sábado, 14 de agosto de 2010

Perder-se



Por Augusto Patrini

UM


A história. Começou como medo. Não sabia como. Mas era um medo rubro sangue – escarlate brilhante. Rubra força infunda. Rubro de sangue, rubro de vergonha, de timidez ou de ódio. Um grande hematoma roxo. Era assim sua dor-medo de cara contorcida. Uma viagem funda e torta, entrando em espiral dentro de si. As vagas rompendo a terra por que lhes doíam as almas todas. Era seu medo rubro e fogo que rebentavam - lhe a cara – praia. Torcendo-lhe a face.
Mas, era além daquele rosto torcido. Era para e por que amar era necessário que chegara até ali assim, cambaleando antes – procurado algo que não sabia o que era - e revoltoso do mundo. Quando encontrou jogou-se no fundo. No breu brilhante. Agora, doíam-lhe as carnes suas, atormentadas e loucas, o medo enfiando-lhe duro na boca aberta uma angústia meio fina e longa – cheia de espinhos e rosas. Era a força que lhe guiava. A força de não se pertencer. Um gole de gasolina.
A história do medo começara assim devagarzinho, sutil e poderoso, como quando pombos recolhem as migalhas nas praças. Dos homens e dos sonhos. Amando e amado descobrira-se mortal e homem. Tão tolo e são.
Mas agora era essa força poderosa, um medo de perder-se e perder o outro. Uma flama tonta e louca era esse perder-se entre o seu eu e o outro. Mas depois e após, assim de rebento, lentamente e de forma frágil ele já não era mais ele. Era ele e o outro, misturados e trançados – no fundo. Era o outro.
O pânico de ser e de não poder invadiu-lhe aos poucos a alma irrequieta. Por que a insurreição já não lhe bastava. O outro não se insurgia do mundo. Insurgia-se dele mesmo. E era além dele a miséria dos homens e então mergulhava em si – nele-outro – misturado e múltiplo. Assim o seu eu não era mais eu, era também ele e nós. E foi daí, então, choroso e rubro que lhe nasceu esse medo. Medo de amor. Pois prezava muito esse outro, agora misturado nele mesmo.
Tratava-se de uma extravagância? Já se perguntara ele-outro em certo momento. Mas não podia saber, por que o outro eu tomava-lhe a palavra e não respondia o que lhe perguntava. Pastava. Ele-outro-coletivo pastava-lhe sensorialmente e sentimentalmente no outro além dele.





DOIS

Você acorda apavorado. Sua – sente frio. Você tem medo da voz. Ouve um guincho vindo do térreo. Um gato caiu pela janela. Lá embaixo, no meio do clarão ensolarado do meio-dia, ele chora. Costelas e ossos quebrados. Boca sangrando. Você sua e encharca os lençóis brancos. Mas o sangue tinge o apartamento do térreo. Porra de gato idiota, pensa você. Mas por instantes sente-se como o gato – caído pela janela.
Você se levanta e vai para o banheiro. Olha no espelho – direto – direito – olheiras fundas – de pouco dormir e fumar demais. Fica confuso. Não sabe se toma um banho, fuma um cigarro ou faz um café. Sente falta do outro.
Você continua a ouvir os gritos do gato esborrachado lá embaixo. Por um momento, pensa em pegar uma espingarda imaginaria e dar uns tiros no bicho. Angustia-lhe o peito seus gritos de dor. Mas vai apenas para baixo do chuveiro frio. No prédio do lado toca uma música: “... a flor também é ferida aberta e não se vê chorar,...”
A água fria escorre por teu corpo. Nos cantos e nos becos. Nas dobraduras inquietas e roxas.


TRÊS

Não se sente o que não se pode dizer. A língua constrói o mundo. Era estranho. Mas pronto, estava feito. O quê? Bem, não sabia ao certo. Mas sabia que estava feito algo que mudava as coisas – pois aceitava assim. Não sabia como era, se estava feliz ou triste – simplesmente estava longe do outro. Aceitava e pronto. Ali parado era agora só ele. Solitário no cafezinho da esquina, diante do jornal lido nos solavancos do ônibus ou no escritório enfadonho, não sabia mais o que era sentir – o que devia sentir. Não sabia se sentia ou dessentia. Levava uma hora e meia até o trabalho e duas horas, no final do expediente, até em casa. Muita fumaça, canos fumegando e barulho. Dor em sua cabeça tonta. Mas o seu perder-se no outro, há tanto tempo se fora,... Agora queria esquecer. Pelo Medo que sentia, medo de estar tudo acabado, borrado, pela peste, pela dor e pelo nada. Queria, mesmo assim, como antes, beijar-lhe ainda a boca forte e vermelha – louco. Neste fim de tarde cinza, doía lhe a cabeça tonta – café demais – café de menos – noites mal dormidas. Querer contido. Doíam-lhe as dobraduras do corpo. Esticou a espinha e espiou. Pela janela, um menino que brincava entre sacos de lixo com pedaços de vidro.

QUATRO


De repente, agora só era o branco. Perdera seu perder-se nele “outro”.




CINCO

Era também aquele niilismo burro que já corrompera tudo. Aquilo que o tornara cínico e seco. Sem esperança. Duro. Mesmo lembrando do bonito, do seu encontro em perder-se no outro e pelo outro,...
Mas há tempos aquela coisa lenta, misteriosa e triste foi invadindo aquelas duas carcaças-corpos com lama nos olhos. Era a angustiosa roseira presa na garganta – um misto de tédio, medo e revolta. Por que afinal não se pode mais ser feliz para o resto da vida. Paz, segurança e compaixão são mentiras – cínicas e deslavadas. Utopias desiludidas.
Ele e o outro já não se viam com os mesmos olhos. Eram agora eles outros-outros separados. Distanciados e brancos. E os olhos eram olhos de lama. Paciência, diriam alguns. A utopia acabou, a História se foi e o que resta, talvez seja apenas uma longínqua “Viens Mallika”- suspirosa. A saudade é hoje mais triste e, sobretudo. Cínica.
Da lama – surgiu o feto. Feto, triste, branco e deformado. Seu desejo desesperado - por outras carnes aparvalhadas, por outros perderes possíveis. Por outros quereres. Mas não conseguia. Eram, um, dois, três, quatro ou cinco. Não se aproximavam e nem ele se perdia como queria.
Todos longe no seu ego melancólico. Lembrava-se sempre de “Ah! Ridi, Pagliaccio, sul tuo amore infranto!” E via-se piegas e bobo. Junto da carne de diversos outros que não eram definitivamente aquele seu “outro” de antes – mas que queriam, certamente, perderem-se nele e com ele. Mas não dependia deles – um, dois, três, quatro ou cinco. Tinham apenas alguns momentos, minutos e segundos dele. Um “oi”, um perto de mão e direto – direito - para a cama. Pernas abertas, sexo – plastificado e triste – por que eram apavorados com a peste. Depois do gozo - era vestir as calças e sair por aí. Afogado de solidão desinibida e úmida. Mostrando a todos, pelas ruas da cidade esse seu filho-feto branco e gélido. Solidão, desejo e a ternura do “outro” perdidos na lama.

Um comentário:

Guy Franco disse...

Rapaz, seu niilismo quer me desfazer, me fazer juntar à terra, ao ar e aos gatos mortos da rua.
Por incrível coincidência, acabei de chegar em casa e vi o gato que descreve em seu texto. Este aqui é preto, todo preto. Um conhecido chamado Negão. Ele faz parte do asfalto, agora.
Mando beijos.