Morte por saudade
Naqueles dias eu tinha nove anos e, como se já não andasse muito ocupado, havia arranjado uma nova ocupação: deixei crescer em mim uma súbita curiosidade em saber o que acontecia além das paredes de minha casa ou da escola, uma curiosidade repentina pelo desconhecido, isto é, pelo mundo da rua ou, o que dava na mesma, pelo mundo do Paseo de San Luis, onde minha família morava.
Às tardes, em vez de ir diretamente da escola para casa, comecei a me demorar um pouco pela parte alta do Paseo e a observar o vaivém dos passantes. Meus pais não chegavam antes das oito, e isso me permitia atrasar em quase uma hora minha volta para casa. Era uma hora na qual a cada dia me sentia melhor, pois sempre acontecia alguma coisa, algum pequeno acontecimento, nunca nada do outro mundo, mas suficiente para mim: o tropeção de uma senhora gorda, por exemplo, o vento da baía provocando o voo de um chapéu de palha que eu julgava infeliz, a bofetada terrível de um pai em seu filho, os pecados públicos da bilheteira do Vênus, a entrada e saída dos fregueses do Cadí.
A rua começou a me roubar uma hora de estudo em casa, uma hora que eu recuperava graças ao simples método de dividir o tempo que, depois do jantar, dedicava à leitura de grandes romances, até que chegou o dia em que o encanto do Paseo de San Luis foi tão grande que me roubou inteiramente o tempo da leitura. Em outras palavras, o Paseo substituiu os grandes romances. Naquele dia me atrevi a voltar para casa às dez, nem um minuto antes, nem um minuto depois, bem na hora do jantar. Um grande enigma havia me detido na rua. Uma mulher caminhava, com passo tímido e vacilante, em frente ao cine Vênus. Num primeiro momento, pensei que se tratava de alguém que esperava o namorado ou o marido, mas ao me aproximar pude ver que, tanto pela roupa que usava como pelo modo de abordar todos os que passavam, só podia ser uma mendiga. Como eu havia lido muitos contos, me pareceu ver naquela mulher a majestade de uma rainha destronada. Mas isto só num primeiro momento, porque logo voltei à realidade, e então, já sozinho, vi uma reles moradora de rua. Dispus-me a dar a ela a única moeda que tinha, mas quando ia fazê-lo passou por mim sem nada pedir. Pensei que talvez tivesse percebido o que de fato eu era: um pobre colegial sem dinheiro. Mas pouco depois vi como pedia esmola à pequena Luz, a filha do professor, e observei que o fazia acompanhada de uma frase sussurrada ao ouvido, uma frase que assustou a menina, que de pronto acelerou o passo. Tornei a passar, e novamente a mendiga me ignorou. Apareceu em seguida um homem muito bem vestido, e a mendiga não lhe pediu nada, deixou simplesmente que passasse. Mas quando, pouco depois, surgiu uma senhora, quase se jogou em cima dela e, com a palma da mão bem aberta, sussurrou-lhe ao ouvido a frase misteriosa, e também a senhora, muito assustada, andou mais rápido. Passou outro homem, e ela deixou que também seguisse seu caminho, não disse nem pediu nada, deixou simplesmente que passasse. Mas assim que apareceu Josefina, a balconista da mercearia, pediu-lhe esmola e murmurou-lhe a frase misteriosa, e também Josefina acelerou o passo.
Estava claro que a mendiga só se dirigia às mulheres. Mas o que dizia e por que só a elas? Nos dias seguintes, aquele enigma me impediu de estudar ou de me refugiar na leitura dos grandes romances. Pode-se dizer que fui me transformando em alguém que, depois de andar sem rumo pelas ruas, andava sem rumo em sua própria casa.
– Mas o que tem te deixado tão ocioso ultimamente? – perguntou- me certo dia a minha mãe, que desde criança me havia incutido a ideia do trabalho, e parecia preocupada com a minha mudança.
– O enigma – disse, e fechei em seguida a porta da cozinha. No dia seguinte, o vento da baía soprava com mais força que de costume, e quase todo mundo se refugiou em suas casas. Eu não. Tinha aprendido a amar a rua e a intempérie, tanto quanto a minha mendiga parecia amá-las. E de repente, como se esse amor compartilhado fosse capaz de gerar acontecimentos, deu-se algo inesperado, algo realmente surpreendente. Passou uma mulher, a mendiga a abordou, sussurrou-lhe ao ouvido a frase terrível, e a mulher se deteve, como se tivesse sido gratamente surpreendida, e sorriu. A mendiga acrescentou então mais algumas frases, e quando terminou, a mulher deu-lhe uma moeda e seguiu tranquila seu caminho, como se nada, como se absolutamente nada tivesse acontecido.
Há um momento na vida em que se oferece a alguém a oportunidade de vencer para sempre a timidez. Eu entendi que esse momento tinha chegado, e me aproximei da mulher perguntando que tipo de história a mendiga lhe havia contado.
– Nada – respondeu. – Um pequeno conto. E dito isto, como se levada pelo vento da baía, dobrou uma esquina e sumiu da minha vista. No dia seguinte, não fui à escola. Às seis da tarde, passei pela porta do Vênus, disfarçado com roupas da minha mãe. Blusa preta transparente, saia azul, botas vermelhas e chapéu branco de aba muito larga. Lábios pintados, uma pinta na bochecha e os olhos muito abertos, redondos como faróis. Se acaso o disfarce não fosse o bastante para a mendiga morder a isca, eu carregava uma bolsa a tiracolo, pendendo de uma longa alça, e um grande pacote de comida na mão esquerda, ainda que sem vidros nem latas, para que pesasse pouco. Levava pãezinhos, pó de café, duas costelas de cordeiro e um saquinho de amêndoas.
Quando fiquei frente a frente com a mendiga, sorri para ela. Respondeu-me no ato com uma gargalhada estridente, os olhos completamente fora de órbita. Seu olhar errante possuía, por mais paradoxal que possa parecer, um grande magnetismo. Eu tinha ouvido falar da Loucura, compreendi que estava diante dela.
– Todas nós somos umas desocupadas – sussurrou-me ao ouvido, enquanto estendia a palma da mão direita. Nessa mão havia uma moeda antiga, uma moeda já fora de circulação. E era antigo também o ritmo dos pés descalços da mendiga. Fiquei meio paralisado, e ela prosseguiu assim:
– Não é verdade que para nós sobra todo o tempo do mundo?
Escute, então, a minha história. O vento golpeou meu rosto no instante em que notei que minhas pernas tremiam, e este vento me trouxe o eco da gargalhada estridente, pareceu-me então que o olhar da mulher, inquieto, olhar magnético e de espelho, tentava se apoderar de mim, e então deixei a bolsa e o pacote de comida na calçada, e já não quis ouvir mais nada, não quis ouvir conto nenhum.
Tirei as botas e fugi dali a toda a velocidade. Fugi apavorado porque de repente entendi que tinha acabado de ver com toda a nitidez o rosto daquele mal que assolava as ruas da cidade, e que meus pais, em voz baixa e cautelosa, chamavam de vento da baía, aquele vento que a tantos enlouquecia. Ao chegar em casa, troquei rapidamente de roupa, comi com gosto depois de muitos dias, e às sete em ponto já estava estudando.
Disse a mim mesmo que voltaria a ficar muito ocupado e que, depois do estudo e do jantar, me entregaria, com o mesmo fervor de antes, à leitura daqueles grandes romances que nas noites de inverno me deixavam sem dormir. Mas agora não os temia, porque sabia que lá fora, para além da janela do meu quarto, no Paseo de San Luis, com todo seu horror, mas também com todo o seu fascínio, o vento, o vento da baía, seguiria soprando com força.
Naqueles dias era raro que me queixasse de algo. Diferente de agora, que não paro de reclamar. Às vezes, penso que não deveria reclamar tanto. Afinal, as coisas vão bem para mim. Ainda sou jovem, tenho ou conservo certa facilidade para pintar os quadros em que evoco histórias de minha infância, possuo uma sólida reputação como pintor, tenho uma mulher bonita e inteligente, posso viajar para onde bem entender, amo muito minhas duas filhas e, enfim, fica difícil encontrar motivos que me façam infeliz. E no entanto, é assim que me sinto. Sigo por aqui, pela Estufa Fria, feito um vagabundo, enquanto me assalta sem parar a tentação do salto, aqui em Lisboa, nesta cidade tão cheia de lugares bonitos para lançar-se ao vazio, e onde meu olhar se tornou tão errante como o da mendiga de minha infância, nesta cidade em que hoje acordei chorando agachado num canto sombrio do meu quarto de hotel.
Nesta cidade tão distante da minha, hoje acordei chorando sem saber por que, talvez por causa daquele quadro, que há tanto tempo resiste a mim, aquele quadro que volta e meia começo, mas que não consigo terminar nunca, e que evoca um velho ritmo de pés descalços, o ritmo da mendiga do Vênus que, uma semana depois e para o meu espanto, reapareceu no ritmo dos pés desnudos de Isabelita, a criada que ia buscar o Horácio Vega no colégio. Lembro muito bem dela, perfeitamente uniformizada, mas com os sapatos sempre na mão, como se tivesse acabado de sair de um exaustivo baile no palácio, como se quisesse imitar minha mendiga, ou talvez eu mesmo no momento de sair correndo, apavorado e com as botas na mão, por causa do maldito vento da baía. É assim que me lembro dela, lembro dela muito bem, mas jamais pude acabar de pintá-la. Ela sempre me escapa com seu ritmo antigo nos pés descalços, e talvez por isso (porque não encontro outra explicação para esta angústia que me domina) sigo triste e melancólico pela Estufa Fria, feito um vagabundo, enquanto trato de afastar essa tentação que me assalta sem piedade, a tentação do salto.
Vou andando feito um vagabundo, e de vez em quando vejo minha silhueta fugidia refletida nas vidraças, enquanto penso que, na vida, a vida é inalcançável. A vida está tremendamente por baixo de si mesma. Não existe, além disso, a menor possibilidade de se alcançar a plenitude. E é ridículo ser adulto, e absurdo que ainda haja quem diga se sentir cheio de vida. Tudo é penoso, é impossível negar. Se ao menos me restasse a esperança de algum dia conseguir terminar o quadro que tanto resiste a mim, o quadro em que Isabelita salta sobre o gramado do campo de futebol do colégio, perfeitamente uniformizada, deixando-se levar por um ritmo que é tão antigo como antigas são nossas silhuetas fugidias…
Faço mal em me enganar. Na verdade, eu não valho nada. Não valho nada, e, além disso, não pinto. Jamais pintei um quadro. É verdade que ainda sou jovem, que tenho uma mulher bonita e inteligente, que posso viajar para onde bem entender, que amo muito minhas duas filhas, mas tudo isso é tão certo quanto o fato de que nunca pintei nada, nem um quadro sequer. Talvez por isso agora ande triste pela rua Garrett, feito um vagabundo e pintando (apenas mentalmente e sem nunca conseguir terminar) certas lembranças de infância. Acho que se Horácio Vega, meu amigo Horácio, que agora deve estar em seu escritório, pudesse me ver, riria com todas as suas forças. Já nos dias de colégio costumava censurar minha tendência a nunca acabar nada.
– Nem os gibis – me dizia. – Você nunca termina nada do que vejo começar.
E não lhe faltava razão. Inclusive quando eu tentava responder a esse comentário, nunca terminava a frase. Horácio me impunha certo respeito, porque parecia um menino velho e sábio, e em muitas ocasiões falava como se fosse um adulto. Um fim de tarde, enquanto eu olhava para a lua que surgia num canto do pátio do colégio, ele me disse:
– Você foge da plenitude.
