sábado, 18 de julho de 2009

A fotografia como mídia do desaparecimento



Suprimimos o mundo verdadeiro – que mundo subsiste então?


O mundo das aparências? De modo algum.


Com o mundo verdadeiro suprimimos, ao mesmo tempo,


o mundo das aparências. (Nietzsche)





Mas o universo perdido das aparências nem por isso deixa lugar a um mundo objetivo. O mundo liberado da verdade e das aparências torna-se FÁBULA. É, pelo menos, a primeira hipótese, a hipótese poética. Mas falaremos disso mais tarde, com a transferência poética de situação. Falaremos em primeiro lugar da segunda hipótese, que é a de uma gigantesca contra-transferência, contra-transferência negativa, e que é simplesmente a da queda do mundo no real.



O mundo precipita-se na realidade por uma espécie de interpenetração mortal, cai na realidade como resíduo, do qual a arte doravante faz parte, e o mundo paga por isso. Segundo Nietzsche, uma vez perdido o mundo verdadeiro, ao mesmo tempo que o das aparências, o universo torna-se um universo de fato, positivo, tal qual, que nem mesmo tem mais a necessidade de ser verdadeiro. Tão fatual quando um ready-made. Por assim dizer, um mictório. O mictório de Duchamp é o emblema de nossa hiper-realidade moderna, resultado de uma contra-transferência violenta de toda a ilusão poética sobre a realidade pura, a do objeto transferido sobre si mesmo, suspendendo assim qualquer metáfora possível. Da mesma forma que Duchamp se descartou do mictório, suprimindo-lhe todo uso, toda referência e toda ilusão, também Deus se retirou do mundo, abandonando-o a seu destino de ready-made.



É a partir do momento em que Deus não quer nem vê-lo que o mundo se torna real, de uma tal realidade que ela não é suportável senão ao preço de uma denegação perpétua, do tipo: "Isso não é um mundo" (sendo o famoso "Isso não é um cachimbo", denegação surrealista da própria evidência, correlativo do mictório, Duchamp também poderia ter dito: "Isso não é um mictório"). Esse duplo movimento da evidência absoluta e definitiva do mundo e da denegação – igualmente tão radical – dessa evidência domina toda a trajetória da arte moderna; não somente da arte, mas de todas as nossas percepções profundas, de toda a nossa apreensão mental do mundo. E aqui não se trata mais de moral filosófica ou de nostalgia do gênero: "O mundo não é o que deveria ser", ou "Ele não é mais o que era". Não: o mundo é como é. Uma vez escamoteada toda transcendência, as coisas não são mais o que são e, tais como são, são insuportáveis. Elas perdem toda ilusão e tornam-se imediata e totalmente reais, sem sombra, sem comentário. Um gigantesco ready-made. E no mesmo gesto, simultaneamente, essa realidade intransponível não existe mais. Não tem mais lugar para existir, dado que ela não se troca mais contra absolutamente nada. "A realidade existe? Estamos em um mundo real?" – tal é o leit motif publicitário de todas as nossas superproduções cinematográficas. Mas isso traduz simplesmente o fato de que não podemos suportar o mundo como uma presa da realidade, senão sob o signo do princípio do mal, isto é, sob a forma de uma denegação radical, qualquer que seja ela. E isso é lógico: não podendo mais o mundo ser justificado em outro mundo, é preciso, desde já, hic et nunc, dar-lhe força de realidade, purgá-lo de toda ilusão – dentre as quais a da arte, bem entendido, que não tem mais razão de ser. Mas, ao mesmo tempo, pelo próprio efeito dessa contra-transferência negativa, aumenta a denegação do real como tal.



Mesmo os aspectos mais sórdidos do mundo – os dejetos – tornam-se positivos, imanentes em sua dejeção, objetos em si, particularmente na arte atual, onde alimentam a maior parte das performances e das instalações. A modernidade está dominada pelo apagamento da ordem natural, é uma eliminação experimentalmente necessária, e a arte participa disso – toda a arte contemporânea participa inteiramente, à sua maneira, ilustrando como dejeto, como dejeção, todos os resíduos de uma ordem natural: o corpo, o rosto, as formas, as cores – tratando a si mesma como dejeto e celebrando-se como função inútil.



