Por Friedrich Nietzsche
I
Todas paixões têm uma fase em que são meramente desastrosas, em que aviltam sua vítima com o peso da estupidez – e uma fase posterior, muito posterior, em que se casam com o espírito, se “espiritualizam”. Antigamente, em vista da estupidez na paixão, declarava-se guerra à própria paixão, conspirava-se pela sua destruição; todos os velhos monstros da moral concordavam quanto a isto: il faut tuer les passions.[1] A fórmula mais famosa para isso encontra-se no Novo Testamento, naquele Sermão da Montanha, onde, diga-se de passagem, as coisas não foram de modo algum olhadas do alto. Nele é dito, por exemplo, particularmente em relação à sexualidade: “Se teu olho te escandaliza, arranca-o fora”. Felizmente nenhum cristão age de acordo com esse preceito. Destruir as paixões e os desejos, simplesmente como uma medida preventiva contra a estupidez e as conseqüências desagradáveis dessa estupidez – hoje isso se apresenta a nós apenas como outra forma aguda de estupidez. Não admiramos mais os dentistas que arrancam dentes para que não doam mais. Para ser justo, deve-se admitir, entretanto, que sobre o solo no qual o cristianismo se desenvolveu, o conceito de “espiritualização da paixão” nunca poderia formar-se. Afinal, a Igreja primitiva, como todos sabem, lutou contra os “inteligentes” em favor dos “pobres de espírito”. Como se poderia esperar dela uma guerra inteligente contra a paixão? A Igreja combate a paixão através do aniquilamento em todos os sentidos: sua prática, sua “cura” é a castração. Ela nunca pergunta: “como se pode espiritualizar, embelezar, divinizar um desejo?” Em todos os tempos colocou a ênfase da disciplina na extirpação (da sensualidade, do orgulho, do desejo de dominar, da avareza, da vingança). Mas um ataque às raízes da paixão significa um ataque às raízes da vida: a prática da Igreja é hostil à vida.
Os mesmos meios na luta contra um desejo – castração, extirpação – são instintivamente escolhidos por aqueles que possuem uma vontade fraca demais, degenerada demais, para poderem impor a moderação a si mesmos; por aqueles que necessitam de La Trappe, para falar figuradamente, ou (sem figuras de linguagem) alguma espécie de declaração definitiva de hostilidade, um abismo entre eles e a paixão. Meios radicais são indispensáveis apenas para os degenerados; a fraqueza da vontade – ou, falando de modo mais preciso, a incapacidade de não responder a um estímulo – é em si apenas outra forma de degeneração. A hostilidade radical, a hostilidade mortal contra a sensualidade é sempre um sintoma merecedor de reflexão: ela nos permite fazer suposições concernentes ao estado geral de quem é excessivo desta maneira.
Essa hostilidade, esse ódio, a propósito, alcança seu clímax apenas quando esses tipos carecem mesmo da firmeza suficiente para a cura radical, para a renúncia a seu “Diabo”. Deveria-se examinar toda a história dos sacerdotes e dos filósofos, incluindo a dos artistas: as coisas mais venenosas aos sentidos foram ditas não pelos impotentes, nem pelos ascetas, mas pelos ascetas impossíveis, por aqueles que realmente tinham uma necessidade enorme de ser ascetas.
A espiritualização da sensualidade é chamada amor: representa um grande triunfo sobre o cristianismo. Outro triunfo é a nossa espiritualização da hostilidade. Ela consiste num profundo reconhecimento do valor de se ter inimigos: em suma, significa agir e pensar de modo oposto ao que outrora era a regra. A Igreja sempre desejou a destruição de seus inimigos; nós, imoralistas e anticristãos, encontramos nossa vantagem nisto: que a Igreja existe. No âmbito da política a hostilidade também se tornou mais espiritualizada – muito mais sensível, muito mais pensativa, muito mais ponderada. Quase todo partido compreende que é de interesse à sua própria autopreservação que seus opositores não percam toda a força; o mesmo vale para políticos poderosos. Uma nova criação em particular – um novo Reich, por exemplo – necessita mais de inimigos que de amigos: somente na oposição ele sente-se necessário, somente na oposição ele torna-se necessário. Nossa atitude perante o “inimigo interior” não é de modo algum diferente: aqui também espiritualizamos a hostilidade; também aqui reconhecemos seu valor. O preço da fecundidade é ser rico em oposições internas; permanece-se jovem enquanto a alma não relaxa e anseia pela paz. Nada nos parece mais estranho que aquele desejo dos tempos antigos, o desejo cristão: a “paz da alma”; nada nos causa menos inveja que a vaca moral e a felicidade gorda da boa consciência. Renuncia-se à vida grandiosa quando se renuncia à guerra.
