sendo equivalente a uma emancipação do ser humano. Esta afirmação se vê confirmada agora de forma marcante, pois o que é decisivo quanto a esta imagem do mundo, transmitida pelo cinema, é o fato dela não surgir sob a tutela de um autor ou de um diretor famoso. Estas personagens não existem realmente, são figuras cult. A Hollywood moderna tem a enorme vantagem de reduzir novamente a zero essa personagem cult do grande diretor. As figuras importantes na produção de um filme, hoje em dia, são os responsáveis pelos efeitos especiais, os especialistas em trucagem. E o que isso significa, no dia-a-dia do cinema de hoje, é que a produção de um filme se faz sob a égide da objetiva e não da consciência de um autor. O filme fornece, assim, aquilo que o próprio Benjamin chamara de "trabalho prismático". Esta expressão significa o seguinte: o nosso cotidiano é cinzento, pelo menos na Alemanha isso é perceptível de imediato. Esse cotidiano é desmembrado como um prisma pelo cinema. O cinema tem o mesmo efeito da psicanálise, só que o tem para um mundo das coisas. Eu diria até que o cinema faz a psicanálise do mundos das coisas. E é apenas o olho da câmara cinematográfica que tem esse olhar diabólico para o inferno do detalhe. Quero dizer que é dentro do detalhe, que aparentemente não tem a menor importância, que se abrem as portas de um verdadeiro inferno.

O último ponto. A Primeira Guerra Mundial. A minha tese é que, para Benjamin, desde a Primeira Guerra Mundial, os meios de comunicação de massa ocuparam o lugar da experiência e da memória. Memória e experiência foram destruídas, destruídas traumaticamente pelos choques da Primeira Guerra Mundial, e o seu lugar é ocupado pelos meios de comunicação de massa. E o que acontece agora, após a Primeira Guerra Mundial, não mais jaz nas profundezas da memória (não há mais nenhum Proust a ajudar-nos), mas na superfície dos arquivos iconográficos. Por isso, a Guerra Mundial é, para Benjamin, o antiépico por excelência. Nada pode ser relatado a seu respeito, porque o que a Guerra Mundial conseguiu foi transformar a vida toda em seqüências de choques. Portanto, a Guerra Mundial faz com os homens exatamente aquilo que o cinema faz com o mundo: transforma aquilo que é passível de experiência, de vivência, em seqüências de choques.

Eu defino a experiência fundamental de Benjamin com uma frase, que certamente é difícil de traduzir, mas para a qual não encontrei uma variante melhor, confiando no tradutor. A experiência fundamental de Benjamin é a de que não são mais os homens que a ela se opõem os que são capazes de lidar com a Guerra Mundial, mas apenas as máquinas que a registram.

Se me for permitido dizer uma última frase, para fazer uma ponte com o que foi debatido de início, quando se falou em teologia (e eu mesmo me sinto um pouco culpado disso, pois, por incrível que pareça, vejo uma relação entre teologia e estética da mídia), eu diria que, para Benjamin, há de fato uma tal relação, até mesmo uma relação fundamental, se eu não estiver enganado. Acho que, para Benjamin, a questão se coloca de tal forma que a situação de tudo o que é terreno, nascido na Terra, tornou-se hoje, perante a aparelhagem, tão total como outrora o era a posição religiosa do homem perante Deus. Acho que posso ver que esta fórmula, tão freqüentemente utilizada por Benjamin, de mostrar o homem despido de tudo diante da aparelhagem, designa exatamente a mesma situação em que, em tempos religiosos, estava o homem nu diante de Deus. Eu mesmo ainda não sei o que isso significa, mas talvez vocês poderão dizê-lo.

Michael de la Fontaine

Tradução de George Bernard Sperber

Com certa curiosidade vou despir agora a roupa do funcionário do Goethe-Institut, batendo à porta da República dos Sábios, dos Filósofos, na esperança de que eles me deixem entrar. Ao mesmo tempo, gostaria de pedir desculpas por continuar em alemão. Os motivos são dois. Um deles é que o meu português tem apenas três anos de idade e não vai ser suficiente para tratar deste assunto tão complexo. O outro, é que tenho ainda bem viva a lembrança das vozes de outros integrantes da assim chamada Escola de Frankfurt, como o próprio Adorno, Horkheimer e Fromm ou Herbert Marcuse. Por isso vou continuar em alemão.

É estranho, mas todos nós, quando pensamos em Walter Benjamin, pensamos também, e muito, em estética, teorias estéticas. Mas, quando revemos os escritos de Benjamin, encontramos, a bem dizer, muito poucos trabalhos que se ocupem desses temas de forma bem concreta. Porquê? Vou tentar fugir dessa dificuldade, procurando, como bom irônico, chegar à minha meta através de um desvio. Vou tentar explicar a diferença que Benjamin faz entre obra de arte e mercadoria, ou mesmo o que seria a obra de arte' a partir do desenvolvimento paralelo das teorias de Benjamin e de Adorno. É claro que ainda nos faltam muitos materiais a respeito, faltam cartas, correspondências, diários, etc., nos quais ainda não pude pôr os olhos e que ainda precisam ser vistos pela pesquisa. Quero proceder a isto através de uma série de passos.

O primeiro passo é bem pouco teórico. Ele tenta esboçar brevemente as premissas históricas, os parâmetros destes dois homens. Gostaria de formular, neste contexto, a teoria de que, quanto à sua orientação estética, Benjamin reagiu aos choques da Primeira Guerra Mundial - e que Adorno reagiu a Benjamin. Esta construção pode parecer estranha, pois que, ao longo de toda uma série de anos, pareceria que ambos levaram vidas paralelas. Ambos provinham de lares judeus bem aquinhoados, econômica e culturalmente, ambos têm uma ambição comparável. Benjamin quer ser o melhor crítico literário - digamos da Alemanha, ou, entre parênteses, da Europa - e ao mesmo tempo, não quer esquecer a carreira acadêmica. Adorno quer ser o melhor crítico musical do seu tempo e nem pensa em esquecer sua carreira acadêmica. Este jogo parece dar certo até mais ou menos 1925. Até ali pareceria que Adorno, quase dez anos mais jovem, aquele "caxias" que saltava os anos escolares, conseguiria alcançar a geração de Benjamin. Mas de repente, por causa de uma questão infeliz, ocorre uma separação entre as duas biografias. O que ocorre naquele ano? Benjamin lenta fazer sua Habilitation, digamos, sua livre-docência, em Frankfurt, com a sua tese sobre a tragédia, tão freqüentemente mencionada aqui. E, pelo menos é isso que nos é asseverado de forma plausível, é justamente um dos posteriores integrantes da Escola de Frankfurt quem o desvia de sua carreira acadêmica: Max Horkheimer. Horkheimer, naquele tempo assistente de Cornelius, a quem Benjamin apresenta sua tese, elabora um parecer prévio a respeito e aconselha Cornelius a não aceitá-la. Benjamin retira sua inscrição e, com isto, encerra sua carreira acadêmica. Benjamin continua a receber uma mesada, da mesma forma que Adorno, como era usual naquele tempo nas boas famílias da burguesia. Contudo, nos anos da inflação de 1928 e 1929, ' mesada perde poder aquisitivo. Não apenas por esta razão, Benjamin precisa reorientar sua vida.

O jovem Adorno, pelo contrário, continua na sua carreira acadêmica, faz sua Habilitation, justamente não com o professor Cornelius, então já aposentado, mas junto a um historiador da arte, e novamente as duas biografias parecem quase se encontrar. No dia fatídico, no 1o de abril de 1933, o ano que marcou o destino de muitos, de todos os intelectuais judeus da área cultural alemã, Adorno, jovem Privatdozent da Universidade de Frankfurt perde a sua venia legendi. Um dia mais tarde, Walter Benjamin resenha o livro de Adorno sobre Kierkegaard no jornal Vossische Zeitung. A última aula que Adorno ainda pôde ministrar em Frankfurt versou, justamente, sobre o livro de Benjamin acerca da tragédia.

A proximidade entre os dois teóricos era, naquele tempo, ainda bastante grande. Lendo-se o livro de Adorno sobre Kierkegaard, encontra-se uma descrição bastante pormenorizada do intérieur, que também pode ser encontrada no livro de Benjamin sobre o barroco e que depois escapa rapidamente ao alcance das categorias e da metalinguagem, fugindo para as galerias parisienses. Benjamin, impedido de continuar sua carreira acadêmica, torna-se um grande viajante. Conhece Paris, Moscou - e fica fascinado com Paris. Segundo fontes fidedignas, ele se apaixona por uma jovem comunista, bastante bem apessoada; conhece Brecht e, em Paris, encontra o surrealismo, então ainda muito vivo e virulento, que descreve mais tarde, em 1929, num trabalho publicado na Zeitschrift für Sozialforschung. Ele se defronta com o surrealismo não apenas de forma crítica, como poderíamos crer, mas vê uma nítida seqüência entre o dadá e o surrealismo - e Paris, a cidade com suas galerias e, como ele mesmo diz, de forma tão bela, com a escritura que emigra para a cidade. Benjamin encontra, portanto, em Paris, em Moscou, as principais correntes que mais tarde marcarão sua obra. Mas, naquele momento, após 1933, não se junta a nenhuma escola nem a nenhum grupo que se houvesse apropriado da determinação do que seria arte. Em 1935 ocorre o grande encontro dos escritores livres, na aliança da Frente Popular, do qual nasceria a revista Das Wort. Esta revista emigra posteriormente para Moscou e acende, após a grande exposição de 37 sobre a arte degenerada, em 1938, o grande debate sobre o expressionismo, dentro do qual tratava-se de decidir o que seria realismo e o que partidarismo. Da mesma forma, Benjamin também não faz parte integral apenas do segundo grupo, que se ocupa das artes, do Instituto de Pesquisas Sociais. É verdade que em 1936 aparece na Zeitschrift für Sozialforschung o seu primeiro texto programático sobre "A Obra de Arte no Tempo de sua Reprodutibilidade Técnica". Mas o passo paralelo, o de apresentar, junto com o texto programático, um texto material, "Paris, Capital do Século XIX", chamado por ele ainda de "A Capital do Século XIX", é brecado pelo pessoal de Frankfurt.

No segundo passo, gostaria de tratar deste ponto, de por que este livro inocente, "A Obra de Arte no Tempo de sua Reprodutibilidade Técnica", provocou tanta celeuma na turma de Frankfurt, a ponto deles terem torpedeado seu desenvolvimento posterior. Lendo-se os conceitos diretores do ensaio sobre a obra de arte, ou seja Kultwert (valor cultual), uma palavra que soa muito estranha aos ouvidos alemães, e Austellungswert (valor de exposição), outra palavra que, neste contexto, também me é totalmente desconhecida, como conceitos para cobrir os de Gebrauchswert (valor de uso) e Tauschwert (valor de troca), da análise marxista das mercadorias, poderá entender-se melhor o fato de que neste ensaio programático não é anunciado apenas e simplesmente o fim da arte por causa do fim da aura, mas é expresso algo de novo e de peculiarmente revolucionário. Isso também pode ser explicitado pelo emprego do conceito de "massa". Pode-se afirmar que o conceito de massa sempre foi, durante a década de 20, um conceito que cobria o de classe proletária, de população urbana proletarizada, e não apenas o de massa inocente, usual em Edgar Allan Poe. E é justamente neste ponto que se acende o debate com referência a este artigo, na carta de Adorno, no conceito de massa e de arte de massas. Adorno, cheio de dúvidas quanto ao que poderia ser massa e arte, lembrando-se nitidamente de Hanns Eisler e de sua Gebrauchskunst (arte utilitária, poder-se-ia tentar traduzir), nega-se a compartilhar o ponto de vista marxista-revolucionário de Benjamin. Mas ele necessita de dois anos para desenvolver o seu projeto contrário, que também, e também nisso ele se parece com Benjamin, se apresenta em dois níveis.