A partir do século XIX, a arte se quer inútil. Ela faz disso um título de glória (o que não é de forma alguma o caso na arte clássica na qual, em um mundo que não é ainda nem real, nem objetivo, a questão da utilidade ou da inutilidade nem mesmo se coloca). É portanto lógico que exista uma predileção pelo dejeto, que por definição também é inútil. Basta levar qualquer objeto à inutilidade para fazer dele uma obra. É precisamente isso o que faz o ready-made, quando se contenta em desinvestir um objeto de sua função, sem nele nada mudar, para dele fazer um objeto de museu. Basta fazer do próprio real uma função inútil para dele fazer um objeto de arte, como uma presa da devoradora estética da banalidade. O mesmo ocorre com as coisas antigas, revolutas e portanto inúteis – elas adquirem automaticamente uma aura estética. Seu distanciamento no passado equivale ao gesto de Duchamp, e elas também se tornam ready-mades, vestígios nostálgicos empalhados tais quais.



Poderíamos extrapolar esse processo para a produção em seu conjunto, produção de coisas materiais ou imateriais. A partir do momento em que essa produção atinge um patamar crítico, no qual ela não se troca mais por nada em termos de riqueza ou de finalidade sociais, ela se torna um gigantesco objeto surrealista, apreendido por uma estética devoradora, e inscreve-se em toda parte em uma espécie de museu virtual. Museificação de todo o meio-ambiente técnico, tal como um ready-made.



Portanto, através do dejeto, da figuração abstrata do dejeto, da obsessão do dejeto, a arte se empenha em encenar e em materializar sua inutilidade. Ela manifesta seu não-valor de uso, seu não-valor de troca (ao mesmo tempo em que se vende muito caro). Mas a inutilidade não tem valor em si, é um sintoma secundário e, sacrificando suas apostas a essa qualidade negativa, a arte se engana em uma gratuidade inútil. É um pouco o mesmo cenário da inutilidade, de pretender ao não-senso, à insignificância, à banalidade, à minimalidade, ou até mesmo ao desaparecimento e à ausência – o que testemunha uma pretensão estética redobrada. A anti-arte, sob todas as suas formas, se esforça para escapar da figura, da representação, da dimensão estética. Mas esta é irremediável, a partir do momento em que, com o ready-made, anexou a própria banalidade, e que tudo, mesmo nossa vida cotidiana, tornou-se arte (é bem por isso que não há, propriamente falando, nem arte, nem vida cotidiana). Fim da inocência do não-senso, da não-verossimilhança, da não-perspectiva, da não-transcendência. Tudo isso, que desejaria ser ou voltar a ser a arte contemporânea, só faz reforçar o caráter abominavelmente estético dessa anti-arte. Voltar ao elemento puro do objeto, à condição radical de só ser "uma coisa dentre outras", voltar a ser uma coisa absolutamente qualquer, mas guardando seu privilégio e sua singularidade: eis o que está além das forças da arte como tal. Há acidentes irônicos que a isso nos conduzem (o visitante sacrílego que urina no mictório de Duchamp, os lixeiros de Beaubourg, a Cadeira de Kossuth). Mas mesmo isso não põe fim à série estética do não-senso.



A arte sempre se auto-negou. Mas ela o fazia por excesso, exaltando-se com o jogo de seu desaparecimento. Hoje em dia, ela se nega por ausência – pior: ela nega sua própria morte. Ela imerge na realidade, ao invés de ser o agente do assassinato simbólico desta, ao invés de ser o operador mágico de seu desaparecimento. E o paradoxo é que, quanto mais ela se aproxima dessa confusão fenomenal, dessa nulidade enquanto arte, mais ela é creditada e sobrevalorizada – de tal modo que, para retomar Canetti, estamos no ponto em que mais nada é belo nem feio. Ultrapassamos esse ponto sem sabê-lo e, por falta de encontrar esse ponto cego, não podemos senão perseverar na destruição atual da arte.



