sábado, 31 de janeiro de 2009
quinta-feira, 29 de janeiro de 2009
O Moderno e suas expressões artísticas
Por Augusto Patrini Menna Barreto Gomes
Bacharel em História (USP), Brasil
« Ceux qui parlent de révolution et de lutte de classes sans se référer explicitement à la vie quotidienne, sans comprendre ce qu'il y a de subversif dans l'amour et de positif dans le refus des contraintes, ceux-là ont dans la bouche un cadavre.» (Raoul Vaneigem, Traité de savoir vivre à l'usage des jeunes générations, 1967)
« Nous avons pris un mauvais tournant monstrueux avec la culture symbolique et la division du travail ; nous avons quitté un lieu d'enchantement, de compréhension et de totalité pour atteindre l'absence que nous trouvons aujourd'hui au cœur de la doctrine du progrès. Vide, et de plus en plus vide, la logique de la domestication, avec ses exigences de totale domination, nous montre aujourd'hui la ruine d'une civilisation qui ruine le reste... », John Zerzan.
Quase todos os conceitos de moderno, mesmo em suas acepções vinculadas à esquerda quanto à direita; guardam uma semelhança, da década de 20 até os anos 80, mesmo que sejam diversos: sua crença no ‘mito do progresso’, no sentido dado por Gilberto Dupas em seu livro “O Mito do Progresso”:
O progresso, assim como hoje é caracterizado nos discursos das elites, não é muito mais que um mito renovado por um aparato ideológico interessado em nos convencer que a história tem um destino certo – e glorioso – que dependeria mais da omissão embevecida das multidões do que da sua vigorosa ação e da crítica de seus intelectuais.1
Penso que o mesmo ponto de visto pode ser mesmo referido aos entendimentos mais antigos, como o moderno, dos modernistas da semana de 222. O termo moderno na década de 20 é dos mais complexos, vale a guisa de abertura citar um dos autores empregados por Nicolau Sevsenko, Rubens Borba Morais:
Os historiadores brasileiros que insistem em buscar no Brasil origens dos Modernistas [têm] uma visão restrita da literatura, não procuram encaixar a produção nacional no panorama mundial de uma época e nos grandes movimentos internacionais de idéias. Sem essa perspectiva o Movimento Modernista fica suspenso no ar, sem raízes, ou tem uma tem uma filiação espúria.3
Assim, fica mais que claro, que para o historiador este historiador, o Movimento Modernista brasileiro está, mesmo em suas vertentes nacionalistas, ou aquelas que buscam um americanismo ou uma certa “entidade nacional”4 (Mario de Andrade), e em suas vertentes mais originais, estava intimamente ligado ao panorama estético e político mundial. É por isso, que Sevcenko se preocupa em estabelecer, em seu livro nexos e nós entre a cena artística brasileira e européia. Além disso, cabe destacar, que ele percebe que mesmo quando se trata de movimentos de ruptura, estes guardam em seu interior estruturas, idéias, perspectivas do tempo em que hipoteticamente foi “rompido”. Parece assim, pois, que mesmo se os manifestos proclamem as rupturas, eles e seus desenvolvimentos guardam parte daquilo mesmo que queriam romper, e isso não os faz menos interessantes, mas ao contrário. Isto é bastante característico quando se fala do movimento modernista, e suas vertentes de esquerda (antropofagia-pau-brasil) e direita (Anta-verde-amerelismo)5, em que ao negarem o passado, torna-se de certa forma passadistas, por resgatarem uma suposta “volta a terra” – que faz eco nos movimentos românticos alemães. Além disso, seu nacionalismo – é por si só uma contradição, já que este é uma idéia “importada”. É claro que seria simplista afirmar isso de uma figura como Mario de Andrade, mas o mesmo não pode ser dito de Oswald de Andrade6, cujos manifestos ou conferências7 assemelham-se contraditoriamente com o futurismo de Marinetti. Por isso, acredito, ser possível estabelecer nexos entre um nacionalismo cultural (se em qual forma – de direita ou de esquerda) com o surgimento do tenentismo, a revolução de 1924 e posteriormente, a revolução de 30 e a instauração do Estado Novo. Acredito que o único modernista8 a perceber isso claramente, foi Mario de Andrade, cujo genial romance Macunaína é prova contraditória, paradoxal e ao mesmo tempo cabal disto9. Na verdade o Modernismo no Brasil, assim como muitas outtras coisas nacionais, sofre de um paradoxo profundo, se por um lado rompeu barreiras para liberdade estética, por outro fomentou, mesmo que indiretamente, o nacionalismo10. Penso que o nacionalismo cultural pode estabelecer uma estrutura simbólica, ou de pensamento, que facilitou e possibilitou, mesmo a sua guisa, a instauração de nacionalismos autoritários – como foi o Estado Novo brasileiro11. Nestes anos, pelo menos em termos artísticos o adjetivo moderno, de acepção em grande parte positiva dizia respeito às produções artísticas pós-impressionismo. No Brasil no entanto, encontrou forte resistência enquanto movimento estético, entre críticos (Monteiro Lobato) e jornalistas vinculados a jornais conservadores como o Estado de São Paulo. A arte moderna, no limite, enquanto vanguarda, foi uma tentativa de passar a fé na razão e no progresso para a arte, e em suas acepções nacionalistas12, uma tentativa de se criar uma “identidade nacional”. Sobre isso, penso que vale a reflexão feita por Adorno:
en tant que
Le Nouveau, en tant que cryptogramme, est l'image de la ruine ; l'art n'exprime l'inexprimable, l'utopie, que par l'absolue négativité de cette image. En elle se rassemblent tous les stigmates du repoussant et du répugnant dans l'art contemporain. Par un refus intransigeant de l'apparence de réconciliation, l'art maintient cette utopie au sein de l'irréconcilié, conscience authentique d'une époque où la possibilité réelle de l'utopie — le fait que d'après le stade des forces productives, la terre pourrait être ici et maintenant le paradis — se conjuge au paroxysme avec la possibilité de la catastrophe totale.1
1 ADORNO, T. Théorie esthétique, Paris: Klincksieck, 2001, p. 57-58.
A segunda geração de modernistas terá sua produção menos marcada pelo adjetivo moderno: Vinícius de Moraes, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Lucio Cardoso, Graciliano Ramos. Já a terceira geração de modernistas (45-78) quase abanou os conceitos de 22, para voltar-se a princípios simbolistas e parnasianos: o grande destaque é Clarice Lispector, entretanto também podemos citar: Ledo Ivo, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Geir de Campos, Ferreira Gullar e Darcy Damasceno. Os anos 20 também tiveram como um aspecto do moderno o começo do entusiasmo cego – um otimismo cego14 - com a indústria e o progresso, e que no caso de São Paulo significou políticas urbanas excludentes e que favoreceram o crescimento desordenado da cidade.
Já sob o Estado Novo moderno significou a implantação de indústrias de base (CSN, Companhia do vale do Rio Doce, FNM, etc e a Petrobras em 53 – em princípio com o nacional-desenvolvimentismo de cunho autoritário e centralizador. Em termos de manifestações culturais foram promovidas manifestações cívicas e “manipulações”, cerceamentos e perseguições. Procurou-se implantar uma política de consolidação da cultura nacional, sobretudo por meio do IPHAN. Moderno significou também uma ruptura com as instituições da República velha, reforma do Estado, foi criado o IBGE, o imposto de renda, entre outras visando a integrar e “desenvolver” o país. Moderno significava em resumo: industrialização e nacionalismo. Nesta mesma época foram colocadas em práticas agressivas políticas de colonização e assimilação de culturas estrangeiras. Com JK moderno continuou a significar industrialização, colonização, só que com a ênfase da implantação de indústria automobilística. Foi construída a “capital” Brasília, e havia um clima de “futuro está chegando”, mesmo que este “desenvolvimento” fosse baseado em grande endividamento do país. Posteriormente com Goulart moderno passou a significar a uma grande efervescência social e a possibilidade de pelas “reformas de base”, concluir-se uma reforma democrático-liberal. Entretanto, essa possibilidade, que envolvia também a arte e a cultura (Teatro Oficina, CPC, Teatro de Arena etc) foi bruscamente interrompida por um moderno conservador, que conjugou de forma paradoxal uma abertura para o exterior, a repressão política, social – e uma ilusão de “milagre econômico”. Este período caracterizou-se por uma modernidade conservadora, que desmontou em grande parte os poucos equipamentos educacionais e críticos, e reprimiu todo tipo de atividade artística, intelectual e cultural autônoma e crítica. Neste período moderno passou a ser para grande parte dos brasileiros consumir e possuir. Foi também nestas épocas de generais em que a televisão Globo foi criada, como forma “cultural” para as Massas. Nos anos oitenta o moderno, em termos políticos também significou a campanha por “diretas já”, entretanto com a derrota do movimento e a posse de José Sarney, a fé no moderno e no progresso eminente parece ter começado esmorecer. A desilusão dos anos oitenta expressou-se em escritores como Caio Fernando Abreu, Márcia Denser, Hilda Hilst, Rumem Fonseca entre outros que mergulharam no pesadelo de acordar desiludido em um país em que ser moderno, significava agora, excluir e apartar definitivamente uma grande parcela da população.
1 DUPAS, Gilberto. O mito do Progresso. SP: Editora Edusp, 2006. pp. 290
2 É claro, que muito deles, principalmente Mario de Andrade, fez uma crítica desta postura em demasia otimista com relação à história. O mesmo pode ser dito de Tarsila que continuou a pensar suas concepções estéticas, e que por sinal descobriu o Brasil desde Paris.
3 Sevcenko, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras:2003. 3ª Edição, pp.309
4 Como diz Edward Said: “Todas as culturas estão mutuamente imbricadas; nenhuma é pura e única, todas são híbridas, heterogenias, extremamente diferenciada, sem qualquer monolitismo” (Cultura e Imperialismo, trad. Denise Bottman, São Paulo, Cia das letras, 1995, p. 28 Apud: PERRONE-MOISÉS, Leyla.
5 Cabe lembrar não enquanto integrante do modernismo moderno o manifesto regionalista, que centrado na região nordeste pretende voltar-se para os aspectos regionais e populares da região.
6 Mesmo em sua produção artística podemos identificar elementos muito fortes de nacionalismo e culto ao moderno: Annuncio de São Paulo: Antes da chegada/ Alfixam nos offices de bordo/ um convite impresso em inglez / Onde se contam maravilhas de minha cidade/ Sometimes called the Chicago of South América / Situada num planalto 2.700 pés acima do Mar. E distante 79 kilometros do porto de Santos/ Ella é uma gloria da América contemporânea / A sua sanidade è perfeita/ O clima brando/ E se tornou notável / Pela belleza fora do commum/ Da sua consctrução e da sua flora / a Secretaria da Agricultura fornece dados Para os negócios que ahi se queiram realizar. (Fac símile de Pau Brasil)
7 Sua conferência “O Caminho percorrido” é de um stalinismo cortante, que louva o progressismo do nacional-desenvolvimentismo, mas ao mesmo tempo mantém semelhanças autoritárias com os modernistas direitistas.
