Por Augusto Patrini
Eu acordei sufocado, a garganta raspando, com as duas, e sempre rosas entaladas no peito. Lembrei-me de algum caminho cheio de flores antes da guerra, longe desta cidade suja e feia. Antes de nos trairmos, de sermos traídos. Agora, pensando bem, no meio deste colchão barato e lençóis encardidos, somente ficaram-me escombros. Sombras. E no horizonte essa fuligem cinza e sufocante. O que houve, às vezes eu me pergunto, não consigo entender, o que queriam e o que se tornou São Paulo. Claro, eu sempre soube, de sua hipertrofia, de sua feiúra inigualável e dos muros e paredes que sempre estavam lá: excluindo, excluindo, excluindo...
Mas agora tudo se tornou diferente, parece que o tempo parou e as pessoas que sobraram devoraram-se ou fugiram para o mato. Falta-nos tudo, água, amor e ternura – mas ainda não falta gás nem petróleo, e por isso, como mágica lá no canto, além de minha janela, na frente desse sol enegrecido ainda cospem fogo e fumaça, essas malditas usinas. Que me parecem ter tomado vida própria e funcionado sozinhas. Será? Por que nas ruas eu não vejo mais pessoas, somente lixo, ratos e carcaças de caros. Os que restaram estão trancados em paredes grossas, ou simplesmente cansaram – de como o mundo deixou-se morrer e quiçá fizeram o mesmo. Eu me pergunto. Sempre. Eternamente. Onde está você? Por que me abandonaste, eu que sempre te dediquei flores, rosas, violetas e amores. Ainda tenho aqui, algumas fotos puídas, de quando, antes da guerra, as pessoas ainda tinham cabelos, e mesmo assim, em algumas fotos não parecíamos satisfeitos- e hoje o que me resta é perguntar do porquê.
Eu me lembro quando o tempo começou a endoidecer, e que a água começou acabar, e que não se podia respirar esse ar, eu então dava-nos o luxo de colocar uma panela com água e canela no fogo – por que ainda havia um pouco mais de água. Hoje ainda tenho gás, mas muita pouca água (250ml por dia – já me acostumei) - e o ar tornou-se menos respirável do que naqueles dias. Quando já chorávamos um sonho desfeito, nossa ternura perdida, e por que havia no ar tanto ressentimento, mesmo com o cheiro de canela, e os vislumbres de minha fuga. Sempre para sul, sem parar, pensando ainda onde havia gelo, onde ainda havia ar. Contudo tudo saiu de nosso controle – quando viemos para cá avisaram que esta cidade engolia as pessoas, e as mastigava com seus dentes de aço e desilusão – mas o que nunca poderíamos imaginar é que a violência explodiria, e que por dias trancados em casa, ouviríamos apavorados gritos, tiros e pedidos de socorro. Porém sem nos mexermos estáticos em nossa solidão, em nossa incomunicabilidade. Não conseguíamos dizer nada mais. Só me lembro do vapor em teus olhos, e do medo que sentia. Eu nem sei o que sentia, sentia que tínhamos que ir, mas você queria ficar – mas até quando ficaríamos assim trancados? Precisávamos comer. Comeríamos livros? Aí as torneiras secaram, e tivemos que sair, procurar água. E nestes dias perigosos, na verdade noites, por que se saíssemos de dia, seriamos certamente mortos, víamos como havíamos perdido tudo, e que juntos estávamos sozinhos. E um dia enfim, por água, você se foi.
Eu fiquei aqui te esperando, esperando, esperando, ouvindo ainda tiros e os carros queimando – e eu nem sei o que sentia , só sei que não podia chorar, acho que não havia água no meu corpo – ou minha alma estava seca, esturricada – de tanta dor, violência e falta de amor. Foram longos meses esperando-te, mas você nunca apareceu. Sempre os mesmo sons, tiros, gritos e as usinas vivas funcionando sem parar. Algumas vezes eu ouvia um helicóptero passando, e me perguntava quem seriam, e por que não faziam algo? Eu me perguntei tantas vezes onde estava Deus, que não queria-nos mais. Que nos abandonou ou esqueceu ou simplesmente cansou-se. Talvez sejamos apenas um velho brinquedo de Deus esquecido...
O que eu podia fazer em meu mutismo, eu nem mais sabia como viver, pois que todos os homens pareciam ter enlouquecido e que eu também era um homem, me perguntava quando eu perderia minha humanidade, quando que por água e comida eu teria que matar. Também me perguntava o que teria acontecido com você, você fugiu ou morreu? Isso eu nunca soube, mas aquele dia, chegou, e eu encharquei-me de sangue, por um punhado de farinha e uma lata de soda. E eu nem sentia mais. Todo aquele sangue, não significava mais nada. Naquele dia eu percebi que eu mataria outros, muitos, quantos fossem necessários para continuar a viver. Porém pensava: tudo isso para quê? Viver assim, só, entocado? Como uma fera pronta para matar e fugir. Você nunca voltou. Hoje, pensando bem, você já tinha partido muito antes de sumir, estávamos juntos separados – mudos, compreendi que mesmo antes da guerra matávamos. Matávamos por nossa capacidade de ficarmos parados, integrados naquele jogo perigoso. Antes de tudo explodir, você lembra como pulávamos mendigos, como desviávamos das pessoas? Tudo já havia se perdido muito antes.
Pois bem, ontem cansei de te esperar, e decidi partir- arrumei a pouca água e comida que me restam, e procurei aquela velha bússola que eu tinha desde criança – a coloquei no bolso, e resolvi ir para o sul, esperando encontrar gelo, água e paz. Mas agora que junto minhas facas e o que sinto somente é uma secura estranha no peito e uma vontade de chorar. Por que sei que me perdi, sei que te perdi. Nós nos perdemos. Eles, todos eles, ganharam. Talvez eu nunca chegue lá. Mas eu tenho que ir. Desculpe-me. Se ficar mais morro, de fome, de dor ou de sede. Talvez você tenha se unido a uma destas gangues que andam quebrando tudo por aí. Talvez você tenha sido esperto, e já que talvez eu nem significava tanto assim, você escolheu viver. Mesmo no meio do lixo, da morte e da violência. Espero que não. Espero apenas que estejas morto. Pois saiba, que hoje se me encontrar no meio dos escombros que restam desta cidade-covil, eu estarei pronto a mirar-te no meio da testa – um pedaço de aço puro. Sem lembrar-me o que fui, o que eras e o que fomos.