É no quadro dessa contra-transferência negativa, dessa imersão do mundo na realidade que aparece e cresce o objeto no horizonte da modernidade. O romance da modernidade, diferentemente da tragédia ou do drama clássico, é, a partir do século XIX, o surgimento do objeto, dos objetos em sua evidência nauseante, em sua banalidade viscosa, em sua tecnicidade hostil. Quando os objetos se levantam no horizonte da percepção e da consciência coletiva, é para assombrar-nos. "Na luz negra de seu pânico, os objetos, essas miragens de átomos com arestas cortantes, pareceram-lhe de um heroísmo irrisório com seu apego, sua donquixotesca fidelidade em relação às formas que só o acaso lhes havia atribuído... Eles tinham o ar de olhá-lo, como testemunhas conscientes de sua sorte infeliz. Então, como o homem primitivo, ela começava a personificar o universo..." (Saul Bellow). E, em geral, os objetos, como as forças da natureza, quando são personificados, nos desejam o mal. São os protagonistas da transparência do mal – mesmo se são os outros que, através dos objetos, nos desejam o mal; até invadir todo o Novo Romance com a descrição minuciosa de um meio-ambiente incompreensível – objetos acabados, de uma presença exata e de uma ausência indefinida – espelhos de absolutamente nada, exatamente como o ready-made, como os produtos acabados de uma função inútil (no esplendor de uma realidade inútil?).



A idéia revolucionária da arte contemporânea era a de que qualquer objeto, qualquer detalhe ou fragmento do mundo inanimado podia exercer a mesma atração estranha, e colocar as mesmas questões insolúveis que as reservadas antigamente a algumas raras formas aristocráticas chamadas obras de arte. A verdadeira democracia estava aí: não no acesso de todos ao gozo da arte, mas na chegada estética de um mundo-objeto onde, segundo a feliz fórmula de Warhol, cada objeto sem distinção teria seus quinze minutos de glória – e, precisamente, sobretudo os objetos sem distinção. Todos se equivalem, tudo é genial – ready-made universal, tendo como recíproca a transformação da arte e da própria obra em objeto – ready-made ela também, sem ilusão nem transcendência, acting-out puramente conceitual, gerador de objetos desconstruídos que nos desconstróem, por sua vez, segundo a norma fundamental analítica da modernidade. Pois a um olhar respondemos por um olhar, a uma visão respondemos pelo imaginário, mas a um objeto conceitual respondemos por uma atitude conceitual. Não há mais rosto, não há mais olhar, não há mais corpo – órgãos sem corpo, fluxos, moléculas de fractal. A relação com a "obra" é da ordem da contaminação, do contágio: conecta-se, absorve-se, imerge, exatamente como nos fluxos e nas redes. Encadeamento reflexo, encadeamento metonímico, reação em cadeia.



A bem da verdade, não há mais objeto em tudo isso: no ready-made, não é mais o objeto que está aí, mas a idéia do objeto, e não gozamos mais da arte, mas da idéia da arte. Estamos em plena ideologia. E no ready-made se resume, no fundo, a dupla maldição da arte moderna e contemporânea: a de uma imersão no real e na banalidade, e a de uma absorção conceitual na idéia da arte. Saul Bellow disse sobre Picasso: "Essa absurda escultura de Picasso, com seu caule e suas folhas metálicas – nem asa, nem vitória, um simples testemunho, um vestígio – a idéia, nada mais, de uma obra de arte. Muito semelhante às outras idéias e aos outros vestígios nos quais se inspira a nossa existência – não mais a maçã, mas a idéia, a reconstrução pelo especialista em maçãs daquilo que foi outrora a maçã – não mais o sorvete, mas a idéia, a lembrança de uma coisa deliciosa, feita de substitutos, de amido, de glucose, e outros produtos químicos – não mais sexo, mas a idéia, ou a evocação do sexo – o mesmo ocorrendo com o amor, a crença, o pensamento, e todo o resto..."