8 Talvez Paulo Prado tenha sido outro intelectual a perceber as contradições dos modernismos. Também Manuel Bandeira. Antonio Cândido escreveria posteriormente: “Recapitulando: na história brasileira deste século, têm sido ou podem ser considerados formas de nacionalismo ou ufanismo patrioteiro, o pessimismo realista, o arianista aristocrático, a reivindicação da mestiçagem, a xenofobia, a assimilação dos modelos europeus, a rejeição desses modelos, a valorização da cultura popular, o conservadorismo político, as posições de esquerda, a defesa do patrimônio econômico, a procura de originalidade etc. etc. Tais matizes se sucedem ou se combinam, de modo que por vezes é harmonioso, por vezes incoerente. E esta flutuação, esta variedade mostram que se trata de uma palavra arraigada na própria pulsação de nossa sociedade e da nossa vida cultural.” (Uma palavra instável in: Vários escritos, 4ª ed. SP/RJ: Duas Cidades/Ouro Azul, 1995, p. 278. Sobre isso penso ser muito importante a contribuição de Benedict Anderson em Comunidades Imaginárias. SP: Cia das Letras, 2008.
9 Mariátegui dizia: “A nação ela mesma é uma abstração, uma alegoria, um mito que não corresponde a uma realidade constante e precisa.” MARIATÉGUI, J. C. Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana, Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1979, p. 235 Apud: PERRONE-MOISÉS.
10 “ Sabe-se que o modernismo brasileiro foi um movimento fortemente marcado pelo nacionalismo. Mas de que nacionalismo se tratava? Havia, então, vários nacionalismos: um nacionalismo “ufanista”, de um patriotismo desprovido de espírito crítico; um nacionalismo pragmático de inspiração fascista; um nacionalismo pessimista, baseado nas noções de atraso e de raças “inferiores”. M. A. recusou o “brasileirismo de estandarte”. “Meu espírito é por demais livre para acreditar no estandarte” (carta a Carlos Drumond de Andrade, 28/2/28) idem, p. 201
11 “Assim, todas as vezes que o nacionalismo cultural e artístico, como uma fênix, renasce com impertinência e demagogia, é altamente recomendável reler Mario de Andrade e repensar, com ele, a “entidade nacional brasileira” Idem, p. 209
12 Como dizia Borges: "O nacionalismo só permite afirmações e, toda doutrina que descarte a dúvida, a negação, é uma forma de fanatismo e estupidez." “Nadie es patria. Todos lo somos”
13 ADORNO, T. Théorie esthétique, Paris: Klincksieck, 2001, p. 57-58.
14 Esse otimismo cego no progresso e advento do chamado primeiro mundo parece ter se confrontado com a realidade somente com o final dos anos 70 (crise do petróleo) e a hiperinflação dos anos 80.
terça-feira, 27 de janeiro de 2009
Ceticismo e David Hume.
Historiador / USP, Brasil
.
“E a nova filosofia põe tudo em dúvida ...
Tudo está aos pedaços , toda coerência desaparece,
Toda justa provisão , toda relação .
Príncipe , Súdito , Pai , Filho , são coisas esquecidas." J. Donne.
Poems, ed J.C. Grierson, London, 1912, p.237-8.
Introdução
Inicialmente pretendíamos neste trabalho fazer uma análise entre as relações entre as idéias céticas, presentes na antiguidade e no século XVIII e o pensamento dito niilista do século XIX (Stirner, niilistas russos e Nietzsche), talvez o outro lado da moeda do raciocínio cético. Dada a amplitude do tema e a falta de espaço e tempo, e o objetivo deste trabalho, tivemos que nos restringir neste ensaio ao nascimento das idéias céticas entre os gregos antigos e a dimensão cética nos escritos de David Hume (1711-1776). É claro que este trabalho tem uma pretensão meramente histórica, não pretendendo realizar uma reflexão de cunho mais filosófico. Os meus interesses são, sobretudo a história das idéias céticas na Grécia antiga e nos textos de Hume.
1. O Ceticismo Antigo dos gregos: acadêmicos e pirrônicos.
Os principais estudiosos do tema afirmam que o ceticismo filosófico foi elaborado teoricamente primeiramente na Grécia Antiga. O termo ceticismo quando na sua acepção filosófica não diz respeito à crença ou a não crença em Deus. Ele é na verdade um conjunto de operações racionais que buscam colocar em dúvida os argumentos dogmáticos de alguns filósofos. Na Grécia Antiga desenvolveram-se duas vertentes céticas: o ceticismo acadêmico e o ceticismo pirrônico.
O primeiro movimento filosófico defendia que nenhuma forma de conhecimento era (ou é) possível. Já o segundo baseava-se na compreensão que não há uma forma exata e suficientemente segura para determinar algum conhecimento e por isso deve-se suspender o juízo sobre qualquer questão.[1]
Já o Ceticismo acadêmico foi elaborado na academia de Platão, e por isso seu nome, no terceiro século antes de cristo. Se desenvolvimento é baseado em observações socráticas e sua formulação teórica é atribuída à Arcesilau e Carnéades. As idéias céticas acadêmicas foram transmitidas para posteridade por Cícero, Diógenes Laércio e Santo Agostinho. A meta dos céticos acadêmicos era demonstrar que os filósofos dogmáticos não podiam ter certeza daquilo que afirmavam conhecer. Seus argumentos, segundo eles, eram baseados em crenças ou opiniões que não podiam ser demonstradas. Eles o fizeram evidenciando que: 1. nossos sentidos não pouco confiáveis; 2. que não podemos ter certeza da segurança de nossa razão e, finalmente, 3. que não possuímos nenhum padrão garantido para determinar quais são os falsos e os verdadeiros argumentos.
O problema para os céticos era, portanto, que em toda questão afirmada, encontramos bases (ou pretensões) pretensamente seguras, mas que não seriam, segundo eles, demonstráveis. Para os céticos se alguma das bases de qualquer questão pudesse ser colocada em dúvida – então essa questão não mereceria o nome de “conhecimento”. O problema é, pois, que qualquer conhecimento deve estar pautado em nossos sentidos ou em nossa razão, e como dizem os céticos estes não são confiáveis. Portanto, para os céticos acadêmicos não podemos ter certeza de nada. O que resta, portanto seria o “provável”.
Já o movimento pirrônico é normalmente associado à escola metódica de medicina em Alexandria. Seu “pioneiro” foi a figura lendária de Pirro de Elis, que viveu de 360 a.c. à 275 a.c. Ele era na verdade um “exemplar” vivo do pirronismo “praticante”, em sua vida evitava radicalmente comprometer-se com qualquer juízo (que fosse além de como as coisas pareciam ser). Mas, como uma formulação teórica o ceticismo pirrônico é atribuído a Enesidemo. Os pirrônicos compreendiam que tanto dogmáticos como acadêmicos afirmavam em demasia, uns acreditavam poder conhecer, os segundos afirmavam não poder nada conhecer. De acordo com os pirrônicos, os céticos acadêmicos seriam dogmáticos da negação. Os pirrônicos levavam o ceticismo a ponto de incluir a questão: “podemos realmente conhecer algo?” Para ele nada poderia ser realmente afirmado ou conhecido, conseqüentemente eles deveriam suspender o juízo sobre qualquer questão, inclusive sobre seus próprios argumentos.
Enesidemo e seus sucessores formularam uma série “argumentos” com o objetivo de se colocar em dúvida qualquer alicerce de qualquer argumento, para se suspender o juízo em qualquer caso e qualquer questão. O pirronismo, ao contrário das idéias do céticos acadêmicos pode deixar vestígios além de comentadores posteriores (como aconteceu no texto acadêmico). O texto sobrevivente deste movimento é o “Sexto Empírico”, nele podemos ler:
“Os céticos mais recentes elaboraram os seguintes cinco modos de suspensão do juízo: o primeiro é o do desacordo; o segundo, da regressão ai infinito; o terceiro, da relatividade; o quarto, da hipótese; e o quinto, da circularidade.
O do desacordo é aquele segundo o qual encontramos, tanto na vida comum, quanto entre os filósofos, um conflito insolúvel sobre os assuntos em questão, em virtude do qual somos incapazes de escolher ou rejeitar algo e acabamos em suspensão do juízo.
O da regressão ao infinito é aquele segundo o qual dizemos que o que é oferecido em apoio para crer em alguma coisa precisa ele próprio de um apoio, e assim até ao infinito, de sorte que não temos um ponto inicial que sirva para estabelecer algo, e segue-se a suspensão do juízo. O da relatividade é, como dissemos antes, aquele segundo o objeto externo aparece dessa ou daquela maneira em relação ao sujeito que julga e aos objetos observados juntos com esse, mas suspendemos o juízo sobre como é em sua natureza. Usamos o da hipótese quando os dogmáticos, forçados à regressão ao infinito, começam com algo não estabelecido, mas simplesmente o assumem sem demonstração.
O da circularidade é usado quando o que deveria sustentar o objeto investigado precisa do apoio do objeto investigado; assim, sendo incapaz de assumir um para estabelecer o outro, suspendemos o juízo sobre ambos.”[2]
Os céticos pirrônicos evitam assim assumir qualquer conceito como verdadeiro ou falso, inclusive os próprios argumentos pirrônicos. Logo, o ceticismo pirrônico é uma operação mental que pode suspender o juízo de qualquer questão. De acordo com esses céticos, essa operação (suspensão do juízo) levaria o filósofo à ataxia, quietude ou imperturbabilidade, pois o cético não se preocupa com qualquer questão além das aparências.
Segundo esse modo de pensar, o ceticismo é a cura para o dogmatismo e para a precipitação. De acordo com o historiador Richard Popkin:
“O pirrônico, portanto, vive de modo não-dogmático, seguindo suas inclinações naturais, as aparências que percebe, e as leis e costumes da sociedade a que pertence, sem jamais se comprometer com qualquer juízo acerca disso.”[3]
O pirronismo floresceu até cerca de 200 d.C., porém foi praticamente desconhecido no ocidente, após o helenismo. Ele foi redescoberto somente no século XVI. Já o ceticismo acadêmico foi redescoberto por Santo Agostinho. Entretanto, ainda no século XV, alguns teólogos anti-racionalistas utilizaram-se de alguns argumentos céticos, como o fez por exemplo Nicolau de Cusa.
Posteriormente o impacto cético pode ser sentido em diversas épocas do ceticismo pode ser sentido em diversas épocas do pensamento moderno ocidental. Richard H. Popkin, por exemplo, defende que as idéias céticas tiveram importante papel no período que vai da reforma até a formulação da filosofia cartesiana. Segundo esse autor este papel deveu-se a crise provocada pela reforma que coincidiu com a redescoberta dos argumentos céticos dos gregos antigos. Pensadores do renascimento como Montaigne, Marsenne e Gassendi voltaram-se para o Sexto Empírico. No século XVII, Pierre Bayle e Simon Faucher também resgataram argumentos céticos, sendo que o primeiro influenciou-se pelos argumentos pirrônicos enquanto o segundo pelos acadêmicos.
