Ou ficção de um fique são.
"Iniciei mil vezes o diálogo. Não há jeito. Tenho me fatigado tanto todos os dias vestindo, despindo e arrastando amor, infância, sóis e sombras." (Hilda Hilst)
Também tenho sofrido tanto, chorado daquele tipo de lágrima seca, por causa daquele tipo de dor que não tem nem nome. No entanto, sei que estou pronto; pronto para não ter mais esperança, pronto para não ter mais saudade, e nem desejar um ideal. Decidi abraçar o amor e a vida, hoje e agora. Como já dizia há várias rosas. Albert Camus: “L'espoir, au contraire de ce qu'on croit, équivaut à la résignation. Et vivre, c'est pas se résigner.”
Mas tudo bem, certo, já estou cansado de arrastar uma certa impossibilidade, uma frustrante limitação ao infinito e ao amor que nos cabe. Sei que tudo que quero é o infinito de um sentimento devastador, das bocas entreabertas, dos abismos medonhos e loucos, mas. Porém. É sempre a mesma coisa, quando nos olhamos no espelho e vemos além. Há dias que tenho essa impressão, que me vistes no espelho e disseste tudo aquilo, sobre meus olhos cinzas de gato, sobre o poema de Hilda - há cristais coloridos/ nos teus olhos/ vida viva nos teus dedos.”- e o livro que eu lia (era Niétotchka Niezvânova, não?). Bom, depois você me ofereceu aquele mate, aquele líquido verde e quente que escorria para dentro de mim como um pressentimento, um antegozo amargo do que teríamos, do que seriamos. Você, com teus olhos puxados castanhos-medonhos e eu com seus ecos cinzas e úmidos. Agora aqui pensando, faz-me falta tuas mãos, teus dedos, teu toque. Por que por eles acreditava que tudo seria bom e o bastante, e que a partir daquele gramado verde – um oásis no meio da fumaça cinza – estaríamos a salvo e teríamos tudo aquilo que pensávamos.
Quantas gerações já se perderam desde então. Quantos homens como nós tornaram-se cinzas e tristes, abandonaram suas vidas e tornaram-se cadáveres sem sepulcro.
Mas por que sei disso tudo, sabe das traições e da natureza humana, que tenho que te matar. Pois que mataste em mim a luz que brilha além do que é... São tantas as dores e infernos deste mundo, que hei de evitar que mais um perfídio ser viva. Calma, será devagar, encontrar-te-ei por que ainda lembro do cheiro de tuas pernas, do calor delas em minha cabeça. Não serei cruel, mas o farei por questões metafísicas e justas. Com uma longa e poderosa haxa, picarei-te todo, em pequenos pedacinhos, e livrarei mais uma vez o mundo de um monstro. Não sobraras nada de ti, de teus cabelos ruivos, mas te tratarei com carinho, será devidamente embalado em sacos pretos de devidamente esquecido no fogo de uma fornalha útil e prestativa. Por que estamos condenados a ser livres, eu estou condenado a vingar-me e você a morrer, por que não fostes humano, nem justo, nem fiel. Fostes cruel, traidor e sem ética. Esperarei, em vida ou na morte, o tempo que for necessário, até encontrar-te e fazer-te em pequenos pedaços, como fizestes com meu coração e com minha vontade de viver. A vingança é um prato que se come frio, sim, mas é um preto envenenado que me mata aos poucos, turva-me as vista e me ferve o sangue.
Basta!!! : Isso é apenas uma ficção, um fique são, para que eu me enlouqueça racionalmente na Dinamarca ou em Istambul. Irmão, pois então devo escrever-lhe, para dizer-te que não há nenhuma libertação, nenhuma transcendência, nenhuma amizade, nenhum amor. Tudo é tolo, inútil, nessa vida vã. A única certeza possível é a morte. Mas tudo bem....
Aos que realmente um dia me amaram, perdoem-me, mas a Dinamarca é hoje uma prisão insuportável para mim e já que não posso mais viver, tenho que matar o que fui. Matar aqueles que já foram parte de mim, matar-me, e fugir para onde o amor mundi explique um pouco... Pois que não quero levar esse vento que me assombra, hei de matar-me então, com duas ou três facas. E vários comprimidos. Quero tudo esquecer. Esquecer o que não tem nome.
Minha vingança será protocolar, burocrática e impessoal: não lembrarei, mas de teus atos hediondos, que me mataram um pouco. E eu que já não sou eu, sou outro além e tonto. O que fizestes não tem nome, nem posso escolher palavras para tua traição e monstruosidade, mas estou consciente que és humano como eu, e que o mal que lhe causo hoje nem é mais pessoal: é apenas administrativo e burocrático. Tenho que me vingar, como Hamlet, já que o fantasma de meu pai não se cala. E estou pronto para sacrificar-me burocraticamente à justiça e ao destino. Aceite, pois, o destino que lhe será servido. E que ele seja cheio de sangue e púrpuro, não importa. Ninguém saberá e entenderá do por quê, somente eu e você. Em pequenos pedaços de carne crua, que depois serão devidamente assados, triturados até se transformarem em pó – então: estará feito, ninguém mais, lembrar-se-á de ti, pois que se em vida podia ser insignificante como um verme, morto não será mais que pó, cinza e protocolar. E eu esquecerei de tudo, nem mesmo nas tardes crepusculares de inverno, onde o sol queima de rubio o horizonte, lembrerei de ti, pois que já esqueci até de mim, daquele que fui.
Esta é uma escrita dominada por um automatismo doentio e fóbico, mutável, plasmado com dores, suores e sabores de lítio. – daqueles que já sabem que da raça, ou melhor, espécie humana não se pode esperar muito mais do que traições, intrigas, e cobiças. Mas o não esperar, além de qualquer utopia ou u-cronia é um ato libertador. A pobreza, a solidão, e a dor, como a morte, inexoráveis – devastante-te em ti o que era, mas saiba irmão, que por isso mesmo existe uma saída. Tudo fica mais simples quando não se tem mais esperança na humanidade. Sejamos, só entre nós, sinceros, a humanidade é uma erva daninha e das bem pestilentas, resistente e ao mesmo tempo fraca. Na verdade é resistente justamente por ser fraca, e é sem medida. Esta espécie animal, chamada homem, que caminha em duas patas, é das mais brutais, peçonhenta e traiçoeira que existe. Ninguém pode deixar de constatar, nem mesmo o planeta escapa de sua traição, de seus abusos e de suas violências. A espécie humana, ao contrário do que muitos pensaram não construirá jamais o reino da liberdade e da justiça – pois que é em si mesma sua própria contradição, seu meteorito extintor. Você não fará nenhuma diferença. Eu não farei nehuma diferença. Não se esqueça disso. Ninguém faz nenhuma diferença!
Guilhermo B. de Mont Serrat
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