Por isso, em matéria de arte, a coisa mais interessante hoje em dia seria infiltrar-se no encéfalo esponjoso do consumidor moderno. Pois o mistério está lá, atualmente: no cérebro do receptor, no centro nevrálgico dessa servilidade diante das "obras de arte". Onde está o segredo? Nesse fato de que as mortificações que os "criadores" infligem aos objetos e ao seu corpo, os consumidores infligem a si próprios e às suas faculdades mentais, segundo uma cumplicidade em espelho. É o que eu chamava "complô da arte". É evidente que o nível de tolerância baixou consideravelmente, em função dessa cumplicidade geral. De fato, esse triunfo da idéia da arte sobre a própria arte e, com o ready-made, esse triunfo da idéia do objeto sobre o próprio objeto, não são senão diversos aspectos do gigantesco processo contra-transferencial que hoje toma toda sua dimensão sob a forma do retorno-imagem.



Contra-transferência que afeta muito geralmente o universo visual e midiático, mas também a vida política e intelectual, a vida cotidiana e individual, nossos gestos e nossos pensamentos, em toda parte afetados por essa refração automática de si mesmos, e que toca até nossa percepção do mundo mais ingênuo e mais natural. Por toda parte, o retorno-imagem, que de alguma forma sela toda coisa através de uma auto-implementação, por uma auto-simulação automática, é como o vírus de nossa (pós)modernidade.



O retorno-imagem curto-circuita o olhar, curto-circuita a representação, duplicando as coisas de antemão e interceptando seu desenrolar, recobrindo todas as coisas com o véu de sua encenação – fenômeno particularmente sensível no universo fotográfico, em que raros são os seres e as coisas que escapam desse retorno-imagem. Elas se revestem bizarramente de um contexto, de uma cultura, de um sentido, de uma idéia de si mesmas, elas se armam de uma contra-transferência que desarma toda visão e criam uma forma de cegueira, que Rafael Sanchez Ferlosio denuncia: "Existe uma forma terrível de cegueira da qual bem poucos se apercebem: a que permite olhar e ver, mas não permite ver de relance, sem olhar. É assim que eram as coisas antigamente: não se as olhava, contentava-se em vê-las. Hoje em dia, tudo é aprisionado pela duplicidade, nenhum impulso é puro e direto. É assim que o campo se tornou paisagem, isto é, representação de si mesma... Onde pouso o olhar, só vejo essa horrível encenação que os videntes glorificam sob o nome de "paisagem"."



Nesse sentido, nossa própria percepção, nossa sensibilidade imediata tornou-se estética. A vista, a audição, o tato, todos os nossos sentidos tornaram-se estéticos, no pior sentido do termo. E toda visão nova das coisas não pode resultar senão de uma desconstrução radical desse retorno-imagem, de uma resolução dessa contra-transferência que obtura a visão, devolvendo o mundo à sua ilusão radical (ligado ao fato de que o próprio mundo é sem retorno, sem imagem e sem retorno-imagem). É possível?



Mas não se deve confundir esse processo de reverberação, de confusão da própria imagem com o espelho da representação, no qual nos diferenciamos de nossa imagem invertida, e entramos com essa inversão em um processo aberto de alienação, de alteridade e de jogo com nossa própria imagem. O espelho, a imagem, o olhar, a cena, abrem precisamente sobre uma transferência, sobre toda uma cultura da metáfora inversa daquela do retorno-imagem e que contra-transfere.



Toda essa problemática do retorno-imagem, que intercepta o próprio acontecimento da imagem e do pensamento, parece-me estar inscrita em filigrana na análise da televisão. Digamos, para resumir, que é a televisão que nos olha, e que é por que nos olha que ela nos impede de ver. Ela nos olha a partir de um ponto cego, portanto, a partir de nada – é o nada que nos olha, e que faz com que nada lá dentro, em tudo o que a televisão nos dá a ver, nos diga mais respeito. Esse ponto cego – no duplo sentido de que não o vemos, ou ponto através do qual não vemos nada, e esse Nada não nos diz respeito – é o ponto de refração a partir do qual nos volta o retorno-imagem, a partir do qual nosso próprio olhar nos retorna como isso que nos impede de ver. Através da TV, mas também através de todas as mídias, as coisas nos olham cegamente, sem que possamos vê-las: aí encontramos a cegueira especificamente moderna de que nos fala Ferlosio.



Basta que uma coisa não esteja no olhar – ou melhor, que ela esteja nesse olhar cego da televisão, para que ela não nos diga mais respeito – e daí vêm a incerteza absoluta e a dissuasão que ela opera em todo pensamento e em toda ação – dissuasão fonte de poder, do único poder atual, que de fato não mais emana de uma delegação de soberania, mas dessa única contra-transferência negativa massiva, individual e coletiva, sobre nossa própria vida e nossas próprias ações, ou sobre o acontecimento do mundo. Ora, partimos, na Troca Impossível, do postulado segundo o qual a incerteza radical do pensamento vem do fato de que ela não se troca nem pela verdade, nem pela realidade. Mas ela também não é ligada a um retorno-imagem do pensamento sobre si mesmo. Isso é o vício, ou o vírus do pensamento crítico, do pensamento-verdade. Circularidade do pensamento filosófico que, na falta de poder trocar-se pelo que quer que seja, e no desespero dessa troca impossível, inventa literalmente a verdade para poder trocar-se por ela, para poder enfim trocar-se por qualquer coisa. A verdade é a invenção do pensamento crítico, e é sua moeda de troca – supor uma instância transcendental à qual o pensamento estaria predestinado e que lhe remeteria sua imagem. Assim edifica-se o pensamento-verdade, que supõe que o real é racional e, portanto, permutável pelo pensamento.



Para ir mais depressa e voltar à televisão e a todas as técnicas do visual e do virtual, diria que da mesma forma que o pensamento inventa para si a verdade de modo a poder se trocar por ela, nós nos inventamos a tele(verdade) para nos remetermos nossa imagem e criarmos um simulacro de troca com a realidade. Tudo o que vemos nas telas não é senão retorno-imagem que funda o efeito de realidade por um simulacro de troca. Podemos imaginar todas as conseqüências dessa circularidade viciosa – a mesma circularidade viciosa que aquela do pensamento e da verdade. O que impõe, evidentemente, a necessidade quebrar essa circularidade de uma forma ou de outra – isto é, pensar além da verdade e olhar além da TV.



Retorno do olhar contra o que nos é mostrado e contra aquilo que nos é escondido (pois isso mesmo que nos é escondido, o não-dito, é objeto de um retorno-imagem mais sutil – haveria muito o que dizer sobre isso quanto à psicanálise e ao conceito de inconsciente atuais). Possibilidade de inversão do olhar, de inversão do efeito de verdade, possibilidade para a imagem de desbaratar o retorno-imagem, possibilidade para o acontecimento de desbaratar a informação? Para isso, há uma única solução (é claro que não é uma solução "prática"): é preciso que o próprio mundo passe ao ato. Para quebrar o curto-circuito integrado da verdade e da realidade, para que seja o próprio pensamento que faça acontecimento. Assim como os povos condenados a quebrar o espelho onde estavam presos na verossimilhança, na obra de Borges, deveríamos destruir a tela, o véu da tela e da informação onde estamos emboscados por essa potência cega, essa quintessência virtual do mundo que nos remete a nós mesmos.



Vejo algum traço desse "acting"(out) na passagem ao ato fotográfico, ou na passagem ao ato contingencial (diferente da contingência histórica), ou na passagem ao ato de pensamento, na qual o objeto, o acontecimento, o mundo, lhe impõe sua incerteza, sua ininteligibilidade (e não aquela que nos é administrada por programação); o pensamento impõe sua ininteligibilidade. Encontramos, através da fotografia, a transferência poética de situação da qual falávamos no início. "A foto reproduz infinitamente o que só ocorre uma vez. Ela repete mecanicamente o que jamais poderá se repetir existencialmente. Nela, o acontecimento jamais se lança na direção de uma outra coisa. Ela é o Particular absoluto, a Contingência soberana, a Tuchè, a Ocasião, o Encontro, o Real em sua expressão infatigável, em sua intratável realidade."



Mas não se trata, é claro, da generalidade da vida real. Não se trata, de modo algum, de exaltar o instante realista, a significação realista do instante (como na foto-reportagem, por exemplo). O instante é o que há de mais servil e de mais mentor, por que é carregado de sentido. É preciso, pelo contrário, reduzir o sentido, a significação-choque – aquela que, por sua violência e seu realismo, serve de afrodisíaco a serviço de um tráfico "pornográfico" da imagem. A fotografia é um dos afrodisíacos mais poderosos, e não há nenhuma contra-indicação em gozar da excitação artificial da foto. Simplesmente, é preciso ver que essa foto-reportagem transforma enfaticamente a realidade, ela a sobressignifica, ela unifica-a como sentido – e assim fazendo cria o choque, mas apagando justamente o punctum – não deixando lugar para nenhum detalhe que traia o conjunto (como o chiste – trait d’esprit – trai a linguagem e sua significação coerente). Ora, no detalhe e no fragmento é que se encontra o objeto próprio da foto, nisso que "aponta" para você e nisso que o choca. Por isso o isolamento, o vazio, o silêncio são constitutivos de sua qualidade singular. Essa brancura fotográfica – símbolo de um desejo petrificado.



Por isso a foto é pensativa. Há uma "pensatividade" do objeto, como a de alguém que nos olha sem nos ver. E há uma pensatividade do olhar fotográfico que não é justamente um ato de reflexão, mas um ato de pensamento sem pensamento, uma mirada sem alvo. Os primitivos (em foto) olham vocês sem vê-los: eles não determinam a posição do operador. E é essa separação, esse corte que assegura sua singularidade contra qualquer interação, contra o retorno-imagem. O objeto, como os primitivos, é sempre pensativo. E o olhar também se faz objeto, olhar-objeto pensativo e não reflexivo, nem ativo ou móbil, como no cinema – não há pensatividade no cinema.



"A essência da imagem é estar inteiramente fora, sem intimidade, e entretanto mais inacessível e misteriosa que o pensamento do foro interior... irrevelada e, apesar disso, manifesta" (Blanchot). Se a foto não pode ser aprofundada, é por sua força de evidência, pela força da aparência: não há intimidade, não há interioridade, não há foro interior, não há pathos. Não há fenomenologia: não há percepção reflexiva do mundo, nem da interação sujeito/objeto. É o próprio objeto que é coisa mental – não fenomenal, mas mental, e é isso que lhe dá essa qualidade pensativa, a qualidade de algo que nos pensa, isto é, através da qual aparecemos em filigrana, no próprio momento do desaparecimento. Pensar, com efeito, não é refletir, é a arte de fazer transparecer, e de fazer desaparecer. Assim, a poltrona é pensativa: nela opera o desaparecimento, a forma virtual do ser humano que não está presente, que não está mais presente, mas cuja forma aí está, como uma espécie de sorriso. Mas também o carro imerso, ou a mesa de café, ou o escritório vermelho com a luz e o manuscrito, são pensativos – mesmo as carcassas de carne são pensativas – apreendidas no momento em que portam o traço de uma forma desvanecida (portanto, jamais uma imagem realista bruta de libertação, mas também jamais um espelho). Pensamento sem reflexão, sem retorno-imagem – ao contrário dos sujeitos humanos, nos quais o retorno-imagem é praticamente inevitável.