No final do século XVII uma importante modificação ocorreu na história das idéias céticas. O pensamento deixou de ser antiescolástico, para tornar-se anticartesiano. O seu desenvolvimento pode ser identificado em filósofos como Spinoza, David Hume, Kant e Kierkegaard.[4]
Neste trabalho nos tentaremos nos debruçar, apesar da grande complexibilidade, com atenção especial sobre o ceticismo de David Hume, que lançou suspeita, no século XVIII, sobre a ciência experimental.
Contemporaneamente o problema do ceticismo também está colocado, em um momento histórico em que várias referências são colocadas em dúvida.[5]
2. David Hume
David Hume, filosofo escocês, nascido em 1711, é considerado um dos maiores filósofos britânicos. É conhecido por uma obra ampla e marcante em vários domínios. Como filósofo fez parte da tradição empirista da filosofia britânica, até hoje dominante.
Hume foi, segundo os especialistas, um dos filósofos do século XVIII especialmente influenciado pelas antigas idéias céticas. “Hume parecia comprazer-se em paradoxos e chagar a um ceticismo total que só a frivolidade podia aliviar.”[6]. Hume, por isso, também é conhecido pela afirmação de Kant (em Prolegómenos a Toda Metafísica Futura) que ele o havia despertado de seus sono dogmático.
Hume não se limitou a escrever sobre filosofia, e em seu tempo foi, sobretudo conhecido como historiador.[7] Escreveu também sobre teoria política, economia, religião, “escrevendo de forma memorável sobre milagres, sobre a liberdade da vontade, sobre a imortalidade da alma e o suícidio, e devastando ao mesmo tempo o tipo de religião racional ou natural, o deísmo...”[8].
Apesar de ser tradicionalmente identificado como um cético, a historiografia filosófica trata com um certo grau de polêmica os textos de Hume. Alguns autores falam em um caráter naturalista, na obra de Hume, Plínio Junquira Smith, no entanto, afirma que o ceticismo é um tema central da obra autor.[9] Segundo este autor predominam duas interpretação sobre a obra de Davi Hume: a primeira destaca o seu caráter cético por que Hume nega a realidade objetiva da causalidade, do mundo e do eu. A segunda visão, o compreende como um filósofo “naturalista”, pois destacam a contribuição de Hume ao escrever sobre “o papel dos instintos e crenças naturais”. Segundo Smith ambas as interpretações se sustentam nos textos de David Hume. Porém, mesmo a interpretação sobre o tipo do ceticismo defendido de Hume não é consenso entre os filósofos.
De acordo com Anthony Quinton, uma idéia que tem ganhado terreno recentemente é que Hume estabeleceu os limites para o conhecimento racional, por meio de um ceticismo, mas que, porém deixou claro que algumas crenças são “naturais”. Ao que parece a interpretação da obra de Hume é bastante dificultada por uma oscilação entre as duas posturas: ceticismo / naturalismo. É como se em suas reflexões fosse cético, porém reconhecesse a impossibilidade de se negar os fundamentos de argumentos na vida prática. Podemos observar isso em “Investigação do Entendimento Humano”:
“Não temos necessidade de temer que esta filosofia, na medida em que tenta limitar nossas pesquisas à vida corrente, nunca destrua os raciocínios de vida corrente e leve suas dúvidas tão longe a ponto de destruir toda ação como toda especulação. A natureza sempre manterá seus direitos e, no fim, prevalecerá sobre os raciocínios abstratos. Mesmo que concluamos, por exemplo, que em todos os raciocínios tirados da experiência o espírito dá um passo que não é sustentado por nenhum progresso do entendimento, não há nenhum perigo que esses raciocínios, dos quais depende quase todo conhecimento, sejam afetados por tal descoberta. Se o espírito não está obrigado a dar esse passo por meio de um argumento, ele deve ser conduzido por outro princípio igual em peso e em autoridade; tal princípio conservará sua influência por tanto tempo que a natureza humana permanecerá a mesma. A natureza desse princípio bem merece que nos entreguemos ao esforço de investigar sobre ela.” [10]
Ou seja, Hume reconhece a necessidade do uso do ceticismo, mas ironicamente reconhece sua “limitação”, já que na vida cotidiana (prática) os homens são forçados a levarem-se pelas crenças, instintos e hábitos naturais. No século XVIII, o ceticismo significava colocar e dúvida as certezas intelectuais, e podia ser visto, também, como uma atitude negativa. Porém mesmo assim, era visto também como método para se chegar a um conhecimento “melhor”, um método para se fazer história (dúvida metodológica)[11], para se colocar em dúvida certezas científicas ou metafísicas. É por isso que Voltaire escreve no verbete história de seu “Dicionário Filosófico”:
“Qualquer certeza que não se submeta a uma demonstração matemática não passa de simples probabilidade. A certeza histórica se enquadra nesse gênero. [...] Tudo aquilo que contraria o curso normal da natureza não deve ser acreditado, a menos que seja atestado por homens imbuídos verdadeiramente pelo espírito divino e que seja impossível duvidar de sua inspiração. E mais: que seus testemunhos sejam todos no mesmo sentido (o que não é fácil).” [12]
Sobre Hume a historiografia filosófica parece parcialmente concordar em lhe atribuir um ceticismo limitado. De acordo com Sara Pizarro na revista Intelecto número 5:
[...] “parece óbvio que Hume não defendia (nem podia defender) um ceticismo radical. No entanto, isto não significa que Hume não defendesse nenhum tipo de ceticismo. Hume pode ser visto como defendendo um ceticismo epistemológico semelhante ao que hoje se costuma chamar de falibilismo. O ceticismo epistemológico questiona a eficácia da nossa capacidade para conhecer o mundo objetivamente, põe em causa a eficiência das nossas faculdades. Este tipo de ceticismo, ao contrário do ceticismo radical, pode ser coerentemente sustentado. Mas mesmo aqui podemos traçar vários graus de ceticismo epistemológico. Numa versão mais forte, a falibilidade das nossas faculdades é vista como inerente à condição humana e, como tal, inultrapassável. Numa versão mais fraca, a falibilidade é vista como apenas uma característica secundária das nossas capacidades cognitivas, que pode ser limitada se utilizarmos métodos adequados. O falibilismo de Hume parece seguir claramente a versão mais fraca de ceticismo epistemológico.” [13]
No entanto, de acordo com Antony Quinton, Hume defende que não se pode procurar uma causa (causalidade) externa à nossos hábitos, mas que se deve ter moderação no sentido de se reconhecer que não existem certezas. Porém há em Hume uma clara recusa às formas incultas e supersticiosas de formação de crenças, sobretudo ao falar sobre os “milagres”.
Esse ceticismo “moderado” parece estar presente no Tratado sobre a Natureza Humana, onde Hume afirma:
“A intensa contemplação dessas múltiplas contradições e imperfeições na razão humana tanto afetou-me e inflamou meu cérebro que estou pronto a rejeitar toda crença e raciocínio, e não posso considerar nenhuma opinião como mais provável ou plausível que qualquer outra. Onde estou eu, ou o que sou? De que causas derivo minha existência e a que condição irei retornar? De quem devo solicitar favores, e de quem devo temer a cólera? Que seres me circundam? Quem posso de algum modo influenciar-me? Fico perplexo com todas estas questões e começo a sentir-me na mais deplorável das condições concebíveis, envolto na mais profunda escuridão e totalmente privado do uso de todos os membros e faculdades. Mais ocorre felizmente que, sendo a razão incapaz de dissipar essas nuvens, a própria Natureza basta para esse propósito e cura-me dessa tristeza e delírio filosóficos quer relaxando essa inclinação da mente, quer por meio de alguma ocupação e impressão vívida de meus sentidos que obliteram todas essas quimeras. Faço minha refeição, jogo uma partida de gamão, converso e divirto-me com meus amigos, e quando, após uma distração de três ou quatro horas, retorno a essas especulações, elas me parecem tão frias, e forçadas, e ridículas, que não me animo a penetrar nelas novamente.” [14]
De acordo com alguns comentadores esse empirismo cético de Hume procede da filosofia de Berkeley e Locke. Outros comentadores como P. Jones e E. Olaso relacionam Hume com o ceticismo acadêmico, com Carnéades ou com Cícero. Não há, entretanto unanimidade dentre os seus estudiosos. É certo, no entanto que Hume manteve uma certa crítica em relação ao ceticismo radical, pois acredita que é necessário crer para poder se viver.
Plínio Junqueira Smith, porém, nos lembram, porém que a crítica de Hume ao cético exagerado não corresponde de fato ao pirronismo antigo.[15] Para Smith as dimensões cética, naturalista e empirista na teoria de Hume estão intimamente relacionadas, o que dificultaria o enquadramento de Hume em qualquer classificação. Não se pode, segundo este comentador, encaixar as idéias de Hume nem entre os céticos acadêmicos, nem entre os pirrônicos. Para Smith o empirismo de Hume pretende que não se pode escapar da experiência, e seu naturalismo que não se pode fugir das crenças “naturais” e/ou dar-lhe alguma base além da natureza. Entretanto ele considera, em alguma medida, como os antigos céticos, que as nossas crenças são resultado de inferências causais.
“Tendo argumentado que toda as crenças em questões de fato – à parte nossa consciência imediata de nossas presentes impressões e, presumidamente, as lembranças destas – estão fundadas em crenças causais, Hume tentou mostrar que essas crenças não estão justificadas. Não estão justificadas pela experiência, dado que não temos nenhuma impressão de conexão necessária, nem pela razão, dado que o contraditório de qualquer princípio causal ou indutivo geral, ou de qualquer particular crença causal, é sempre possível. Tudo o que se pode esperar fazer é explicar como chegamos a ter as crenças causais que temos, e a fazer as previsões às quais elas nos conduzem; a saber, pela experiência da conjunção constante que instila em nós o hábito da expectativa.”[16]
Assim, como já vimos o ceticismo de Humo mostrou-se inseparável de “uma investigação que se atinha exclusivamente à experiência” em antagonismo com uma suposta observação da realidade[17]. Assim sendo, neste aspecto é que o ceticismo de Hume é compatível com os ceticismos antigos gregos, que também defendiam uma prática no lugar da contemplação. Finalmente pode-se compreender que a filosofia de Hume foi um ponto de inflexão na história do pensamento moderno, pois com ela se inverteu a perspectiva filosófica, “abandonando-se o ponto de vista teórico do conhecimento racional em favor de uma postura em que a prática e a vida comum se tornam elementos centrais.”[18] Nesta nova perspectiva, nascida no século XVIII o conhecimento só tem valor se acompanhado por alguma dimensão prática, e é por isso que Hume deixará as especulações metafísicas para se dedicar a ciências empíricas como a história, a economia, a política, a estética e a moral.
Bibliografia:
· Plínio Junqueira. Ceticismo. Jorge Zahar editor, RJ: 2004.