Não obstante haver sido bloqueado o trabalho material de Benjamin, "Paris, Capital do Século XIX", Adorno se permite ambos os passos. Um primeiro, sobre "O Caráter Fetichista na Música e a Regressão do Ouvir" e um segundo, que chegaremos a conhecer mais tarde, apenas após o fim da guerra, a "Filosofia da Música Nova".

Na obra sobre o caráter de fetiche da música e a regressão do ouvir, Adorno explicita no exemplo da suave música de entretenimento que vem pelo rádio os primeiros elementos daquilo que foi formulado na década de 40 com o conceito da indústria cultural. Objetos estandardizados de uso satisfazem de forma imediata as necessidades difusas dos consumidores. Estes se identificam totalmente com a aparelhagem, e uma linha leva do caráter de fetiche da mercadoria para a sociedade como gaiola ideológica.

No livro "material" de Benjamin retido durante muito tempo e publicado tarde demais, "Paris, Capital do Século XIX", surpreende-nos hoje a carga política explosiva então nele contida. Mas a cidade enquanto tal, enquanto sua redefinição como intérieur, como espaço interno da massa, como matriz de dinamismo social, isto era algo que ia de encontro em muito às posições teóricas da Escola de Frankfurt. Ao vermos os pedaços, vemo-nos levados a afirmar que para Benjamin se tratava de muito mais do que uma definição da cidade como um novo intérieur, metaforizado na imagem das galerias. Na minha opinião, temos a ver aqui com um retorno da caverna platônica, só que desta vez não mais como caverna primitiva e natural, mas como espaço social artificial.

Por este motivo fico grato a Norbert Bolz pelo fato de ter tocado no conceito wagneriano de Gesamtkunstwerk, de obra de arte total. Mas sou da opinião de que de uma maneira totalmente oposta, para Walter Benjamin a cidade ou a galeria é o retorno da caverna de Platão, pois não é uma obra de arte integral, nascida da criatividade de algum gênio, mas é obra artificial produzida deforma coletiva.

Com essa posição, Benjamin desaparece de nosso campo visual, embora ainda esteja presente no campo das publicações. (Lembro até de uma publicação, por ocasião do 55o aniversário de Horkheimer, em que ainda apareceu um texto póstumo, um texto pequeno de Benjamin, que fez com que nos perguntássemos onde é que vivia esse tal de Benjamin.) No fim da década de 40, Adorno e Horkheimer desenvolveram finalmente a teoria da indústria cultural, dentro da qual, bem no sentido da sistemática hegeliana de senhor e vassalo, é ressaltada novamente a posição do indivíduo burguês.

Se eu agora tivesse que resumir, eu diria que não, que em Benjamin não há diferença entre arte e mercadoria. Mas nós teríamos de verificar o que resulta desta homologia, por um lado o retorno da caverna de Platão, cujas paredes técnicas estão cheias de escrita ou, pelo menos, poderiam ser interpretadas como escrita, e, pelo outro, a gruta wagneriana, na qual mora Adorno, como cisnes artificiais e a música do ocaso dos deuses. Hoje podemos decidir em qual dos dois lados da teoria apostamos, no lado da massa, à qual pertencemos ou não pertencemos, ou no lado do indivíduo burguês.

NORBERT W. BOLZ é professor na Freie Universitat Berlim.

MICHAEL DE LA FONTAINE é diretor do Instituto Goethe em Santiago, Chile.


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Fonte: revista da USP, especial sobre W. Benjamin

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