Em muitos casos, certamente, a “paz da alma” é apenas um mal-entendido – algo diverso, para o qual falta um nome mais honesto. Sem mais rodeios ou preconceitos, vejamos alguns exemplos. A “paz da alma” pode ser, para alguém, a suave irradiação de uma rica animalidade no interior da esfera moral (ou religiosa). Ou o começo do cansaço, a primeira sombra da noite, qualquer espécie de noite. Ou o sinal de que o ar está úmido, de que os ventos do sul se aproximam. Ou uma inconsciente gratidão por uma boa digestão (por vezes chamada “amor aos homens”). Ou a obtenção da calma por um convalescente que sente um novo sabor em todas as coisas, e aguarda. Ou o estado que se segue de uma completa satisfação de nossa paixão dominante, o bem-estar de uma rara repleção. Ou a fraqueza senil de nossa vontade, de nossos desejos, de nossos vícios. Ou a preguiça, persuadida pela vaidade a exibir uma aparência moral. Ou o aparecimento da certeza, mesmo da certeza terrível, após uma longa tensão e sofrimento causados pela incerteza. Ou a expressão da maturidade e maestria em meio ao agir, criar, trabalhar e desejar – respirar tranqüilo, a “liberdade da vontade” alcançada. Crepúsculo dos Ídolos – quem sabe? Talvez também apenas um tipo de “paz da alma”.
Reduzo um princípio a uma fórmula. Todo naturalismo na moral – isto é, toda moral saudável – é dominado por um instinto vital; qualquer mandamento de vida é preenchido por um determinado cânone de “deves” e “não deves”; remove-se assim um elemento hostil e inibitório no caminho da vida. A moral antinatural – ou seja, quase toda moral que até agora foi ensinada, venerada e pregada – volta-se, de modo oposto, contra os instintos vitais: é uma condenação desses instintos, ora secreta, ora explícita e impudente. Quando ela diz “Deus observa os corações”, diz Não tanto aos desejos mais baixos quanto aos mais altos da vida, colocando Deus na posição de inimigo da vida. O santo com o qual Deus se encanta é um castrado ideal. A vida termina onde o “Reino de Deus” começa...
Compreendendo o sacrilégio que tal revolta contra a vida representa, tal como se tornou quase sacrossanta na moral cristã, também se compreende, felizmente, outra coisa: o caráter fútil, aparente, absurdo e mendaz de tal revolta. Uma condenação da vida pelo próprio vivente no fim continua sendo apenas um sintoma de um tipo específico de vida: com isso a questão de ela ser justificada ou não nem chega ser levantado. Seria necessário posicionar-se fora da vida, e ainda conhecê-la tão bem quanto um, quanto muitos, quando todos que a viveram, para que seja permitido mesmo tocar o problema do valor da vida: razões suficientes para compreendermos que esse problema é inacessível a nós. Quando falamos de valores, falamos com a inspiração, com a perspectiva das coisas que são parte da vida: a própria vida nos força a estabelecer valores; a vida mesma valora através de nós quando estabelecemos valores. Segue-se disso que mesmo aquela moral antinatural que concebe Deus como contra-conceito e condenação da vida é apenas um juízo de valor da vida – mas de que vida? De que tipo de vida? Já dei a resposta: da vida decadente, enfraquecida, cansada, condenada. A moral, tal como até aqui foi entendida – como por fim foi formulada uma vez mais por Schopenhauer, como “negação da vontade de vida” –, é o próprio instinto da decadência que se fez um imperativo. Ela diz: “Pereça!”; é uma condenação pronunciada pelo condenado.
Finalmente, consideremos quão ingênuo é dizer: “O homem deveria ser de tal ou de tal modo!” A realidade nos mostra uma encantadora riqueza de tipos, uma abundante profusão de jogos e mudanças de forma – e um miserável serviçal de um moralista comenta: “Não! O homem deveria ser diferente.” Esse beato pedante até sabe como o homem deveria ser: ele pinta seu retrato na parede e diz: “Ecce homo!”[2] Mas mesmo quando o moralista dirige-se a apenas um indivíduo e diz “você deveria ser de tal e de tal modo!”, ainda não deixa de ser ridículo. O ser humano, visto pela frente ou por trás, é um pedaço de destino, uma lei a mais, uma necessidade a mais para tudo que há de vir e será. Dizer-lhe “muda-te” é exigir que tudo seja mudado, mesmo retroativamente. E realmente houve moralistas conseqüentes que desejavam tornar o homem diferente, isto é, virtuoso – desejavam-no reformado à sua própria imagem, como pedante: e, para tal fim, negavam o mundo! Nenhuma pequena loucura! Nenhum modesto tipo de imodéstia!
A moral, à medida que condena por sua própria causa, e não a partir dos interesses, considerações e pontos de vista da vida, é um erro específico pelo qual não se deve ter compaixão – uma idiossincrasia de degenerados que causou danos imensuráveis.
Nós outros, nós imoralistas, pelo contrário, fizemos de nosso coração uma morada para todo tipo de entendimento, compreensão e aprovação. Não negamos facilmente; encontramos honra no fato de sermos afirmativos. Cada vez mais, nossos olhos se abrem a uma economia que necessita e sabe utilizar tudo que a sagrada insensatez do padre, a doentia razão do padre, rejeita – aquela economia na lei da vida que encontra alguma vantagem mesmo nas espécies mais repulsivas de pedantes, padres e virtuosos. Que vantagem? Mas nós mesmos, nós imoralistas, somos a resposta.