Mas penso em outras fotos que não as minhas. Nas de Anna Mariani, por exemplo, uma fotógrafa brasileira que foi ao nordeste fotografar as casas dos camponeses – somente as fachadas, muito coloridas, de linhas muito simples e geométricas. Objetos puros, nascidos simultaneamente da expressão gráfica e luminosa espontânea dos camponeses do nordeste, e de seu desnudamento e de sua miséria. Anna Mariani os restituiu da mesma forma totalmente nua, frontalmente, sem sequer a presença de uma pessoa viva. Mas os camponeses estão aí. Estão presentes por trás dessas fachadas, como por trás de máscaras. Cada fachada é como uma máscara ou um rosto, o grafismo é o dos traços de um rosto, e as aberturas são como os orifícios de uma máscara. A ausência dos homens não é senão a ausência ingênua de seus corpos em proveito da máscara viva de sua condição. Eles deram às suas fachadas as linhas de suas sobrevidas, reduzidas, elas também, à sua mais simples expressão. E Anna Mariani restituiu fielmente esse gesto, respeitando ao mesmo tempo em sua tomada de vista, sem efeitos especiais, o brilho das cores e a simplicidade abstrata do traço decorativo. Ela integrou em sua foto a inspiração cênica primitiva dos camponeses, segundo uma mesma regra rigorosa: desnudamento físico da miséria, desnudamento físico de sua expressão, desnudamento fotográfico de sua reprodução.



Ela nos propõe, com isso, algo que rivaliza com os produtos habituais da antropologia, mas que os ultrapassa, por que ela se absorve em seu objeto, ressuscita-o não em sua presença redutora, mas na sua ausência irredutível. Algo que, sem se forçar, ao mesmo tempo rivaliza com os produtos de nossa estética e os ultrapassa, pois, apesar de muito belas, essas fotos não são justamente produtos estéticos, por que guardaram essa objetalidade, essa fatalidade dos objetos "primitivos", essa necessidade absoluta que os objetos de arte perderam há muito tempo.



Esse jogo da ausência e da transparência é, portanto, a regra secreta da imagem. É pela forma, e no coração da forma, que se opera essa anamorfose, esse desvanecimento do objeto, do conteúdo, do sentido. Em princípio, o operador nada tem com isso. E o sonho seria que essas imagens se fizessem sozinhas, segundo uma maquinalidade à Warhol – a maquinalidade do próprio sonho (cf. o lamento, nos próprios sonhos, por um reflexo de fotógrafo diante da beleza de certas imagens, de ter esquecido sua máquina fotográfica!). De todo modo, o operador busca desaparecer ao mesmo tempo em que faz desvanecer seu objeto. E isso faz parte da ilusão mágica da foto. A esse respeito me vem ao espírito uma espécie de alegoria: vocês repararam que Deus está ausente de todas as fotos? E por que Ele está ausente? Porque é Ele o fotógrafo. Assim, conseguiria desvanecer-se e deixar o mundo existir, sem Ele, como uma fábula poética.



Peço desculpas por abusar assim do nome de Deus, mas é a alegoria mais pertinente e a menos comprometedora disso que eu queria dizer com o desaparecimento do sujeito fotográfico.



Assim, nos vemos às voltas com uma espécie de metamorfose, ou melhor, de anamorfose do pensamento na imagem, por onde ela escapa a todos os tipos de discurso e toca o reino da Fábula de que eu falava no início. Isso quer dizer: a algo que não é nem verdadeiro nem real, algo que se conta literalmente, que não existe a não ser por sua narrativa, sua fala, seu mito literal – e, para mim, a imagem fotográfica, em sua forma mais pura, é uma das variantes da fábula. Uma maneira, no sentido forte, de salvar as aparências, isto é, através da imagem como fábula, através da imagem-foto como instante fabuloso, de deixar entrever que esse mundo "real" corre o risco, a todo instante, de perder seu sentido e sua realidade – de que ele poderia, no fundo, abrir mão do sentido e da realidade, algo que porém não suportamos (não mais do que a idéia de que nada haja, antes do que algo), senão graças a essas imagens, essas poucas fábulas que se deixam atravessar pelo vazio, que são o (não) lugar vivo da desintegração dos conceitos, e que se apoderam das próprias funções do pensamento como se fora de uma última servidão. Mas que retraçam esse fim, que se exaltam com esse desaparecimento, como o mito exalta e retraça as origens e o assassinato original da realidade.



Jean Baudrillard


Tradução: Nícia Adan Bonatti


Revisão: Paulo Oliveira





Jean Baudrillard





Professor de Sociologia e Cultura Pós-Moderna na Universidade de Paris

Nenhum comentário: