por Guilhermo Bazárov de Mont Serrat
Esta é a História de um cadáver. Esta é a história de uma decomposição, espiritual, permanente e definitiva. Esta é a história de minha decomposição. Não sei mais ao certo quando e por que, pois não tenho mais a percepção do tempo e de qualquer causa. Porém, mesmo assim sem ver, pois que já não tenho olhos, a muito já devorados, eu ainda vejo algum fragmento do que é, e do que somos. O mundo todo se evaporou ou se tornou apenas uma projeção minha. Não sei ao certo. Tudo está para mim deveras confuso, estranho, complexo, pois sinto os vermes corroerem-me as entranhas e as carnes. Meus ossos, portanto, restam duros, firmes, e meus cabelos tontos ainda crescem. Sou um cadáver exposto que permanece insepulcro. Em minha volta os plásticos pretos aos montes que se multiplicam e toneladas de lixo, fruto da pestilência nojenta da raça humana sonham. Sonham. Outra raça, humana-verme, a correr as entranhas desta terra toda.
Portanto, entretanto, e talvez, eu ainda sou parte desta nojenta e destrutiva raça. Mesmo que cheio de vermes, picado e em clara decomposição. Mas meus olhos quando vivos eram suaves – como os teus-, lívidos de qualquer dor, cheios de amor, e, além disso, posso dizer, todos podem dizer, que eu fui. Fui no sentido mais prosaico e comum que a sociedade humana costuma considerar SER. Eu fui, cresci, cumpri as etapas lógicas de um desenvolvimento saudável. Casei-me, sorri, acumulei. E Fui além, feliz como nos filmes de televisão – até o ponto em que o álcool me permitia, e que bolas, ilusões e barbiturigos garantiam. Mantive-me correto, dentro da normalidade e do jogo. Tive filhos, casei, acumulei, leguei minha feliz miséria para outros, e para além. Geneticamente fui um vencedor, socialmente fui e tive, portanto, e, porém, como cadáver eu sou uma lástima. Pois permaneço. Cadáver insepulcro, e por isso tão sujeito às instabilidades e questionamentos – seriam os vermes ou as bicadas dos pássaros. Vermes podem nos fazer pensar. Suar. Não sei por que assim permaneço, para cumprir algum desígnio tolo da morte-vida ou vida-morte, ou apenas por falta de qualquer razão humana ou divina. Bem, como cadáver, confuso, e tolo, não acredito mais em Deus. Mesmo que em vida eu estivesse rezando e ajoelhado diante de Deus. Eu nunca acreditei. E mesmo assim, agora, apesar da insistência dos vermes que corroem minha linda e sagrada carne, minha consciência permanece lúcida e lívida. Meus vermes são meus vermes, espiritualmente parte de minha carne, contudo em nada são parecidos comigo, conosco. Eles apenas mastigam, mastigam e mastigam. São daquele tipo de verme mais comum, normais e integrados, sem nome, sem rosto, porém eficientes em sua programação, como um dia eu fui ou ainda serei. São eles, os vermes, as mulas de deus? Não sei. São mulas do fim? Mas que fim? Se nunca acabam de corroer minha carne. Meu pensar permanece na carne, e, portanto eu ainda os sinto, mastigando meu peito, minhas carnes, minhas pernas... e ainda assim, e apesar disso, sigo tolamente vivo-morto-conciênte. Mas são meus vermes, vermes de minha liberdade de mula, vermes que devem obedecer aos meus tolos e fortes impulsos. Impulsos decompostos. Forças que destroem.
Ok, certo, calma, tudo está bem, basta levantar, fazer, agir, correr, comprar, deixar, levar, e lembrar do que devo fazer. Levantar-me, correr (para manter minha carne continue apresentável e consumível – apenas músculos sem vermes) e rumar aos meus tolos e odiosos afazeres domésticos. Minha mulher me sorri, no canto da cozinha, estende uma xícara de café e ainda vejo a luz que traspassa linda e etérea pelas cortinas brancas...E ela me beija minha boca já sem lábios com seus dentes meio que quase podres e isso lhe faz feliz, pois assim está escrito em sua carne-fêmea-robô, carne de minha carne, em nossa união sagrada e solitária que se frutifica em filhos – tão brutos, lindos e miseráveis - como eu, como ela, são automáticos e escravos - como todos nós... como todos vocês. Mulas da dor, mulas do aniquilamento. Todavia eu, assim como vocês, não me arrependo, mas me assusto; ainda escuto ainda aquela musiqueta tola e perturbadora no rádio, que me dá/dava/é um aperto no peito a me dizer: “Tolo, tolo, tolo... Que vida tola, que existência fátua. Que ódio enorme e violento! Quanto amor sufocado e limitado.” Mesmo assim depois, cheio de culpa, penso/pensava, o que me passa, e dava-me um lexotam para dormir melhor, para ter alguma paz, para não sentir tanto, para sofrer melhor - de forma mais sensata e racional, e administrar minha dor, minhas limitações vivas. “Minha mulher é linda. Minha casa é linda. Tenho, Temos tudo. Meus filhos são lindos... eu sou... forte e belo, e logo serei rico e eterno,... para logo assim, tolamente, esvaecer-me no torpor piedoso cheio de vagas negras, que a química industrial do lexotam me permitia (permite?). A salvação espiritual e profunda em cápsulas...(quanta ironia: o que destruiu a igreja foram cápsulas de pó.). Bem. Por momentos. Instantes, mergulhando na escuridão branda e suave para me salvar das perguntas, das razões e, principalmente, do amor/ódio intenso e imenso que ainda me amarga adoça a boca De vermes e de vapores fétidos.
Estou louco ou morto. Ou tanto faz, desde que eu não pense tanto. Nas dores e no tempo. Ainda lembro a senha do banco, ainda penso em transferir algum investimento. Mas tenho que trabalhar uma pouco mais, afastar de meu pensamento estes vermes brancos, estes tolos sem rosto, esta coisas de musiquinha tola no canto da cozinha, ou no esquina iluminada de sol aquela lembrança florida e infantil... São estas coisas que me aproximas dos vermes, lúdicas mulas de deus, são estas coisas que fazem lembrar que ainda estou insepulcro. Mesmo sem entender, esta falta de assepsia, e de razão para a quebra de meus contratos, os nossos contratos, empresariais, racionais, sociais – tão familiares e corretos. E aqueles sacos pretos, por todos os lados, na lama, no lixo... não entendia, mas não podia e não consegui ao perguntar-se/me os vermes me comiam as carnes, o tempo e qualquer pergunta. O que fica/ficou foi esse buraco fundo em meus olhos e todos estes plásticos pretos e sujos.
Um comentário:
O mal dos tempos daqueles que estão acordados ou tentando esquecer que estão. Que miseráveis somos! Infeliz condição humana ou tragédia que cultivamos a cada dia?
Salve-se! Não apague o brilho do olhar. Ainda há algo de bonito que merece ser visto por você. Deixe a amargura para os profissionais.
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