Não entendi nada do que me dizia, mas isso não era novidade, também não entendia quando me falava do seu avô Horácio, que tinha sido um intrépido capitão de navio. Para me contar as histórias do avô usava uma linguagem obscura, extremamente difícil. Às vezes, como não entendia muito o que dizia, eu pensava no meu avô, que havia sido simplesmente um fiscal da fazenda e um aficionado em tomar aperitivos ao meio-dia. Um homem comum, diferente do avô de Horácio, que se lançou à vida em mil aventuras. Não o entendia quase nunca, mas sempre disfarçava, para que não me censurasse por não estar à altura de sua linguagem. Não queria perdê-lo como amigo. Por isso me preocupei na tarde em que, à saída do colégio e diante de Isabelita e alguns companheiros, começou a recriminar minha fuga da plenitude. Tê-lo feito publicamente me levou a pensar que havia sido descoberto, e que aquele era o castigo que eu recebia por fingir sempre entender suas palavras.
Pensei que tudo aquilo era uma questão entre nós dois, que não dizia respeito aos companheiros (todos riam e pareciam estar do lado de Horácio) nem a Isabelita. Decidi segui-lo para o caso de em algum momento (era bastante improvável, mas não custava nada tentar) ele ficar sozinho e eu poder então abordá-lo, manifestar-lhe meu desgosto por seu comportamento. Sem que se desse conta, fui atrás de seus passos, segui-os, ele e Isabelita, até a parte mais alta do Paseo de San Luis, onde ficava sua casa.
E tive sorte, porque durante alguns minutos ele ficou sozinho. No momento em que ela o deixou na rua para entrar na tinturaria (da qual hoje sou o proprietário), avancei por trás dele o mais silenciosamente que pude e, derrubando a sua pasta escolar com um chute colossal, não sabendo o que dizer, tratei de intimidá-lo com estas palavras:
– Você, sim, é que foge da plenitude.
Levantei os punhos, pois mesmo que não descartasse que o fator surpresa estava inicialmente a meu favor, esperava que, cedo ou tarde, ele reagisse com um tapa ou talvez apenas com uma displicente e humilhante careta de indiferença. No lugar de tudo isso, deparei-me com um Horácio desconhecido, um Horácio subitamente abatido, entristecido e mais velho do que nunca, a cabeça baixa, como se minhas inconscientes palavras tivessem tocado a fibra mais funda e, ao mesmo tempo, mais dolorosa do seu ser. Foi uma sensação estranha porque, ao ver aquele menino velho ferido profundamente por minhas palavras, descobri existirem frases que não eram inocentes, por mais vazias que parecessem; havia frases que possuíam, às vezes sem sabê-lo, agressividade. Acreditei ter certeza disso nos dias seguintes, nos quais Horácio não parou de me torturar, sem dúvida como vingança, com todo o tipo de frases que giravam em torno das aventuras de seu avô, frases que compunham histórias malaias, chinesas, polinésias. Eu suspeitava que todas essas histórias tivessem uma agressiva mensagem secreta. Talvez dizer-me que seu avô tinha conhecido a plenitude? Mas o que havia por trás dessas palavras que parecia afetá-lo tanto? Suas histórias tinham um final que inexoravelmente era sempre o mesmo, um desfecho que parecia exigir de mim uma pergunta imediata, que eu resistia em formular.
– Os últimos minutos da vida do meu avô – dizia-me Horácio
– foram os mais intensos de uma vida intensa.
– E o que aconteceu nesses minutos? – supunha-se que eu devia
perguntar. Mas não o fazia. Estava bastante atormentado com tantas histórias do avô. Mas era contraproducente não perguntar, porque então o mais habitual era que voltasse à carga com uma nova aventura do avô. Acabou conseguindo que eu perdesse a paciência, e uma tarde impedi sua passagem num canto do pátio quadrangular do colégio, dizendo-lhe:
– Vamos acabar com isso, acho que já deu. Se o que você queria era me atormentar, é claro que conseguiu. Vamos acabar com isso de uma vez, me conta como o seu avô morreu, a vida dele eu já sei de cor, me conta agora esses minutos finais tão intensos da vida dele.
– Sério? Quer que eu conte mesmo? – me perguntou enquanto lançava um olhar terrível, como se fosse um crime que naquele pátio, onde só se respirava um tédio profundo, eu lhe exigisse (precisamente eu, que nunca terminava nada) completar um quadro, a história da vida de seu querido avô. Aguentei seu olhar o quanto pude, até que, com uma voz inesperadamente compungida, ele me contou de uma vez que seu avô, no fim de seus dias, caiu vítima de uma paralisia, e num domingo, enquanto todos estavam na missa, depois de uma trabalhosa tentativa ao longo de minutos intensos, conseguiu afinal colocar na boca o cano de uma escopeta e se matar com o polegar do pé direito.
Era a primeira vez que ouvia falar de um movimento que às vezes se produzia no homem e que se chamava suicídio, e lembro que me chamou a atenção o fato de ser um movimento solitário, afastado de todos os olhares, perpetrado na sombra e no silêncio. Recordo que ficamos os dois em silêncio naquele dia, Horácio e eu, como se estivéssemos pensando em todos aqueles que, afastados de todos os olhares, haviam perpetrado o movimento solitário e conhecido a única plenitude possível, a plenitude suicida. E recordo também que o pátio ficou abandonado como uma eternidade quadrangular.
Estou num espaço quadrangular, de madeira torneada e brilhante, sólido como um móvel antigo, com bancos ao longo das paredes e, nestas, anúncios emoldurados que falam de lojas de tecidos, de tinturarias ou cabeleireiros. Observo que falta um anúncio, algum vândalo deve tê-lo arrancado da moldura. A sensação é desanimadora, porque está claro que, mesmo se quisesse, jamais poderia ler a totalidade da atrativa publicidade deste cômodo que agora lentamente começa a
subir pelos ares. Estou no Elevador de Santa Justa, e sei o que me espera quando terminar a subida. Estarei em um grande terraço e diante de uma esplêndida vista do ar azul que envolve a cidade baixa, vista que tampouco alcança a totalidade (neste caso, a totalidade da cidade baixa), pois é parcialmente impedida por uma rede metálica que prolonga o parapeito do terraço até uma altura que torna impossíveis (e creio que isso me convém) os suicídios daqueles que, como é tão habitual aqui em Lisboa, sentem a tentação do salto. Penso em toda essa gente que há pouco vi praticar a saudade * no Campo das Cebolas. A cidade inteira está cheia de solitários dominados pela nostalgia do passado. Sentados em cadeiras públicas, que nos mirantes ou nos píeres a prefeitura dispôs para isso, os praticantes da saudade calam e olham a linha do horizonte. Parece que estão esperando algo. A cada dia, com perseverança admirável, sentam-se em suas cadeiras e esperam enquanto evocam os dias do passado. Isso que eles têm é melancolia, uma certa tristeza leve.Penso neles agora, enquanto digo a mim mesmo ser ridículo que eu ande por aqui desolado quando, entre outras tantas coisas, ainda sou jovem, dono de uma próspera rede de tinturarias, tenho uma mulher bonita e inteligente, posso viajar para onde bem entender, atraio facilmente as mulheres de que gosto, amo muito minhas duas filhas e tenho uma saúde de ferro. Não, não parece razoável queeu vá agora por aqui, por entre os jacarandás do largo do Carmo,dominado por lembranças de infância e deixando atrás de mim um rastro inesgotável de tristeza leve.
Lembro do dia em que vi, estacionado na frente do colégio, o imenso automóvel de um pai que sempre me disseram não existir. No conversível, os assentos de couro vermelho brilhando ao sol me deslumbraram. No pai de Horácio, tudo me deslumbrou: a altura extraordinária e a corpulência, o chapéu marrom, os óculos pretos, o terno listrado, a gravata de seda, o bigode desafiador e, sobretudo, o fato de existir. Horácio sempre havia dito que seu pai tinha desaparecido nos porões da cidade de Beranda.
– Reapareceu, é isso que importa. Veio liquidar um grupo rival
– Horácio me explicou de modo sucinto.
Parecia-me cada dia mais difícil acreditar em qualquer coisa do que Horácio me dizia, mas preferia ficar quieto, por medo de estar enganado e fazer papel de ridículo e, ainda por cima, de não poder subir nunca no automóvel interminável. Durante duas semanas, o pai nunca faltou ao encontro com o filho à porta do colégio. No lugar dos pés descalços de Isabelita aparecia o couro vermelho dos assentos brilhando ao sol, o gigantesco conversível. E eu ficava extasiado diante daquele espetáculo que oferecia o monumental pai de terno mafioso com listras e gravata de seda.
Ao longo de toda a primeira semana, o pai caminhava de um jeito firme e seguro. Mas na segunda, já desde a segunda-feira, o passo do pai se tornou vacilante e algo temeroso. Nesse dia todos pudemos observar a presença de um estranho. A certa distância do conversível, estacionou sigilosamente uma moto conduzida por um espião louro de cabelo muito curto e olhos azuis esbugalhados que olhavam para o conversível. Não tardou e começamos a importunar o espião, e na terça nos atrevemos inclusive a invadir-lhe o sidecar.
Na quarta-feira, como era previsível, se cansou de nos suportar.
– Vocês vão ver o que é bom – nos disse, levantando a mão em um tom muito feroz e ameaçador, e parecia que falava com sotaque berandês. Nesse mesmo dia, Horácio afinal me convidou a subir no conversível de seu pai. Levaram-me até minha casa. Do assento traseiro do carro, o Paseo de San Luis assumia outra dimensão, parecia diferente. O pai não falou nada em todo o trajeto, mas de vez em quando me vigiava através do retrovisor, e logo ajeitava o chapéu. Num semáforo, em frente ao cine Vênus, acendeu um cigarro, e riu sozinho. Eu estava um pouco assustado quando chegamos em casa. Desceu cerimoniosamente do carro e abriu a porta traseira. Com inesperada cortesia, tirou o chapéu, inclinou a cabeça e me disse:
– Adeus, senhor.
Eu deduzi que era um pai preocupado. No dia seguinte, atribuindo a conduta do pai à presença da moto, fiz circular o rumor de que uma gangue berandesa se propunha a sequestrar Horácio, e que seu pai ia diariamente ao colégio para protegê-lo.
– Não devia ter espalhado essa bobagem. Além disso, Beranda não existe – Horácio me disse na sexta-feira, e achei-o muito mudado, como se algo andasse muito mal em sua vida. Não havia sinal do seu habitual senso de humor. Essa sexta foi o último dia em que vi o pai de Horácio. No dia seguinte, uma fria segunda-feira de janeiro daquele ano ímpar, não havia mais conversível à saída do colégio, nem moto de espião, nem nada. Toda a cenografia berandesa tinha desaparecido, e só se podia ver numa esquina Isabelita, com cara de preocupada, aspecto de gripada, e com os sapatos calçados. Aproximou-se de Horácio, sussurrou-lhe algo ao ouvido, e o levou sem dizer nada. Na manhã seguinte, sob uma chuva torrencial, entramos no colégio pela porta da igreja. Às terças havia missa obrigatória, e foi nessa missa que nos disseram, do púlpito, que o pai de Horácio também se chamava Horácio, que tinha quarenta anos e que já não pertencia ao mundo dos vivos, pois descansava em paz, tinha morrido.
– Adeus, senhor – eu disse, e fiz o sinal da cruz.
Lembro que não parou de chover o dia inteiro, e que pelo colégio circulou em voz baixa todo tipo de versão sobre aquela morte, cada uma mais arrepiante do que a outra, e que o único ponto em comum era que o pai de Horácio tinha sentido a tentação do salto e se lançado ao vazio da parte mais alta da Torre de San Luis. O professor de redação, um homem irritadiço e sem piedade, me contou o resto. Não havia um só professor do colégio que conseguisse despertar meu entusiasmo, mas, dentre todos, o mais odioso e lamentável era o raivoso professor de redação, que perdia a compostura ao menor pretexto e nos insultava com apaixonada maldade. A profunda aversão que me produzia foi a que me levou a falar com ele, convencido (e não me enganei) de que era a pessoa certa para me contar a crua verdade, a verdade que se escondia para o resto dos meus companheiros. Ele gostava de praticar o mal, e em mim viu uma ocasião inigualável de poder fazê-lo. Nunca imaginei que, ao me dirigir a ele, agi de forma inocente, mas sim guiado pela intuição de estar no limiar de uma emoção que podia ser bem forte. Contou-me que há apenas duas semanas o pai de Horácio tinha recebido alta do manicômio. Permitiram que recuperasse o automóvel comprado outrora em Caracas, mas ao mesmo tempo o submeteram a uma rigorosa vigilância para assegurar plenamente que o vento da baía já não exercia nehuma influência sobre ele. O espião da moto não era mais que um médico do manicômio de quem se esperava o veredicto final. Diante do acontecido, o único veredicto que podia confirmar era que, mantendo-se fiel a uma arraigada tradição familiar, o pai de Horácio tinha trocado o vento da baía pelo suicídio.
– Não me parece agradável – disse o professor de redação – evocar a interminável nota necrológica da família de suicidas a que pertence o seu amigo Horácio. Porque ainda que seja totalmente real, parece inventada, ninguém poderia acreditar nela. Com a história dessa família de suicidas não se poderia jamais redigir um conto convincente, pois há muitos disparos e muitos saltos no vazio, muito veneno, muitas mortes pelas próprias mãos. Não lhe parecia agradável, mas evocou a nota necrológica, desfiando um extenso rosário de calamidades: o tio Alejandro, por exemplo, um irmão do pai de Horácio, havia matado seu melhor amigo numa caçada, e isso o consumiu em tal desespero que, não sabendo mais o que fazer com sua vida, internou-se em um hospital fingindo estar doente e ali roubou uma forte dose de cianureto com a qual se matou. Uma irmã da mãe de Horácio, a tia Clara, pouco antes de abrir o gás, deixou uma carta ao juiz na qual dizia que a impossibilidade de frear o desejo de viver era a causa direta de seu suicídio. A filha da tia Clara, a prima Irene, que queria ser trapezista, acabou escolhendo a Torre de San Luis para, com perícia e grande exibição de arrojo e técnica, dar um triplo salto mortal no vazio, estatelando-se pouco depois no asfalto duro e frio da zona alta do Paseo. Em comparação, o salto do pai de Horácio parecia coisa de amador, um salto bem mais modesto, ainda que sem dúvida mais rápido e direto, talvez porque a vontade de se espatifar contra o solo fosse superior a qualquer outra coisa.
Passaram-se mais de trinta anos desde que o professor de redação me colocou no rastro da terrível história da família de Horácio, e ainda sinto em meus ossos a emoção daquele dia. Agora, enquanto vou ao Miradouro de Santa Luzia, um lugar adequado para o salto no vazio, penso que aquilo foi o mais próximo a uma revolução que jamais senti na própria carne, e que, sem que eu me desse conta, mudou a minha vida. Acho que se meu amigo Horácio, que se rebelou contra seu destino suicida e estará agora tranquilamente em seu escritório, pudesse me ver neste momento, caminhando por aqui feito um vagabundo, riria com todas as suas forças e se perguntaria pelas forças obscuras que me levaram a assumir como minha a trágica história de sua família, que me levaram a ser todo melancolia, uma tristeza leve – dizem que a nostalgia é a tristeza que fica mais leve – quando evoco aquelas jornadas nas quais descobri que, na vida, a vida é inalcançável, que a vida está por baixo de si mesma e que a única plenitude possível é a plenitude suicida.
Mas não saltarei no vazio, amigo Horácio. Vou deixar que me invada toda essa tendência a recuperar a infância, toda essa nostalgia por um passado que, à medida que me aproximo do Miradouro de Santa Luzia, percebo ir conciliando com o presente, até o ponto de ter a impressão de não estar retrocedendo no tempo, mas quase a eliminá-lo. Vou me sentar para esperar, haverá uma cadeira para mim nesta cidade, e nela poderei ver todos os entardeceres, calado, praticando a saudade, o olhar fixo na linha do horizonte, esperando a morte que já se desenha em meus olhos, e que aguardarei, sério e calado, todo o tempo que for necessário, sentado diante deste infinito azul de Lisboa, sabendo que à morte lhe cai bem a tristeza leve de uma severa espera.
* Em português no original. [n.e.]
VILA-MATAS TRAÇA ITINERÁRIO IRÔNICO PELO SUICÍDIO
O autor catalão parte da obessão pela ideia de se matar para construir histórias marcadas pelo humor, pelo absurdo e pela adrenalina
Suicídios exemplares é o quinto livro do catalão Enrique Vila-Matas publicado pela Cosac Naify. Foi escrito em 1991, antes de Bartleby e companhia e O mal de Montano, mas antecipa temas que se tornaram tipicamente vilamatasianos: a atração pelo nada, por desaparecer, as referências literárias, o humor, a febril imaginação.
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Ao contrário do que acontece nas páginas de um Juan Carlos Onetti, com sua quantidade verdadeiramente prodigiosa de suicidas, os personagens que nos guiam pelos dez contos de Suicídios exemplares não se matam. Em Onetti, há também os derrotados que escapam do suicídio por meio da fantasia – personagens que, nas palavras de Vargas Llosa, “inventam para si mundos puramente imaginários nos quais se refugiam e conseguem sobreviver”. No livro de Vila-Matas, no entanto, o que afasta a tentação do suicídio é, paradoxalmente, a obsessão pela ideia de se matar. Parece irônico, e é.
Se em O mal de Montano “as doenças são chaves que podem nos abrir certas portas”, aqui é a ideia do suicídio que tem este poder. No conto “Rosa Schwarzer volta à vida”, a protagonista, uma funcionária de museu que leva uma vida monótona, passa o tempo todo imaginando modos de morrer: cometer haraquiri, envenenar-se, atirar-se na frente de um carro. Precisa percorrer este itinerário sombrio, o de um mundo que não lhe parece suficiente, para no fim afastar a ideia de se matar e “voltar à vida”.
O personagem de “Morte por saudade”, por sua vez, lembra de quando, na infância, ouviu falar pela primeira vez “de um movimento que às vezes se produzia no homem e que se chamava suicídio” e de como isso o acompanhou por toda a vida. “Em busca do parceiro eletrizante” é a história de um ator decadente que sai à procura de um parceiro para formar uma dupla cômica e voltar a fazer sucesso. Mas descobre que o tal parceiro ideal morreu, só lhe restando o suicídio, para conseguir formar, no além, a incrível parceria. Há contos passados em ilhas inventadas, histórias em que o protagonista morre às vésperas de se suicidar, tramas que se desenrolam em uma sociedade secreta de suicidas.
Por meio de implacável ironia e histórias cheias de ação, Suicídios exemplares comemora e celebra a vida ao perder-se no labirinto do suicídio. O que prevalece na obra, além da grande imaginação, são o humor, a sutileza, a inteligência. “Sofisticada ou impulsiva, ponderada ou captada no ar em um instante de tédio, a ideia do suicídio aqui nunca é um signo de derrota”, escreve o argentino Alan Pauls no texto de apresentação desta edição. “É um princípio de potência: algo na vida range, se abre e começa a ser possível quando as criaturas que povoam estas páginas se deixam possuir pela ideia
de se matar.”
• "Morte por saudade", primeiro conto de Suicídios exemplares [PDF]
• Três perguntas para Enrique Vila-Matas
• "A deliciosa e absurda toxicidade estética criada por Vila-Matas", por Alan Pauls
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