segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Aborto, casamento gay e intolerância religiosa: convenientemente ausentes nos discursos dos presidenciáveis



Fonte: Estadão Introdução: Eli Vieira

que_tedioUma deu sinais de agnosticismo, se “equilibrando na questão”, mas agora é toda acenos para os cristãos e deixa seu partido insinuar que ser chamado de ateu é crime contra a honra. A CNBB, que reúne os bispos católicos do Brasil, primeiro pediu às suas ovelhas para não votar nela, depois retirou a mensagem do sítio eletrônico e agora chama os candidatos para debater na lamentável rede de canais de televisão religiosos que contam com a concessão pública.

Outra faz parte de uma denominação fundamentalista que nega a ciência, mas amacia o discurso enquanto tenta desviar a atenção de sua crença de que toda a biodiversidade que ela tenta preservar surgiu num passe de mágica.

O outro, cujo partido injetou mais de meio milhão de dinheiro público num evento evangélico, fazendo a laicidade da Constituição parecer “coicidade da latituição”, conseguiu arranjar um candidato a vice-presidente que pensa que chamar alguém de ateu é xingamento.

Porém, apesar de toda a disputa, os três candidatos mais conhecidos à presidência do Brasil têm em comum uma coisa: preferem fingir que o Brasil é a terra dos ursinhos carinhosos, em que cirurgia devarizes é problema mais urgente que o aborto, em que proteger ou não os deficientes é ponto mais polêmico que o casamento gay, em que fazer propaganda de origem humilde é mais apelativo que mostrar o que vão fazer de concreto para promover a cidadania informada no país. Difícil escolher presidente num baile de máscaras assim.

Política no Brasil nos dá tédio. E a razão para isso tem muito a ver com nosso laicismo de letra morta, de acordo com a entrevista abaixo com um especialista em psicologia política, Marco Aurélio Prado.

Aliança com o nada

Para professor da UFMG, neutralismo é palavra de ordem para candidatos e sinal de pobreza do debate eleitoral

A menos de dois meses das eleições presidenciais, há uma fração interditada da agenda política. Os principais candidatos a presidente não se aprofundam em temas transversais que mexam com a sociedade. Aborto, drogas, união civil entre homossexuais, reforma agrária, eutanásia, entre outros, foram escanteados do debate. “A política é uma esfera de pensamentos da diferença, um lugar de estratégia e de conflito. A gente não vê isso hoje no Brasil. Ainda vivemos a fase da neutralidade geral”, diz Marco Aurélio Prado, doutor em psicologia social pela PUC-SP, membro do Núcleo de Psicologia Política da UFMG e atual presidente da Associação Brasileira de Psicologia Política. “É um momento no mínimo curioso, se não perigoso.”

Dois fatores contribuiriam para tanto: a forte influência da religião na política e as alianças que sustentam os candidatos. Notório é que o primeiro passo foi dado justamente por um ramo da Igreja Católica. Nessa semana, a CNBB, Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, anunciou a convocação de um debate, com transmissão em rede nacional nas TVs católicas, para cobrar dos presidenciáveis posições claras sobre assuntos tabus, como aborto, reforma agrária e taxação de grandes fortunas. Prado acredita que o caldeirão vá esquentar. “A sociedade é pluralista, seria muito bom que a política expressasse isso.”

Por que temas tabus são empurrados para baixo do tapete durante o debate eleitoral?

Há uma tentativa de formar opinião pública e, para isso, os candidatos ensejam uma posição neutra. O debate eleitoral no Brasil é pobre. Em outros países encontramos posições mais definidas. O comportamento chama a atenção porque esses são temas ligados a outro elemento contemporâneo do Brasil: a presença das religiões na esfera da política. Elas têm representantes na Câmara dos Deputados e no Senado a ponto de já fazer parte do nosso imaginário falar que existe bancada evangélica, bancada religiosa, bancada católica. Os candidatos evitam marcar posição para não perder o apoio da opinião pública. Mas não evitam visitar as igrejas ou fazer acordos com pastores e padres.

O que teria motivado a CNBB a sugerir um debate com os presidenciáveis que inclui assuntos polêmicos?

A Igreja Católica é muito capilar e muito contraditória internamente. Tem várias tendências, desde as católicas que defendem o direito de a mulher interromper a gravidez até o discurso do papa, sem dúvida conservador. Ela possui uma forma de lidar com essas temáticas que revela um pouco por que consegue tanto peso na opinião pública. Nos últimos anos, a gente avançou numa certa democratização. Mas ao mesmo tempo as religiões viraram instrumento forte de compreensão da própria política e a política virou instrumento forte da religião. Isso é uma contradição e um fenômeno importante. Acredito que temas sobre direitos vão aparecer no debate à medida que o eleitorado tiver mais cara e as pesquisas indicarem o rumo das coisas. O debate vai esquentar. O problema é como serão as respostas dos candidatos (risos).

A falta de debate em relação a esses temas empobrece o processo eleitoral?

Com certeza. Mas a eleição tem sido assim, com pouquíssimos instrumentos de conscientização política. Sendo o voto uma forma de expressão de direito de cidadão, é curioso que o processo eleitoral esteja tão despolitizado. Veja a forma de construção das alianças. A candidata do governo, por exemplo, é de um partido que fez coligações que vão fortalecer o PMDB em muitos Estados. Conforme essas alianças vão sendo feitas por interesses que não passam por um projeto político, a eleição tende a ser menos esclarecedora para a população. Aí é óbvio que os discursos não dizem nada. No debate da Band foi essa a postura dos candidatos. Apenas quem tem poucas chances, como o Plínio de Arruda Sampaio, pode falar de todos os temas. A sociedade é pluralista. Seria muito bom que a política expressasse isso.

O que constitui, de fato, um debate democrático?

O ideal do debate político é que antagonismos possam aparecer. A política é uma esfera de pensamentos da diferença. É um lugar de estratégia e de conflito. A gente não vê isso hoje no Brasil. Vozes dissonantes aparecem pouco. Repare no caso da união entre homossexuais. Quem está antagonizando são os religiosos no Congresso e uma parte da sociedade civil ligada aos movimentos sociais. E esse é um tema de muita relevância porque mostra como uma nação é capaz de olhar para transformações da sua própria sociedade. O governo tem feito de maneira discreta algumas ações pró-reconhecimento, como a autorização para declarar parceiro no Imposto de Renda, mas é meio envergonhado. Isso não se transforma em debate público, não são projetos que passaram por discussão no Congresso. A eleição vira esse neutralismo, esse grande acordo de relações partidárias. E a gente não sabe como essas rodadas de negociações aconteceram.

Que outros temas são escanteados?

O mais escamoteado é o das alianças. Se houvesse um espaço mais democrático, poderíamos discutir o que isso significa para o futuro. O mundo da política institucional não pode ter partidos fracos. É preciso ter partidos fortes com discursos políticos bem sustentados. Estamos vivendo um momento no mínimo curioso, se não perigoso.

De que maneira o senhor acredita que esses temas vão começar a ser discutidos pelos candidatos?

Não haverá muita discussão, principalmente pelos dois candidatos que estão na frente nas pesquisas. Basta pensar o que eles representam. De um lado, Dilma Rousseff espelha um acordo com partidos que não têm nenhuma posição favorável a esses temas, posição, aliás, que o PSDB também nunca teve.

A população percebe essa agenda tolhida? Por que o eleitor não reage?

Eu sou otimista. Há espaços que reagem. Neste ano todas as paradas LGBT têm como lema a questão do voto contra a homofobia. É uma reação, um recado. Quando todo mundo considerou que as paradas eram carnavais, elas mostraram articulação em torno de um tema: o projeto de lei, que não passa de jeito nenhum, sobre a criminalização de atos homofóbicos. No caso do aborto, é inadmissível que não se discuta em pleno século 21 o direito de as mulheres decidirem sobre o próprio corpo.

Em que momentos da nossa história política o debate lhe pareceu menos engessado?

Sobre essas questões específicas, nunca tivemos, em épocas de eleição, um debate acirrado. Mas, na pós-ditadura militar no Brasil as eleições foram mais politizadas. O debate Collor/Lula teve processo de conscientização política. As posições eram demarcadas, os partidos apresentaram projetos. Para o eleitor que conseguiu ler esses projetos não foi surpresa o que aconteceu no governo Collor. Naquele momento, o debate eleitoral instituiu um processo de reflexão sobre a política e sobre nossa vida como coletividade. É interessante pensar que estamos saindo de um governo do PT, um partido que tem história de politização de tantos temas, mas despolitizou a sociedade brasileira nos últimos anos.

O PT ajudou a despolitizar o debate?

Sim, mas é um fenômeno que não ocorre somente no Brasil. Em outros países, partidos de centro-esquerda ou esquerda, ao assumirem o governo, construíram certa despolitização das sociedades. Um elemento muito forte no País foi o tipo de relação que o governo estabeleceu com os movimentos sociais.

Foi uma relação de dominação?

Não. Foi uma relação de despolitização. Muitos movimentos sociais, que sempre tiveram lideranças importantes para a democratização, entraram para a máquina de governo. É verdade que o Estado precisa da experiência da sociedade civil para instituir políticas públicas, mas o problema é como isso mexe com a participação da sociedade. Há movimentos burocratizados pela lógica do Estado. Costumo brincar que, atualmente, se você formar um grupo para reivindicar algo, no dia seguinte vai ter um edital do governo propondo verbas e formas de funcionamento. A relação entre esses movimentos e o governo ficou engessada em editais. Ao mesmo tempo que há índices de melhora da situação brasileira, temos também uma sociedade menos participativa.

Outras culturas são mais abertas à discussão?

Sim. A Argentina viveu um debate importante sobre a união civil entre gays, que culminou com sua aprovação. A Espanha também. Portugal tomou decisões importantes no caso do aborto, das drogas e do reconhecimento da união entre homossexuais.

Quais seus prognósticos em relação ao Brasil?

Há a tendência de que essas temáticas avancem, mas vai depender de quem for eleito. A política é muita dinâmica. Isso é que é fascinante. Eu sou otimista, mas não é um otimismo redentor. Não imagino que a gente vá alcançar esse patamar fantástico rapidamente. Mas há práticas cotidianas que fazem toda a diferença.

O senhor já decidiu em quem votará?

Já. Não de modo confortável. É uma eleição difícil. Decidi, mas com medo de fazer parte do que vai ser o futuro dos partidos diante dessa situação de alianças tão pouco claras. Seremos cúmplices do que vier.

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