domingo, 30 de março de 2008

Eventos abriram novos caminhos







Manifestações de Praga, Paris e México facilitaram consolidação da democracia




Ubiratan Brasil




O escritor Carlos Fuentes viveu de maneira intensa a primavera européia de 1968. Em maio, presenciou a revolta dos estudantes franceses contra o conformismo, saindo às ruas armados de tinta e pichando os muros de Paris com dizeres diversos, como ''A política está na rua'', ''Consumidores ou participantes?'' e ''O álcool mata. Tome LSD''. Meses depois, ele viajou ao lado de Gabriel García Márquez e Julio Cortázar até Praga, na antiga Checoslováquia, para visitar Milan Kundera. Lá, dias antes, manifestantes enfrentaram os invasores soviéticos, buscando humanizar o comunismo. Finalmente, em dezembro, comoveu-se, a distância, com a decisão do governo mexicano em atirar contra estudantes em uma manifestação - o ''massacre de Tlatelolco''.Três eventos de grande importância ocorridos em um mesmo ano. ''1968 é um desses anos-constelação nos quais, sem razão imediatamente explicável, coincidem fatos, movimentos e personalidades inesperadas e separadas no espaço'', conta Fuentes, que uniu seus relatos pessoais, escritos no calor da hora, e formou o livro Em 68, que a Rocco lança nesta semana.Ele conta que, na França, presenciou a insatisfação da juventude parisiense com a ordem conservadora, capitalista e consumidora, que havia esquecido a promessa humanista de luta contra o fascismo. Já a Primavera de Praga não combatia o sistema comunista - humanizava-o, democratizava-o e socializava-o. E o movimento mexicano de 68, no qual o governo de Diaz Ordaz reprimiu violentamente os estudantes em Tlatelolco, representou uma ruptura flagrante entre a legitimidade revolucionária como fundamento de todos os governos.''Mas, como o maio parisiense, a Primavera de Praga e o ano 68 mexicano sofreram uma derrota de Pirro, ou seja, derrotas aparentes cujos frutos só puderam ser avaliados a longo prazo: derrotas pírricas, vitórias adiadas'', comenta Fuentes, que conversou com o Estado por telefone. ''Os caminhos da democracia e da crítica social se abriram graças aos movimentos de Paris, Praga e México.'




'Ainda há muito que se falar sobre os movimentos de 1968?


Sim, mesmo passados 40 anos. O mundo mudou muito, mas uma simultaneidade de eventos marcou aquele ano: Paris, Praga, México e também em Chicago, onde houve eleições. Eventos cruciais como os de 1848, quando revoluções de ruptura entre burguesia e proletariado se estenderam de Paris a Budapeste. Foi essa simultaneidade que me motivou a escrever esse livro.




E são mesmo derrotas pírricas?


Sim. Na França, em 68, desapareceu o velho partido socialista de Guy Mollet. O mesmo aconteceu com Suécia e Argélia. Com isso, abriu-se caminho para um novo socialismo encabeçado por François Mitterrand. Em Praga, a reação à ocupação soviética provocou uma série de movimentos que resultou na queda do muro de Berlim, em 1989, e no fim do poder da União Soviética. E, no México, graças ao sacrifício do movimento estudantil, derrotado naquele ano, abriu-se caminho para a atual democracia mexicana, que certamente não existiria sem os acontecimentos de 68.




Portanto, foram movimentos que, embora derrotados, trouxeram muitos benefícios para a humanidade.Em sua opinião, a história se repete ou se refaz?


Não acredito que se repita nunca. A história é um evento contínuo, mas sempre único. É um engano pensar que haja repetição.E o que alimenta uma mudança: a nostalgia ou a esperança?Falamos aqui de duas utopias. Uma é regressiva, que busca a sociedade perfeita. É aquela pregada por D. Quixote aos pastores, a de Ovídio, para quem as pessoas se amam sem conflito ou guerra. E a outra é a utopia do futuro, que busca uma sociedade ideal. Mas creio que não passam de utopias - nossa preocupação tem de ser com o presente, no qual está o passado (nossa memória) e o futuro (nosso desejo). O tempo de se realizar algo é sempre o agora, considerando que a história não é simplesmente uma coleção de fatos, mas um horizonte de possibilidades.




É possível combater a injustiça sem que isso provoque mais injustiça?


Creio que não se consegue a justiça de forma absoluta, instantânea. Veja o caso da eleição americana, na qual hoje uma mulher e um negro disputam a candidatura do Partido Democrata. Isso seria inconcebível antes, não fosse a histórica luta dos negros por seus direitos civis - os mesmos que, nos séculos passados, foram açoitados, sodomizados, jogados ao mar, mortos de fome. E também pela luta das mulheres, que só tinham a possibilidade de ser donas de casa e conquistaram seus direitos pouco a pouco, não de maneira radical. Creio que a atual situação americana é bem ilustrativa. Trata-se de um país cuja independência veio com uma revolução colonial, que não equilibrou os direitos entre homens e mulheres. Houve uma guerra civil para emancipar os negros, seguido da luta pacífica de Martin Luther King. Processos pelos quais se acumulam direitos - às vezes com violência, outros politicamente, mas em luta constante para, ao menos, garantir a manutenção desses direitos acumulados. Ou seja, embora os ideais mais utópicos tenham sido derrotados, o que se conseguiu foi uma sociedade mais democrática?Com certeza. Temos vitórias parciais que são mais importantes que derrotas. O direito da mulher, a emancipação do negro, a defesa do meio ambiente, a defesa pela alimentação são alguns trunfos. Não viveremos sem problemas, é certo, portanto, temos de nos socorrer nas soluções do passado para imaginar como resolver.Ainda é possível dizer que vivemos sob os ares de 1968?Não, de forma nenhuma. Como disse antes, a história não se repete. O correto é analisar esse fato passado para descobrir o que não conseguimos conquistar naquele momento. Para isso serve a comemoração destes 40 anos - e não a celebração de vitórias particulares.




E o que dizer hoje da frase de Milan Kundera, uma visão bem pessoal do mundo, segundo a qual ''o totalitarismo é um idílio''?




É verdade, porque o idílio vive pouco. O próprio Kundera foi membro do partido comunista checo e viveu os momento que descreve em seus romances. Para o jovem saído da 2ª Guerra Mundial, a liberdade era conquistada via comunismo. Mas logo se percebeu que isso duraria pouco. A lição que fica é a seguinte: não podemos confiar em idílios.






Dez Dias Na Paris DE Maio De 1968:



10 Paris amanhece com o grafite "É proibido proibir - Lei de 10/5/1968", em resposta à inscrição "É proibido colar cartazes - Lei de 29/07/1881", afixada nos muros da cidade. À noite, 20 mil estudantes enfrentam a polícia, episódio que ficou conhecido como "Noite das Barricadas".



13 Estudantes e trabalhadores franceses decretam greve geral de 24 horas em Paris, protestando contra políticas trabalhistas e estudantis do governo.



14 A Sorbonne, que havia sido reaberta pelo presidente Charles De Gaulle no dia 11, é ocupada por estudantes.



17 Cerca de 100 mil grevistas ocupam fábricas francesas; aeroportos e a Rádio e Televisão da França são afetadas. 60 mil policiais vigiam as ruas de Paris.18 Em apoio aos estudantes, Louis Malle, François Truffaut, Roman Polanski, Alan Resnais e Milos Forman retiram seus filmes do Festival de Cannes, que acabam sendo cancelado.



20 Seis milhões de grevistas ocupam 300 fábricas na França; Paris amanhece sem metrô, ônibus, telefones e outros serviços.



21 Trabalhadores ocupam centrais de energia elétrica e luz em Paris.25 George Pompidou, primeiro-ministro francês, inicia negociações com centrais sindicais que já contabilizam 10 milhões de grevistas por todo país.



29 Cerca de 200 mil pessoas fazem passeata por Paris; confronto entre estudantes e policiais é filmado por Jean-Luc Godard.30 Charles De Gaulle, presidente da França, dissolve a Assembléia Nacional e convoca eleições gerais, com o apoio das Forças Armadas.
EM 68
'Em 68' é um livro em que Fuentes compila três textos seus sobre a época, escritos no calor dos acontecimentos ou pouco depois. O autor joga luz sobre seus testemunhos do Maio de 68 parisiense, da Primavera de Praga e do massacre da Plaza de las Tres Culturas, no México. O autor foi testemunha ocular dos conflitos que tomaram Paris em maio daquele ano. Fuentes também presenciou discursos informais de Jean Paul Sartre, sobre como a Europa havia esquecido a promessa humanista de luta contra o fascismo. E participou dos debates que dominavam os cafés parisienses, com dezenas de jovens a insuflar a revolução.

Nenhum comentário: