terça-feira, 31 de agosto de 2010

Camomila



Augusto Patrini


Calou-se, no espaço branco entre as pernas do outro. Cansou-se, levantou e respirou fundo, como quem emerge do fundo de um rio. Achou graça naquilo tudo. Como podia, ser eles dois dentro do quarto. Eram amigos e simples. Podiam. Mas havia mais que isso entre as suas vidas. Seus corpos agora eram nítidos espelhos conhecidos, sem segredos e tão lindos. Um cheiro de camomila no campo.

Olhou-o. Com as pálpebras semicerradas era lindo, como menino na praça em dia de sol tomando sorvete de morango. Aquela felicidade corajosa e serena dos meninos da roça. conheciam agora, por fim, seus sexos tesos e suas lágrimas brancas e seus corpos enferrujados de sol, e que. Esperavam. A coragem dos encaracolados que era de ambos.

Vodca e Mao Tsé Tung tinham feito aquilo? Sabia que não, não era vodca nem qualquer momento maoísta dos seus botecos e esquinas, eram suas carnes todas, chamando-se tesas e quentes. Ali ao lado seu. A luz do inverno penetrando a janela, por entre as cortinas de azuis-escuros e desbotados, parecia aquela do hospício que lhe trazia ainda o medo, e lhe trazia de volta o escuro vivo e ríspidotinha tempo: esqueceu. Não lembrarei mais, pensou – agora eram os dois ali, ao seu lado o outro. Longo e marrom o corpo e alma daquele que tinha e era mais do que suas noites de expiaçãopor que esqueceria, para sempre, o filho da puta daquele que um dia o meteu no hospício. Amou demais o menino da escola. Os beijos dos dois adolescentes entre os pinheiros foram desenganados pela fúria daquele deserto que um dia chamara de pai, enchendo-lhe a cabeça de drogas e choques. Não queria mais saber se amar aquele garoto era errado, em seu tempo tinha que fazer o que sua alma pedia e tinha feito: vivido. Mesmo se depois lhe fosse o resto da adolescência de choques e drogas fundindo-lhe a cuca.

Mas agora. Abraçou-o, sentindo o cheiro do amigo que se tornara agora seu mantimento, muito longe dos choques e dos tetos assustadores do hospital imundo. Dormia, depois do gozo, puro e lento - sua boca ainda sentia o gosto. O quarto todo transpirava aquela penumbra estranha e roxa – de poeira e odor. O silêncio ali dentro, era alheio para a cidade tão grande: onde estavam os carros e os ônibus, fora, o mundo tinha todo parado. Dormiria agora, para não lembrar do inferno dentro daqueles corredores imundos e pretos, no fundo da sua história sórdida – o tempo tinha passado e tudo agora era diferente.

Naquela cidade anônima e longa, todos, pelas ruas, podiam se amar em paz, longe do interior rubro cheio fogo – correu e livrou-se daquilo – pois nunca sairia – o coronel nunca o tiraria dali, por que ele era umviado” sujo, um maricas, uma vergonha para a dinastia cristã e déspota-latifundiária daquela família cheia de mãos sujas de sangue. Mudara de nome, de vida e de tudo, inventara um passado e uma história para si, não era mais aquele. Aquele morrera gemendo amarrado no escuro frio e vivo da casa de loucos. Junto daquele, Cristo apodreceu de pênis em riste e Maria virou uma puta na rua da esquina. Deus estava finalmente morto e ele estava livre. E com seu corpo podre e santo, fez uma nova vida.

Como era bom, tocar. A pele morena daquele amigo ali, e podia quase esquecer que não era quem se fazia. Aquele moço seu amigo, ajudara-o mais e mais, tirava com ele o dos livros e liam juntos os contos de Clarice. Começaram amigos no boteco da esquina, copo de cerveja na mão e um cigarro na do outroalguém do outro lado da cidade se masturbava sozinho – e um papo sobre Mao e a revolução chinesa. Depois vieram os copos de vodca bebidos em seus apartamentos cheios de fantasmas e era sempre algum poema de Baudelaire e muita Billy Holiday na vitrola antiga. Tinham os dois, apenas 20 e tantos anos – esqueciam da vida, podiam perder, mas não fazia mal. Pois tinham sido eles, os dois juntos, o que queriam.

Suaoportunidade” foi sua tia, que ovelha negra renegada e sempre a “louca”, ela ajudou matar a sua fome e o seu passado. Quando chegou era ela, que de longe, ajudou, com o pouco que tinha, para ele não morrer de fome e a continuar sobrevivendo – ele fez alguns programas quando apertou, fodendo alguns velhos lamacentos e cinzas como seu pai, aquele covarde. E depois e depois e depois. O que podia fazer, esqueceu. Mergulhou no seu outro eu, por dentre os escombros e a carne podre de Deus, surgiu então, trabalhando nas paradas da vida - fazendo o que podia. Cresceu.

Agora, naquele bar, naquele dia, onde o sol se punha cinza, encontrou mais do que podia crer – de cerveja na mão foi encontrando aquele amor amigo que depois seria mais que amigo – seria fundo, triste e maravilhosamente medonho, para fazer esquecer tudo, para construir enfim em um momento de gloria seu outro euinfinito amortecido. Viveria, sim viveria. Reviveria. Mesmo que tudo aquilo viesse da dor que sentia.

O outro abriu os olhos, trazendo-o salvador de volta para vida. Beijou-lhe a boca de leve e esticou os músculos, abraçando-lhe o corpo. Era de novo aquele cheiro, de camomila no campo e de pinheiro verde misturando o que era e o que tinha sido. Acariciou-lhe a nuca. Dormiu.

Um comentário:

Unknown disse...

Gostei muito.
Um beijo.
p.s.-Ficou ótimo o novo visual.
um beijo.