quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A casa do Palhaço


(Ou Cinco lances ao Tártaro)

Ao som de Rabbit Run (Eminem)


Um.

Pisa na poça. Água fria, ácida, sobre o chão de concreto. Um passo após outro. Lento. Caminha o palhaço, bobo – sem tinta na cara. Perde-se em reflexões de mesmices tolas e intensas. Sobe a lomba branca cheia de nadas e de rasgos. Controla suas pulsões. Treme. Teme, por ele e por algo seu como ódio. Mas caminha ainda, caminha, continua com uma música na cabeça. “Smile”. Não dá para continuar assim, por que não pode mais agüentar. A vida é um circo e ele o palhaço. Mas, anda, anda e anda,... Sem se perguntar. Pobres e miseráveis, pensa, sem saber o porquê de ser e dos outros. Não pode, mas contém, como sempre, as lágrimas. Para isso sorri, ri, gargalha. Seu rosto é somente a máscara de tinta, branco, vermelho, e risos – falsos e doloridos.


Dois.

O Corredor morto. Escuro. É tua mente de palhaço e teu peito que falham. Silêncio e vapores de “ais”. Enfia a chave no buraco. Entra. As mesmas paredes, vizinhos e móveis duros.

Torce a cara. Viscosidades subindo do estômago até a boca. Vomita na pia. Grita. Convulsiona. Em silêncio, esperneia e berra. Paredes cinzas, sujas e úmidas. Escuta – ou imagina - “Litte Bombardier” ao fundo dos blocos parados de prédios. Não sabe quem é, e nem o que quer.


Três.

São Paulo, 6 de junho de 85.

Querida Lu,

Hoje, quando chegava, vomitei na pia. Não consegui ainda deixar de nos ver no copo transparente e licoroso. A vodka ainda é mais clara que minha vida louca-tola. A vida é um circo. Eu sou o palhaço e você é a mulher serrada. Hoje foi horrível. Cheiro de álcool na boca. O sol estava coberto por uma estranha nuvem cinza de poeira inconsciente que invadiu todo o circo (vida). O picadeiro estava cheio de sombras. Meus olhos alegres de palhaço – bêbado equilibrista, não são mais os mesmos vaga-lumes. De repente me dei conta, que não sou essa máscara.

Mas um raio de luz ultrapassou essa escuridão imensa e fiquei lembrando dos nossos cabelos dourados emaranhados naqueles dias de verão. O Azul do mar e aquela solidão a dois. Lembra? Você ainda sabe o que eu penso e sinto? Você ainda sabe quem sou eu? Você se lembra?

Você sabe a irritação que dá quando uma torneira pinga sem parar? A aparência de uma sarjeta imunda e cinza? Assim sinto as coisas agora, todos os dias – irrito-me com minha própria aparência, embaixo da tinta, da máscara - sou sujo, lamacento e cinza.

Bom, minha mulher-serrada, é isso aí, os risos já não são verdadeiros e as coisas estão por aí,... E nós que sonhamos com um picadeiro de cores, alegria e sonho, somos tragados pela realidade das coisas vãs e reais de nossos cotidianos tolos e sem sonhos. Você ainda sonha em ser livre? O que podemos fazer se já não somos mais nada?

Amo-te sempre.

Cuida-te.

M.

PS: Dois anjos ainda hão de encontrar-se. No picadeiro, ou no trapézio. Quando bebo. Ainda acredito, mesmo cinza. E você?


Quatro.

Percorre, bobo, a parede branca da sua casa tola. É o que é, como uma planta ou um bicho. Assustado, parado, morno e bobo no canto do quarto branco. Pensa que pode fazer algo - um café, um chá? -, mas não consegue se levantar. Está parado em uma motricidade morna e banal. Não está em “que-porra-de-lugar-é-esse-aí-que-dor-na-cabeça” e mesmo assim não consegue agüentar este nada enorme - algo ríspido que lhe invade a alma dolorida e roxa. Por isso quer escrever na mente com lápis - no papel branco de si - algo que lhe dê um rosto, nem tão roxo, nem tão torcido e triste. Neste silêncio trágico-parado e gordo, o telefone não toca, as coisas são paradas e tolas. Os livros, os discos e os papéis então além de. Mas está neles, com eles e está para eles - por que vive para tê-los. Qual a diferença entre eles e M.? É esse amor-coisa dolorido e roxo, meio frouxo que transforma as coisas e infelizmente. Não afasta todas as folhas secas, mortas e vermelhas. O tédio morno da noite/tarde/manhã de quinta-feira, e o ponteiro-porteiro dos segundos do relógio continua andando, andando, andando, andando... Ele te olha. Sempre. E diz, morre palhaço!

Mesmo assim continua lá parado estático, deitado, em movimento. Caçando as moscas dos pensamentos.

Decide. Esvair-se.

Arranha o braço. Obsessivamente. Vê o sangue. Sangue, vermelho e rubro de amor e roseiras,... Traz-lhe paz. Quente, úmida, quente e viva. Lembra-se de uma boca. Vermelha, azul e roxa. Lambuza-se o rosto com esta paz – vermelho-úmida-morna - tinta de palhaço. Lembra-se que ainda pulsa. E por isso, todo palhaço, ri!


Quinto

Vê uma agulha penetrar-lhe as carnes e as veias do braço. Tiras de couro prendem seu corpo. Joga-se, debate, mas não se mexe, corta os lábios, separados pelos dentes,... Novamente sente paz, vermelha e úmida, desta vez salgada. Na boca. Mas você, de repente, se lembra de sua pequena avó, pequena, franzina e enrugada que lhe dizia: “Vai meu filho, coragem, que isso tudo passa!”. Lembra dela, para e vê a carne velha em putrefação no túmulo. O seu túmulo ou o dela? Quer gritar, mas já não pode. Algo trava sua boca... Uma nuvem branca invade sua mente, paz... Dor, horror, mix de ódio, amor e fúria. Lençóis brancos e suor. Seu pescoço dói. Trava. Tua espinha quebra-se em convulsões.