· Smith, Plínio Junqueira. O Ceticismo de Hume. Edições Loyola, SP: 1995
· Sexto Empírico, Outlines of Pyrrhonism, I, 164-9, apud: Smith, Plínio Junqueira. Ceticismo. Jorge Zahar editor, RJ: 2004.
· Popkin, Richard H. História do Ceticismo: de Erasmo a Spinoza. Francisco Alves Editora, SP: 2000.
· HUME, David, Treatise of human Nature. Selby-Bigge, L. A. (Ed.). Oxford, 1888 e posteriores, p.268-269, IN: QUINTON, Antony. Hume. Editora Unesp, SP: 1999.
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· HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa: 2002
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· BURKE, Peter. Uma História Social do Conhecimento: de Gutenberg a Diderot. Jorge Zahar editor: RJ, s/d.
· VOLPI, Franco. O Niilismo. Edições Loyola: SP, 1999.
[1] Essa suspensão do juízo objetaria levar à ataxia, ou quietude de espírito. Podemos nesse sentido fazer uma aproximação do pirronismo com o zen-budismo, pois esse tem como objetivo a quietude do nirvana e também por que este não pretende que algo seja real ou falso, bom ou mau. Os princípios do zen-budismo pretendem transcender a toda afirmação ou negação a respeito do mundo. Poderíamos mesmo arriscar uma aproximação (em alguns pontos) de algumas idéias de Hume com idéias budistas no que se refere ao eu, e às paixões.
[2] Sexto Empírico, Outlines of Pyrrhonism, I, 164-9, apud: Smith, Plínio Junqueira. Ceticismo. Jorge Zahar editor, RJ: 2004.
[3] Popkin, Richard H. História do Ceticismo: de Erasmo a Spinoza. Francisco Alves Editora, SP: 2000.
[4] Santo Agostinho, Lutero, Calvino, Pascal, Bayle e Kierkegaard podem ser considerados fideístas.
[5] Sobre o ceticismo, A. J. Ayer nos fala em “O padrão dos argumentos céticos” in: The Problem of Knowledge, p. 75-78. : “Há, contudo, uma classe especial de casos na qual os problemas criados pela lógica do cético não são tão facilmente postos de lado. Eles são aqueles nos quais o ataque é dirigido não contra a inferência factual enquanto tal, mas contra algumas formas particulares dela, nas quais parecemos terminar com enunciados de uma categoria diferente daqueles com os quais começamos. Assim, levanta-se a dúvida sobre a validade de nossa crença na existência de objetos físicos, ou entidades científicas, ou as mentes de outras pessoas, ou o passado, por um argumento que procura mostrar que essa crença depende em cada caso de uma inferência ilegítima. O que é respectivamente posto em questão é nosso direito de fazer a transição de experiências sensíveis para objetos físicos, do mundo do senso comum para as entidades da ciência, do comportamento observável de outras pessoas para suas sensações e pensamentos internos, do presente para o passado. Esses são problemas distintos, mas o padrão do argumento do cético é o mesmo em cada caso. O primeiro passo é insistir em que dependemos inteiramente das premissas para nosso conhecimento da conclusão. Assim sustenta-se que não temos acesso a objetos físicos senão por meio dos conteúdos de nossas experiências sensíveis, que não são físicas... Relativamente ao nosso conhecimento da evidência, nosso conhecimento da conclusão deve em cada caso ser indireto; e logicamente isso não poderia ser de outra maneira. O segundo passo do argumento é mostrar que a relação entre premissas e conclusão não é dedutiva. Não pode haver descrição de nossas experiências sensíveis, ainda que longa e detalhada, a partir da qual se segue que um objeto físico existe. Enunciados sobre entidades científicas não são formalmente dedutíveis de qualquer conjunto de enunciados sobre as sensações e pensamentos internos de uma pessoa de enunciados sobre suas manifestações observáveis.... [...] Acontece, entretanto, o argumento continua, que essas inferências também não são indutivas. Admitindo que a inferência indutiva é legítima, ela nos leva, para usar uma frase de Hume, de instâncias que tivemos experiências para aquelas que não tivemos. Mas aqui é essencial que essa instância de que de fato não tivemos experiência deveriam ser tais como podemos ser capazes de experimentar. Concedamos, apesar do problema da indução, que com base no que experimentamos às vezes temos o direito de inferir a existência de eventos inobservados; nossa confiança no argumento será, então, um substituto para as observações diretas que, por alguma razão prática, somos incapazes de fazer. A situação é completamente diferente quando as coisas cuja existência estamos afirmando inferir não somente não são dadas para nós na experiência, mas não poderiam nunca ser dadas. Pois nesse caso, que fundamento poderia haver para nossos argumentos indutivos e como seu êxito poderia ser testado?[...] O raciocínio experimental pode nos levar adiante em um dado nível: com base em certas experiências sensíveis; de observações sobre maneira como uma pessoa se comporta, permite-nos inferir que seus comportamento futuro será tal e tal. O que ele não nos permite é pular de um nível para outro: passar de premissas que concernem aos conteúdos de nossa experiência sensíveis para conclusões sobre objetos físicos, de premissas que concernem ao comportamento observável de outras pessoas para conclusões sobre suas mentes. O último passo é argumentar que essas conclusões não podem ser justificadas de maneira nenhuma, uma vez que essas inferências não podem ser justificadas seja dedutivamente, seja indutivamente. Não temos sequer o direito de fazer o movimento elementar de inferir o passado a partir de nossas experiências, chegar à existência dos objetos físicos. [...] Seria realmente difícil encontrar mesmo um filósofo que estivesse propenso a aceitar essas conseqüências. Tampouco se deve imaginar que alguém deveria seriamente sustentar que não temos qualquer direito de estar seguros, ou mesmo moderadamente confiantes, de alguma coisa que concerne a objetos físicos, ou à mente de outras pessoas, ou ao passado. Mas mesmo se essa pessoa desiste de levar seu argumento ao que parece ser sua conclusão lógica, o cético pode ainda insistir em que ele apresenta uma questão para nós respondermos. Sem dúvida, sabemos o que ele diz que não podemos saber; nos é pedido, pelo menos, explicar como é que nós sabemos. O problema que é apresentado em todos esses casos é estabelecer nosso direito de fazer o que parece ser um tipo especial de avanço para além de nossos dados. O nível do que aceitamos como dados, para os propósitos do problema, varia; mais em cada caso supõe-se que eles não alcançam, de maneira não comprometedora, a conclusão para a qual nós olhamos para eles nos conduzirem. Para aqueles que querem reivindicar nossa afirmação de conhecimento, a dificuldade é encontrar uma maneira de sustentar ou abolir esse abismo. (A. J. AYER)
[6] QUINTON, Antony. Hume. Editora Unesp: 1999, p. 7
[7] Entre sua obra variada encontramos trabalhos em vários domínios: •Filosofia e Religião: A Treatise of Human Nature ("Tratado da Natureza Humana"), 1739-40; Philosophical Essays Concerning Human Understanding (1748) mudado para An Enquiry Concerning Human Understanding ("Uma Investigação Concernente ao Entendimento Humano"), 1758, principalmente uma revisão do Livro I do "Tratado"; Four Dissertations ("Quatro Dissertações"), 1757, incluindo a revisão do Livro II do "Tratado"; Dialogues Concerning Natural Religion ("Diálogos Concernentes à Religião Natural"), 1779. •Política e Moral: Essay, Moral and Poltical (Ensaio, Política e Moral), 2 vol., 1741-42 e um posterior Three Essays, Moral and Political, 1748; An Enquiry Concerning the Principles of Morals ("Uma investigação concernente aos princípios morais"), 1751, uma revisão do Livro III do "Tratado", e; Politícal Discourses ("Discrusos Políticos"), 1752. •História: The History ot England ("História da Inglaterra"), 6 Yol., 1754-62. •Outros trabalhos: Of National Characters ("Sobre tipos nacionais"), 1748; A Conciese and Genuine Account of the Dispute Between Mr. Hume and Mr. Rousseau ("Um relato conciso e genuíno da disputa entre o Sr. Hume e o Sr. Rousseau"), 1766; The Life of David Hume, Written by Himself ("A vida de David Hume escrita por ele mesmo"), 1777.
[8] QUINTON, Antony. Hume. Editora Unesp, SP: 1999, p. 8
[9] Smith, Plínio Junquira. O Ceticismo de Hume. Edições Loyola, SP: 1995.
[10] HUME, David. Investigação do Entendimento Humano.
[11] No século XVIII surge a nova história crítica. Nesta o ceticismo era uma nova arma a serviço do exame das fontes e da desqualificação da história feita anteriormente.
[12] Voltaire. Dicionário Filosófico. Editora Martins Claret: SP, 1994, p. 274.
[13] Pizzarro, Sara. O que significa ser cético? In: Revista Intelecto 5 - http://www.ufogenesis.com.br/ceticismo/materias/ser_cetico.htm
[14] HUME, David, Treatise of human Nature. Selby-Bigge, L. A. (Ed.). Oxford, 1888 e posteriores, p.268-269, IN: QUINTON, Antony. Hume. Editora Unesp, SP: 1999.
[15] Smith, Plínio Junquira. O Ceticismo de Hume. Edições Loyola, SP: 1995. p. 276
[16] QUINTON, Antony. Hume. Editora Unesp, SP: 1999, p. 30
[17] Smith, Plínio Junqueira. O Ceticismo de Hume. Edições Loyola, SP: 1995, p. 289.
[18] idem, p. 295.
Into the Wild, razão, liberdade e controle social
Disciplina: Razão, Indíviduo Liberdade
Historiador formando
Tradutor
La vérité, c'est une agonie qui n'en finit pas. La vérité de ce monde c'est la mort.
Il faut choisir, mourir ou mentir. Je n'ai jamais pu me tuer moi.
Voyage au bout de la nuit, Louis-Ferdinand Céline, éd. Gallimard, 1972 p. 200
« Ça ne vous servira à rien ici vos études, mon garçon !
Vous n’êtes pas venu ici pour penser,
mais pour faire les gestes qu’on vous commandera d’exécuter…
Nous n’avons pas besoin d’imaginatifs dans notre usine.
C’est de chimpanzés dont nous avons besoin.»,
Voyage au bout de la nuit, 1932, Idem.
“Não se pode de forma alguma pensar um processo histórico de conhecimento em que o próprio sujeito (historiador) do conhecimento deixasse de debruçar-se sobre si mesmo”.
Razão Histórica de JÖRN RÜSEN
1. Introdução
Se me explico, me implico:
Não posso a mim mesmo interpretar.
Mas quem seguir sempre seu próprio caminho
Minha imagem a uma luz mais clara também levará.
Nietzsche, Astúcia e Vingança, § 23 - Interpretação in: Gaia Ciência
Por causa dos intensos debates epistemológicos entre os historiadores, decidi fazer uma introdução metodológica, para situar algumas questões e assumir meu lugar como indivíduo e historiador permeado por uma formação, pelo meu tempo e por uma subjetividade.
O fazer historiográfico é hoje uma forma de conhecimento aberta. Grande parte, se não a maioria dos historiadores contemporâneos não procuram mais escamotear essa consciência desse lugar – de um sujeito histórico e subjetivo. Isso, fez com que o tempo e os objetos, em grande medida, não fossem mais encarados de forma a se encontrar uma relação de causa e efeito. As Histórias totalizadoras e gerais em grande medida foram abandonadas, em prol de abordagens mais sutis e variadas. Muitos historiadores estão mais conscientes que o fazer historiográfico está permeado por jogos e redes de poder. Os documentos históricos já não são mais questionados de forma positiva, mas de modo a encontrar justamente essas redes de campos de força em seu interior. O passado agora pode ser encarado, por meio dos vestígios e memórias com os quais o historiador trabalha - em suas formas mais polissêmicas e plurais. Atualmente a escolha do documento histórico expandiu-se para uma ampla gama de atividades humanas, ampliando-se as fronteiras e as possibilidades. Hoje não são somente a economia e a política inscritas nesta rede documental são objetos da reflexão historiográfica, mas também os documentos históricos de variadas naturezas: culturais, intelectuais, literárias, artísticas entre outras.
Talvez um dos objetivos do fazer histórico, não é mais como pensam ainda alguns revelar o passado exatamente como ele foi - por meio destes vestígios históricos ou revelar várias formas possíveis deste passado. Quem sabe pensar sobre o passado seja mais fazer refletir de forma crítica e consciente sobre os passados possíveis, as reconstruções possíveis, o tempo histórico e sobre os vestígios legados. Essa reflexão se dá admitindo-se as limitações, assim como as possibilidades da historiografia.
Desta forma, penso tanto melhor para a historiografia e para os historiadores que se aproximem de outras formas de conhecimento, em especial da filosofia, da semiologia, da antropologia, entre outras. Muitos historiadores já aceitam que há uma viva diferença entre as palavras e as coisas, entre as representações históricas e o mundo, assim como entre o passado vivo e o passado morto - com seus vestígios históricos e o discurso historiográfico. Igualmente o tempo da História não tem mais direção, começo nem fim; abandonaram-se as tentativas de se estabelecer causalidades gerais, ou tentativas positivistas – deterministas ou evolucionistas, assim como esquemas lineares, e cíclicos fechados. O discurso historiográfico ganhou assim em pluralidade e complexidade.
Outra função do fazer histórico, importantíssima, é certamente pensar sobre as concepções de Tempo, e sobre as idéias sobre este tempo, no momento em que já podemos admitir que as idéias são tão atuantes no mundo empírico como reveladoras deste. Portanto, é preciso que em história realize-se sempre uma revisão das formas positivistas, evolucionistas unidimensionais e dogmáticas com relação às formas de encarar e representar o tempo passado, assim como representar e construir o saber histórico. As idéias, e os diversos pensadores – do passado ou do presente - que pensaram o Tempo são fonte riquíssima para se alcançar tal crítica. Apresentando-os e refletindo sobre eles, podemos refletir sobre a forma como pensamos e realizamos o saber histórico. São tantos os pensadores que se debruçaram sobre a questão do tempo, e assim são tantas as formas de se refletir sobre o tempo histórico. Como disse um dia Foucault: “É preciso saber reconhecer os acontecimentos da História, seus abalos, suas surpresas, as vacilantes vitórias, as derrotas mal digeridas [...] A História com suas intensidades, seus desfalecimentos, seus furores secretos, suas grandes agitações febris como suas síncopes, é o próprio corpo do devir. É preciso ser metafísico para lhe procurar uma alma.”[1]
Penso que os historiadores devem estar sempre abertos para a discussão; interpretação e exame crítico dos documentos assumem, em minha opinião, caráter essencial no fazer historiográfico. Na verdade, acredito que um texto, seja ele de natureza documental ou não – pode ter várias interpretações nenhuma certa ou errada, mas apenas miradas diversas, a partir de lugares diferentes. É assim também que talvez o autor de meu livro encare os documentos[2] e assim encaro seu próprio texto: o mesmo texto, mas de maneira diversa.
Não se pode esquecer, que mesmo que nossas idéias pareçam claras e exatas, elas são sempre suposições – e que o “texto” possui sempre, em alguma medida autonomia - se esquecermos disto e tomá-los como verdades, perdemos a chance de que por meio da interpretação e reflexão – destes textos e símbolos, vislumbremos o que somos e como poderíamos conhecer do mundo. Temos que ter em vista que somente em diálogo com eles e sua época, conscientes de nossas próprias experiências, podemos tentar compreendê-los profundamente.[3]
2. Labirintos da História
Existe verdade histórica? O que são fatos históricos? Como o historiador deve tratar os documentos? Existem diferentes tipos de documentos? Qual a diferença de um documento dito literário e um documento não-ficcional. São questões pertinentes e muito complexas que devem dizer respeito a grande parte dos historiadores, e em alguma medida também os estudantes de História. O que realmente faz um historiador? - deve-se perguntar: o historiador recolhe vestígios do passado – os documentos – os seleciona, os analisa, e finalmente escreve uma narrativa que busca reconstituir ou pelo menos re-criar ou re-apresentar em alguma medida o passado[4].
Claro que o historiador é portador de uma marca individual, expressão de seu tempo, cultura, comunidade lingüística, religião, país, posicionamento político entre muitos outros fatos[5]. Portanto, sua escrita, sua análise e o selecionar serão influenciados por esta subjetividade única[6]. Em quase nenhuma parte, pelo menos na academia continua-se a buscar a utópica “objetividade” da história positiva, que há muito parece ter caído em descrédito. Nem mesmo nas ciências naturais se assimila mais o conceito de “verdade científica”. Como dizia Croce, os conceitos científicos não são verdadeiros nem falsos, mas “construções arbitrárias” que permitem construir teorias e hipóteses sobre o mundo. Já a história, segundo ele aproxima-se muito da filosofia ao propor teorias e “vive de novo na imaginação os indivíduos e os acontecimentos”.
Os fatos não falam por si, como acreditam a maioria das pessoas não-historiadoras. Todas as fontes estão sujeitas à seleção[7], interpretação e compreensão do historiador. A história, assim, não existe por si só, como a maioria dos não-historiadores acredita. Deve escrever a história, formulá-la de acordo com pressupostos teóricos[8] adotados pelo Historiador[9].
Hoje grande parte das escolas historiográficas reconhece que há uma diferença entre o acontecimento (ou fato), no seu ethos e integridade ontológica e aquilo que o conhecimento histórico é capaz de apreender. A história é aquilo que experimentamos o que vivenciamos, o ocorrido, o devir do mundo. O que o historiador faz (a História) pode ser visto como representação ou tentativa de re-apresentação desse devir. Há bastante tempo o historiador não é mais escravo dos documentos e nem da busca pela “verdade histórica”, como dizia Lucien Febvre[10], a História é antes aquilo que compreende e faz compreender.
Tendo em vista estas breves colocações teóricas quero agora questionar o tratamento que devemos dar aos documentos – de acordo uma diferença essencial: eles tratam de fatos ficcionais ou ‘reais’? Por limitação de espaço e tempo, pretendo apenas pensar o tratamento que devemos dar aos documentos ditos de caráter fílmico. Sigo nessa breve reflexão sobre o filme “Na Natureza Selvagem” o caminho indicado por Hayden White em “Trópicos do Discurso”[11] e “Meta-História”[12]. Trata-se também de se fazer uma “história do tempo presente”, utilizando-se de uma hermenêutica capaz de dar sentido e narração às reflexões motivadas pelo filme. Em The Northanger Abbey[13] (cap. XIV), romance de Jane Austen, a personagem Catherine Morland afirma escrevendo sobre a história: "Chego a estranhar, muitas vezes, que ela [a História] seja tão monótona, pois grande parte dela deve ser invenção". Penso, como White, que há uma clara diferença entre o discurso “ficcional” e o historiográfico. Mesmo que o historiador utilize, recursos ficcionais em sua narrativa, seu texto trata de objetos cuja existência pode ser observada, ou que aos menos se atribui uma existência real, mesmo que seja no campo do imaginário humano e do simbólico. Por isso, os dois discursos são essencialmente diferentes. O fazer historiográfico – e seu texto - não pode ser uma “invenção”, mas uma tentativa de “re-apresentação” do que julgamos “ter sido real” no passado. Isso não quer dizer que não possamos utilizar-nos de documentos cinematográficos, poéticos ou literários para escrever História.
Penso que por pretenderem comunicar algo, as obras cinematográficas têm compromisso com as sensibilidades de uma época, sua linguagem e temas devem ser compreendidos por seus interlocutores de época. Por isso, os documentos literários ou fílmicos são importantes indícios[14] de sua época: pela linguagem que utilizam, pelos temas tratados, pelas formas narrativas, apresentação, pela caracterização, posturas e/ou atuação de personagens, cenários, filiações estéticas etc, captam de certa forma algo como o espírito do seu tempo (Zeitgeist) capaz de informar muito sobre uma determinada época[15]. Como diz Jacques Le Goff[16] sobre o documento poético, cujo comentário serve perfeitamente ao documento fílmico, este permite ao historiador encontrar uma chave para a alma do autor, sua experiência de vida[17] e, assim, seu tempo. Como observa Sandra Jatahy Pesavento,
Neste cruzamento que se estabelece entre a História e a Literatura, o historiador se vale do texto literário não mais como uma ilustração do contexto em estudo, como um dado a mais para compor uma paisagem dada. O texto literário lhe vale como porta de entrada às sensibilidades de um outro tempo, justo como aquela fonte privilegiada que pode acessar elementos do passado que outros documentos não proporcionam.[18]
3.
Como já foi lembrado qualquer tipo de obra tem sempre compromisso com as sensibilidades de sua época, de seu tempo, sua linguagem e, temas são compreendidos por seus interlocutores de época de forma diferente daqueles da posteridade. Seus temas e seu vocabulário estão inscritos em um tempo, e um espaço determinado. Seu uso, porém, no futuro é de infinitas utilizações – e até abusos, mesmo a contragosto de seu realizador.
Assim considerando, hipoteticamente, que o artista, o filósofo, o historiador, o intelectual em geral, são portadores de um gênio-eu (mesmo que, como afirma Foucault cindido ou multifacetado), de sensibilidades especiais, e de uma individualidade historicamente determinada[19], mas que dão valor e singularidade aos seus olhares. Eles podem perceber questões que passam despercebidas para seus contemporâneos – e assim, muitos deles, como Nietzsche, por exemplo, nascem já póstumos. Por exemplo, escritores como Albert Camus e Louis-Ferdinad Céline[20], quiçá estivessem, em termos políticos, em campos opostos, captaram ambos em um “entre-tempo” singular de forma excêntrica e aguda sua época – tiveram a capacidade de ver além do que o rebanho e os jornais-rebanho viam. Por isso foram muitas vezes condenados.
Detectaram, a exemplo de Nietzsche, Adorno e Horkeheimer, como a ciência e a técnica tornar-se-ia um mito, ou mistificação para a sociedade moderna. Marcuse iria mais longe ainda em seu Homem Unidimencional[21] afirmando que a re-produtividade técnica seria a Arte da destruição, e uma forma de esmagar as potencialidades e singularidades do ser humano. Em seu Eros e a Civilização[22], ao contrário de Freud em seu Mal Estar na Civilização[23] – que indicava como a sublimação do Eros é o elemento necessário para o estabelecimento da civilização – Marcuse[24] acusa este mesmo Eros de ser a força potencial necessária à civilização, e conseguintemente responsável pela limitação das potencialidades humanas. Desejo tornar-se-ia então, contraditoriamente, fonte de destruição e civilização. Sobre isso, indica Nietzsche magistralmente como a moral do fraco, a moral burguesa, tornou-se uma necessidade para a civilização:
O homem, o animal mais corajoso e mais habituado ao sofrimento, não nega em si o sofrer em si, ele o deseja, procura-o até, sob a condição de que lhe seja mostrado um sentido, um para quê no sofrimento. A falta de sentido do sofrer, não o sofrer era a maldição que até então se estendia sobre a humanidade – e o ideal ascético lhe ofereceu sentido! Foi até agora o único sentido; qualquer sentido é melhor nenhum... – o homem estava salvo, ele possuía um sentido, a partir de então não ser mais uma folha ao vento... ele agora podia querer algo – não importando no momento para que direção, com que fim, com que meio ele queria: a vontade mesma estava salva. Não se pode absolutamente esconder o que realmente expressa todo esse querer que o ideal acético recebeu sua orientação: esse ódio ao que é humano, mais ainda ao que é animal, mais ainda ao que é matéria, esse horror aos sentidos, à razão mesma, o medo da felicidade e da beleza, o anseio de afastar-se do que seja aparência, mudança, morte, devir, desejo, anseio - tudo isso significa, ousamos compreendê-lo, uma vontade de nada, uma aversão à vida, uma revolta contra os fundamentos pressupostos da vida, mas é e continua sendo uma vontade!... E, para repetir em conclusão o afirmei no início: o homem preferira ainda nada, a não querer ...[25]
Podem-se fazer várias interpretações do trecho citado. Uma delas, é que o ideal ascético, e de sofrimento é necessário à psicologia do burguês ou ainda, para entrar na terminologia dos franckfurtianos, necessário ao sistema capitalista burguês.
Entretanto, Nietzsche pensa que a arte é um das expressões humanas que nos possibilita dar uma explicação, mesmo que parcial, à condição humana, e permitir ao ser humano dar algum mínimo de razão ao absurdo e terror da experiência humana[26]. Nietzsche[27] martelou filosoficamente de forma incrível conceitos “pré-aceitos” como moral, utilidade, cristianismo, indivíduo etc, ajudando a completar, talvez o desencantamento do mundo[28]. Quando isso diz respeito ao esclarecimento isso é evidente, em particular, na sessão IV de Crepúsculo dos Ídolos - como o “mundo verdadeiro” se tornou finalmente Fábula (ver História de um erro), além de seu texto “Os Melhoradores da Humanidade”[29]. Na verdade não se pode acusar Nietzsche de irracionalista, o que ele quer chamar a atenção é que a razão ao sobrepujar todas as outras tendências humanas torna-se mito e desrazão. Ele não é, como muitos o acusaram um apologeta da paixão, sua crítica à moral, necessária ao status quo, é uma crítica a um tipo de moral, em especial a judaico-cristã.
Ele, em sua crítica devastadora ao conceito de moral e de ciência identificou bem como a ciência, e a razão tornaram-se, eu arrisco hibridamente, com a modernidade, uma mitologia. Seus escritos “iluminaram” Adorno e Horkeheimer a pensarem a cultura e seu tempo. Porém, estes autores não podiam abandonar conceitos, pré-supostos tacitamente aceitos para ler Nietzsche: é por isso que vemos em seus escritos adjetivos e conceitos que lhes pareciam inevitáveis: “burguês”, “dialética”, “progresso”, “ideologia” etc. Sua perspectiva, seu lugar social e temporal obrigava-os a isso. Parece-me, que estes autores, mesmo com sua aguda e fina crítica à razão, por sua história e origem ao buscarem uma emancipação humana, acabam por recair no que a maioria dos socialistas fez e ainda o faz; a desesperada busca pela redenção e pelo paraíso perdido, intimamente ligada a cosmogonia judaico-cristã. A história apontaria assim para um fim, de forma escatológica, o fim das classes, ou o fim dos tempos, onde todos os homens serão julgados. Para os melhoradores de homens desse tipo Nietzsche diria: “niilistas”.
Cito:
“Assim ele [Nietzsche] enxergava no esclarecimento tanto um movimento universal do espírito soberano, do qual se sentia o realizador último, quanto a potência hostil à vida, “Nihilista.”. E, seus seguidos pré-fascistas[30], porém, apenas o segundo aspecto se conservou e se perverteu em ideologia. Esta ideologia torna-se a cega exaltação da vida cega, à qual se entrega a mesma prática pela qual tudo o que é vivo é oprimido. Isto está claramente expresso na posição dos intelectuais fascistas em fase de Homero.”[31]
Este trecho, entretanto, parece-me uma interpretação do pensamento de Nietzsche, que se encontra deslocado de seu contexto, de seu tempo, e convertido a fórceps em uma espécie de dialética. Mas Nietzsche foi capaz de perceber que o “real” pode tornar-se ficção. As instituições modernas se dissolvem em novos mitos, não aquele do Entzauberung de Weber, mas novos mitos, aqueles hoje apontados por filósofos como Alan Badiou e Giorgio Agamben. Os mitos da hiper-modernidade são aqueles atacados por Nietzsche – e também por Adorno e Horkheimer, a democracia, o utilitarismo, o estado de direito, o direito internacional, a fluidez do capital. A liberdade humana realiza-se apenas como capital útil e quantificável. Novos mitos são levantados – o fluxo dos capitais, a falsa liberdade de ir e vir. Não obstante um certo desencantamento das coisas e do mundo e a morte de Deus no mundo ocidental – na periferia e no mundo ocidentalizado (ex: Brasil) enrijem-se novos fundamentalismos. O mundo islâmico é sacudido por uma mitologização híbrida que mescla técnica de guerra, exceção, e uma mistura de política e religião. Percebe-se assim que de alguma maneira mais sinistra e perversa o desencantamento é apenas parcial no mundo periférico, o mito absorveu de maneira esquizofrênica o mito da razão instrumental, o utilitarismo selvagem, mas não abandonou velhos postulados morais religiosos. O Homem em si torna-se, no centro e na periferia do mundo, obsoleto e o estado de exceção toma aos poucos o sistema internacional e o Direito Internacional – tornando-se regra ficcionalmente aceitos.
Agora, que os escritos de intelectuais sejam interpretados não há nenhuma novidade nisso; são vários os exemplos na história, Marx e Nietzsche são apenas dois deles. Por vezes, são seus próprios pares os interpretadores, por vezes integrantes de campos de força opostos[32]. É interessante observar a divisão que faz Hermínio Martins, em “Hegel, Texas e outros Ensaios de Teoria Social”[33], quanto à perspectiva dos intelectuais perante a técnica: Fáusticos e Prometéicos. Não é necessário explicar que os prometéicos seriam aqueles que viam necessariamente na técnica a fonte de uma libertação humana, já os fáusticos seriam aqueles que considerariam a tecnologia totalmente desprovida de fins bons ou maus. No final deste ensaio o autor lembra-se da Dialética do Iluminismo como que uma mistura das duas vertentes, já que seus autores vislumbraram a capacidade destruidora da razão e da técnica, sem no entanto abandonar o postulado de progresso evolucionista próprio do iluminismo, e do qual, ao meu ver, o marxismo nunca pode se livrar.
Nietsche faz do equilíbrio entre Apolo e Dionísio. Para ele, justamente um dos problemas da razão moderna era sua concepção e fundamentos exclusivamente apolíneos. Por outro lado, o que me parece importante é que Adorno e Horkeimer parecem ter resgatado de Nietzsche sua crítica a razão instrumental e a ciência como nova religião ou ídolo.
A crítica dos Autores da “Dialética do Esclarecimento” parece em alguns momentos anular, ou ignorar, o potencial emancipador contido na filosofia de Nietzsche: eles reconhecem seu lado crítico, mas ignoram, seu lado legislador (criador). Aquela parte de sua filosofia que pode libertar o homem da moral de escravo, da hipocrisia cristã e que faz aceitar o amor fati: "Não querer nada de diferente do que é, nem no futuro, nem no passado, nem por toda a eternidade. Não só suportar o que é necessário, mas amá-lo". ... "Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: - assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas.” (GM). Isso faz com que o homem torne-se forte, no sentido não reativo, e possibilitaria até uma reconciliação com o mundo real, e dar valor e capacidade ao homem de viver a vida, como me parece ser o caso do rapaz do filme em questão. Parece-me que o personagem ou no limite a pessoa real que baseou o filme tinha um enorme: "Amor fati": seja este, doravante, o meu amor" Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que minha única negação seja ‘desviar o olhar’! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia apenas alguém que diz sim."[34]
Por que Nietzsche não nega a inexorável luta da existência, e pensa que ao não se negar a existência da luta e a apontar a moral dos escravos[35], liberta.[36] Assim a resistência humana à irracionalidade da razão instrumental é o núcleo da verdadeira individualidade[37].
conseito
É importante lembrar que não somente Nietzsche e a Escola Crítica Alemã perceberam de forma crítica as potencialidades do progresso. Destaca-se, pela precocidade de sua sencibilidade Tocqueville, que apesar do elogio otimista que faz a democracia – percebia o perigo que o controle das maiorias poderia representar para as minorias. Além dele temos ainda Weber, Schopenhauer e Buckehardt, ainda no século XIX. Já no século XX, pensadores como Walter Benjamin, Ortega y Gasset, e mesmo Hannah Arendt, pensaram e escreveram sobre as potencialidades destrutivas da técnica e da ciência.[38]
4. Into The Wild
« Nous avons pris un mauvais tournant monstrueux avec la culture symbolique et la division du travail ; nous avons quitté un lieu d'enchantement, de compréhension et de totalité pour atteindre l'absence que nous trouvons aujourd'hui au cœur de la doctrine du progrès. Vide, et de plus en plus vide, la logique de la domestication, avec ses exigences de totale domination, nous montre aujourd'hui la ruine d'une civilisation qui ruine le reste... », John Zerzan.
É nesta perspectiva crítica com relação à razão instrumental, e com uma tomada de posição crítica com relação à ciência e a técnica como fim-em-si, éque pretendo ler e interpretar o filme “Na Natureza Selvagem” , pois que a história deste filme parece-me fruto das contradições entre sociedade e indivíduo, daquele tipo especial de homem herói de que falava Horkeheimer em Eclipse da Razão[39], mas também talvez do tipo que possui intensamente a perspectiva do amor fati.niezscheano
Pretendo em meus comentários utilizar-me do filme, para identificar as leituras pretensamentefeitas por Christopher McCandless – personagem real cuja história real baseou um livro reportagem e posteriormente o filme em questão.. No filme o realizador americano Sean Penn trata do “resto” da contracultura norte-americana para contar a história real de um jovem da classe média alta que abandona a família para viajar pelos Estados Unidos e entrar e[40]m contato com a natureza, e mostrar aspectos da contracultura dos anos 60 e 70, presentes ainda nos anos 90.
A história real aconteceu em1992,quando o recém-formado Christopher McCandless deixou o comodidade familiar para “ir ao encontro à natureza”. As principais referências literárias de Chris eram, segundo o filme, Henry Davi Thoreau (Desobediência Civil e Walden), Leon Tolstoi, Lord Byron[41] e Jack London[42]. O primeiro autor citado é fundamental na sua trajetória biográfica representada no filme.,Todos estes autores representam aparentemente uma ruptura de identidade (ou a busca por) e um desejo de liberdade e de infinito, levando o personagem a tentar escapar dos controles sociais e regatar seu espírito subjetivo[43]. Como diz Simmel, o conflito entre indivíduo e sociedade prossegue no próprio indivíduo como luta entre as partes de sua essência. A sociedade, muitas vezes, impõe o nivelamento de seus membros, tornando muito difícil o realce das qualidades individuais.[44]
Para nosso personagem (vou considera-lo um personagem ou uma representação do homem que já foi real), aparentemente era preciso amar a vida mais que o sentido da vida, e ter direito a um vir-à-ser eterno. Tudo aquilo que é comumente aceito, os consensos, as práticas estabelecidas, os hábitos, as tradições são, para o personagem, fatores que tornam o ser humano mais pobre, menos inteligente, mais indolente e apático. Assim, o questionamento, a dúvida, o ceticismo, a sublevação, e a revolta, mas sobretudo o nomadismo é a forma que encontra para se individualizar. Ele assume a responsabilidade de um pensamento transformador e insubmisso e perigoso para o poder estabelecido.[45] Sua atitude, certamente, individualista, tem certamente conseqüências graves, mas que aparenetemente, pelo menos no filme são assumidas de forma a determinar seu destino e sua vida.
Talvez ele tenha sido influenciado por pensadores do passado, como os citados,entretanto, me pergunto se o ocorrido com este “sujeito”[46] não seria uma nova forma de resistência em um novo contexto histórico – não mais aquele do século XX, mas o do século XXI. Pergunto-me por que a maior parte da crítica brasileira cinematográfica tratou o objeto do filme como uma questão passadista e não relevante para a contemporaneidade. No entanto, penso que o filme traz questões atuais, e que colocam em cheque valores considerados fundamentais para as sociedades capitalistas.
Sua viagem torna-se uma ruptura com sua identidade dada, e é por isso que ele muda de nome, e rompe com um passado que deseja esquecer. Isso é interessante, se pensarmos que Paul Ricoeur afirma que o nome próprio é uma forma de singularizar o indivíduo e apenas ele com exceção de todos os outros, e que o sujeito designa-se no momento de socialização.[47] Ele muda seu nome para Alexander Supertramp (tramp significa vagabundo em inglês), e rompe definitivamente com todo seu circulo social abastado. É interessante pensar que não obstante sua vontade em romper socialmente com a vida de cidadão (destrói seus documentos, cartões de crédito e dinheiro). Sua promessa não supunha a presença dos outros, mas como diz Norbert Elias, o nome da pessoa significa que sua existência como ser individual é indissociável de sua existência como ser social.[48] Por isso, logo ele percebe em sua viagem “sem destino” que faz parte de um grupo humano, aquele dos “glober-trotters”, ou ainda dos que concientemente se colocaram à margem da sociedade norte-americana. Podemos ainda observar, que mesmo as pessoas que assim procedem, em qualquer sociedade, ainda acabam, mesmo que marginalmente, fazendo parte do sistema econômico e social que os engloba.[49]
Na verdade, penso que sua atitude é motivada por uma crise de identidade, que se inicia, no filme, quando descobre a existência da outra família de seu pai, e a farsa que era o casamento de seus pais. Para o personagem, isso é apresentado como um sentimento de ser “bastardo” e de “não pertencer” verdadeiramente ao seu grupo social. É por isso que pretende, por meio de experiências, alterar sua capacidade de memória e formar uma nova identidade e um novo passado. Sua busca o faz perambular pelos Estados Unidos, de cidade em cidade, de Estado em Estado, o que lhe permite desvendar espaços urbanos e rurais e conhecer pessoas das mais diversas tendências e visões de vida. E, uma vez superada cada etapa dessa viagem, a busca por um refugio na vastidão gelada do Alaska, ainda selvagem, representa talvez um “refugio” para refletir sua identidade.. Aqui me parece que sua motivação não é irracional, mas justamente uma tentativa desesperada de resistir aos “mecanismos disciplinadores”[50]: a saber: Universidade, carreira, família etc. Isso fica bastante evidente, quando, no filme ele se vê em um rapaz de terno e gravata. Na verdade, o que ele busca não é a liberdade, mas apenas resistir a normatização.
Ele também pretende escapar da centralidade do econômico na vida. É por isso que no começo do filme ele queima em um ritual simbólico todos os seus dólares. É aí que, ele parece não esquecer as palavras de Tolstoi que afirmava que “Não alcançamos a liberdade buscando a liberdade, mas sim a verdade. A liberdade não é um fim, mas uma conseqüência.”Assim como parece não esquecer as palavras de Lord Byron: "Ainda que tivesse que ficar só, não trocaria a minha liberdade de pensar por um trono." Parece-me que o personagem escolhe de maneira radical uma forma de “Ética da Convicção”[51]. Penso mesmo que a biografia deste poeta (Byron) lhe é particularmente influenciadora, assim como aquela de Thoureau. Ele parece, entretanto, mais um anarquista e não um seguidor do autor da Desobediência Civil (que não era anarquista – mas reivindicava um justo governo como está expresso na Constituição Norte-Americana)[52]. A resistência do personagem do filme é tão radical e individualista que sua busca por um sentido “vitalista” para a existência têm um trágico desfecho. Seu individualismo em certo sentido torna-se um dogma. E isso parece confirmar as palavras de Horkheimer, que quanto mais individualista uma sociedade é, menos indivíduos ela têm, pois que me questiono o quão indíviduo e livre era o personagem do filme..
Entretanto, talvez a situação colocada pelo filme é mais como aquela afirmada por Canetti, “Plus on lutte « pour sa propre survie.”, plus il devient évident qu’on lutte contre les autres qui vous gênent de tous les côtés.[53] Penso que é também este tipo de relação e sentimento aqui em questão[54].
Sua revolta é individual e sua tentativa de retorno à natureza que certamenteé profundamente romântica talvez não tenha o caráter libertador que aparentemente possa parecer ter.. Ele não escapa ao, ao estigma do herói individualista[55], e por isso, encerra sua revolta numa tragédia de um homem só, que, afinal, acaba em si próprio.
Entretanto, penso que talvez eu seria a-histórico se pensasse que suas motivações foram unicamente influenciadoras em sua “quebra” com seu mundo e sua busca por aventura. É quase certo que sim, entretanto, vivemos em uma nova configuração política e sistêmica – em que talvez os poderes não se constituem mais como há 40 anos. É bastante sintomático, que o mundo está passando por uma terceira revolução tecnológica e isso traz conseqüências para a identidade do indivíduo. Se já no tempo de Simmel, era possível identificar uma desagregação nas “comunidades” nas grandes cidades, e se no tempo de Horkeheimer e Adorno também era possível identificar uma desagregação dos indivíduos e suas identidades, agora segundo vários sociólogos ou cientistas políticos (Baumman, Antonio Negri, Michael Hardt, Michel Mafesoli)[56] as identidades estão frouxas, ou tornaram-se atualmente plásticas e esquizóides. Agora, ao contrário de anos atrás, quando o indivíduo se constitui não há mais uma identidade dada, é preciso fabricar uma – e isso, certamente, não é um processo simples. Podemos usar as referências de 40 anos atrás para pensar o processo contemporâneo que atravessa o mundo moderno? Quais as conseqüências desse processo, estudado por tantos autores contemporâneos na vida dos indivíduos? É claro que a teoria destes clássicos nos ajuda, como ajuda aos teóricos do tempo presente, entretanto, elas não contêm a observação empírica do hoje.
Como então pensar seu ato isolado romântico e heróico? Como entendê-lo? Como desconsiderar, por exemplo, a questão ecológica, as transformações sócioeconomicas pelas quais o mundo vem passando, a dissolução ou transformação dos modelos de sociedades humanas e de identidades, presentes na reflexão individual. De alguma forma, este filme fala do que somos hoje e do que nos tornamos, e da vontade ou (im?)possibilidade de resistir aos mecanismos disciplinadores. Talvez se trate de uma questão de fundo existencial, do indivíduo que, sujeitado por uma gama de feixes de força e poder, pergunta-se: “O que eu sou?”, “O que eu quero?”
Talvez, Georg Simmel possa iluminar-nos neste mistério:
La dernière raison des contradictions internes de cette configuration peut être formulée ainsi: entre l’individu, avec ses situations et ses besoin d’un côté, et toutes les entité supra- ou infra-individuelle et les dispositions intérieures ou extérieures que la structure collective apporte avec elle d’un autre côté, il n’y a pas de relation constante, fondée sur un principe, mais une relation variable et aléatoire. (…) Ce caractère aléatoire n’est pas un hasard, si l’on peut dire, mais l’expression logique de l’incommensurabilité entre ces situations spécifiquement individuelles dont il est question ici, avec tout ce qu’elles exigent, et les institutions et atmosphères qui régissent ou qui servent la vie commune et côte à côte du grand nombre.[57]
La faculté de l’homme de se diviser lui-même en parties et de ressentir une quelconque partie de lui-même comme constituant son véritable Moi, qui entre en conflit avec d’autres parties et lutte pour la détermination de son activité – cette faculté met fréquemment l’homme, pour autant qu’il a conscience d’être un être social, dans une relation d’opposition aux impulsions et intérêts de son Moi qui restent extérieures à son caractère social: le conflit entre la société et l’individu comme un combat entre les parties de son être.[58]
Entretanto, como Simmel, creio que uma realidade histórica é como uma multiplicidade de ações dos indivíduos, e que não se pode percebê-la muito bem[59]. Enganei-me até agora quando pretendi encontrar razões para o “comportamento” do personagem real ou ficcional. Trata-se, na verdade, de debruçar-me sobre a obra fílmica e sobre o que ela diz sobre seu tempo, ou seja, não o tempo em que os “fatos” retratados pelo filme se passaram, mas sobre nosso próprio tempo, o tempo em que o filme foi feito. Trata-se talvez de se fazer uma História do Tempo Presente, por meio de um documento cinematográfico.
A esse respeito, são profundamente elucidativas as palavras de Coetzee, pois elas foram escritas com um olhar para nosso tempo, mas que são, claro, apenas um ponto de vista[60]:
Nascemos sujeitos[61]. Desde o momento de nosso nascimento somos sujeitos. Uma marca dessa sujeição é a certidão de nascimento. O Estado aperfeiçoado detém e mantém o monopólio de certificar o nascimento. Ou você recebe (e leva consigo) uma certidão do Estado, adquirindo assim uma identidade que no curso da vida permite que o Estado o identifique e localize (vá em seu encalço), ou você segue em frente sem uma identidade e se condena a viver fora do Estado como um animal (animais não têm documentos de identificação). [62]
O problema em analisar este filme é que justamente por ser baseado em fatos reais, e na vida de um homem real, torna-se uma tarefa quase mística tentar entender as razões que o fez abandonar a cidade: quem sabe ecos da fuga mundi medieval, tradição começada por Santo Antonio do Egito, e continuada por várias ordens monásticas – e que talvez tenha ecoado em críticos da vida na cidade como Thoreau, Nietzsche[63], Emerson[64] ou Dostoiévski[65]. Ao meu ver, entretanto, é quase certo que idéias gerais, dispersas e difundidas, literatura e poesias teriam influência determinante em seu comportamento – mas esse não é meu problema. Também poderia dizer que encontramos nestes autores como no personagem do filme ecos de estoicismo. Entretanto, tais apostas seriam apenas conjecturas, pois eu nunca saberei o que se passava na cabeça de um indivíduo que nem mesmo está agora vivo (não posso entrevistá-lo, nem ao menos tenho acesso a documentos e vestígios de sua vida). Contudo, penso que estou enfrentando um falso dilema, pois que não estou refletindo entre a distância existente entre arepresentação (filme) e os acontecimentos em si – do hoje, penso que me deixei levar por uma vontade de verdade, do tipo que Nietzsche já falava:
O que é pois a verdade? Um exercício móvel de metáforas, mitomanias, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram realçadas poética e retoricamente, transpostas e adornadas, e que, após uma longa utilização, parecem a um povo consolidadas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões das quais se esqueceu que elas assim são.[66]
Assim infiro que talvez o problema colocado seja muito mais de ordem teórica ou filosófica do que de ordem psicológica. O livro Dialética do Esclarecimento[67], toca muito profundamente no problema principal colocado pelo filme, e que depois seriam desenvolvidos posteriormente tanto por Adorno quanto por Horkeheimer. A questão a que me refiro foi muito bem condensada por Jeanne Marie Gagnebin nos seguintes termos, quando comenta os episódios das sereias e do ciclope descritos na Dialética:
Na interpretação desses dois episódios da odisséia, Adorno e Horkheimer insistem, portanto, enfaticamente no preço que o sujeito racional deve pagar para se constituir, na sua autonomia, e poder se manter vivo. Esse preço é alto: não é nada menos que a própria plasticidade da vida, seu lado lúdico, seu lado de êxtase e de gozo[68] ;a vida se auto-conserva renunciando à sua vivacidade mais viva e mais preciosa – daí a infinita tristeza do burguês adulto bem sucedido.[69]
Trata-se pois de um problema filosófico e sociológico, aquele que pergunta que parece ser o grande drama da modernidade: por que para sobrevivermos é preciso renunciar ao gozo da vida e ao êxtase? O que foi expresso por Marcuse como: “Le confort, l'efficacité, la raison, le manque de liberté dans un cadre démocratique, voilà ce qui caractérise la civilisation industrielle avancée et témoigne pour le progrès technique.”[70]
No entanto, se nos concentrarmos somente na visão de Adorno e Marcuse, não conseguiremos chegar em algo além do nada e da desesperança – características talvez de seu tempo e de suas experiências. Seria muito mais justificável pensar esta questão colocada em nosso tempo, pois ela é cada vez mais premente. Por isso, talvez seja oportuno trazer a contribuição de Axel Honneth:
“Les individus ne se constituent en personnes que lorsqu’ils apprennent à s’envisager eux mêmes, à partir du point de vue d’un ‘autrui’ approbateur ou encourageant, comme des êtres dotés de qualités et de capacités positives. L’étendue de telles qualités, et donc le degré de cette relation positive à soi-même, s’accroît avec chaque nouvelle forme de reconnaissance que l’individu peut s’appliquer à lui-même en tant que sujet.”[71]
Todavia, apesar desta contribuição ser um tanto mais aguda e positiva[72], em minha opinião ainda não responde ao problema colocado acima, além dos problemas colocados por uma nova configuração do mundo[73]. Não me convenço que as condições sociais e políticas atuais permitam o livre desenvolvimento das individualidades e suas potencialidades configuradas sob a forma estatal ou coletiva. A meu ver, essa possibilidade somente poderia ser vislumbrada, paradoxalmente, em movimentos individuais subjetivados ou em movimentos horizontais da multidão[74]. Como diz Hayden White "O historiador não ajuda ninguém construindo uma refinada continuidade entre o mundo presente e o que procedeu. Ao contrário, necessitamos de uma história que nos eduque a enfrentar descontinuidades mais do que antes; pois a descontinuidade, o dilaceramento e o caos são o nosso dote."[75] Nosso tempo, é interessantemente marcado pela orfandade em utopias e por dilaceramentos, se por um lado isso constitui um desequilíbrio para o indivíduo e para a sociedade, de outro representa uma oportunidade que cada um redescubra os caminhos para viver e dar razão à liberdade. Nesse sentido, o “niilismo” da época atual pode ser considerado não um risco, mas uma oportunidade de reflexão e superação. Como afirmou Simmel, o “eu” que existe em cada um é um devir, não algo cristalizado, e em nosso tempo onde as instituições muitas vezes estão frouxas, se o risco de atomização e desagregação existe, também há uma potencialidade de libertação nesse afrouxamento. Aquela contradição[76] indicada por Marx como pelos vários integrantes da Escola Crítica constitui um paradoxo opressor para o indivíduo, mas também pode ser fonte de poder, já que o “capital” precisa necessariamente dos indivíduos para a realização do trabalho. Se, por algum motivo grande número de indivíduos trabalhadores, que antes estavam dispostos a abrir mão do gozo e da vivacidade, para direcionar suas energias psíquicas ao trabalho, cruzar os braços – haverá certamente um colapso no sistema. O problema, no entanto, é que na cultura moderna (ou pós-moderna) o espírito objetivo tende a esmagar o espírito subjetivo (Simmel) e sem este, me parece, que qualquer tipo de reflexão sobre o que fazer e o que (mais importante) não-fazer fica muito prejudicado. Contudo, a atitude aparentemente passiva de grande parte de setores sociais e a re-configuração de tribos urbanas, pode constituir muitas vezes uma forma negativa de resistência.[77] O ato negativo de dizer não se torna um modo de insubmissão[78].
Em seu artigo “O niilismo extático como instrumento da Grande Política”[79], Yannis Constantinedès afirma que para curar o niilismo deve-se empregar um niilismo “conseqüente em ação”, extático, para se evitar o desespero da falta de rumos, utopias ou da crise de identidades. Ele escreve: “Para libertar enfim a ação e o horizonte humanos, até então prisioneiros do “refúgio” da moral, faz-se necessário não apenas rejeitar toda expectativa, mas também superar todo desespero, estar pronto para viver nos confins da incerteza radical, sem sofrer com o absurdo da existência e sem esperança de redenção. (...) A grande política possui um conteúdo definitivamente positivo: reencantar o mundo “ensombrecido” pelo ideal moral e devolver à vida, abatida e rasa após a morte de Deus, toda sua substância, a esquecida profundidade da imanência, da sombra dionisíaca.”[80] Trata-se da proposta nietzscheana de usar o próprio niilismo radicalizado contra a crise da civilização moderna, trata-se de um remédio que não serve ao rebanho democrático, mas somente à “indivíduos sintéticos[81] e soberanos”.[82] Trata-se mais daquela proposta de L. Durant, destacada por P. Ricoeur[83]: um indivíduo que é um universal da cultura e ser independente e autônomo não social ao mesmo tempo. Como nos lembrou Norbert Elias[84], a solidão, a dificuldade de se estabelecer laços genuínos com outras pessoas é uma das características marcantes da “personalidade moderna”, entretanto se encaramos o indivíduo da forma proposta por Constantinedès, isto não é um aspecto negativo, mas talvez a possibilidade de uma superação e revolução individualizada. Uma proposta semelhante nos dá o professor Carlos A. R. de Moura:
Superar o niilismo não será de forma alguma reeditar um novo platonismo, voltar a vestir a velha casaca de professor da meta da existência e de redescobrir outro sentido para a vida. A superação do niilismo será um assunto interior ao próprio niilismo. O que se trata de fazer é pôr fim à associação entre o vir-a-ser e o sofrimento, aquilo mesmo que levava à condenação do mundo dava origem ao cristianismo, à moral e à filosofia. Era isso que facultava a culpabilização, o ressentimento e a vontade de vingança. (...) Esta nova perspectiva em que termina toda e qualquer distância entre ser e vir-a-ser, agora deliberadamente despojado de todo qualquer finalismo. (...) O niilista consumado não perguntará mas “para quê?” – precisamente a tópica que uma vez formulada, nos reinscrevia na órbita da tradição, da decadência, da fraqueza. (...) Se cada momento do vir-a-ser está justificado, visto que ali não se explica nenhuma meta, então todos os momentos do vir-a-ser têm igual valor, e a soma de seu valor permanece sempre igual.[85]
Isso significa de certo sentido dar um radical valor aos momentos da vida e talvez a recusa dos indivíduos em abrir mão do gozo e do êxtase em nome do trabalho, da produção, sobrevivência ou qualquer outro tipo de ação utilitarista. Talvez aí o problema esteja colocado nos termos que La Boètie, o havia feito em 1549. O texto[86] de La Boétie colocava em questão a legitimidade de toda ‘autoridade’, e em certo sentido ao questionar a submissão à autoridade – seja príncipe ou autoridade eclesiástica (e as razões da submissão voluntária dos homens), acaba assumindo um caráter precursor «anarquista» avant-la-lettre. Ele debruçou-se sobre a relação dominação – servidão, pensando a liberdade como conceito fundamental. Discute-se neste texto, de forma marcante, a razão da submissão[87] .Sem, no entanto nos oferecer uma resposta satisfatória ou conclusiva[88]. Para La Boétie o homem é ‘naturalmente’ livre, e por isso a amizade e a sociedade entre os homens deveriam bastar, porém o que se vê, segundo seu ponto de vista, é o estabelecimento da dominação. Para entender a submissão ele supõe que a primeira natureza humana, a da liberdade, foi substituída por uma segunda natureza – que se deixa seduzir por princípios exteriores à liberdade de todos os homens, princípios do Poder, ou do Príncipe ou do Tirano. É, para ele, então o povo que cede sua liberdade, e não o tirano que a arranca do povo. Na verdade a conclusão mais interessante de La Boétie é que a servidão do homem não existe desde sempre e é na verdade uma construção histórica. O Discurso é, portanto, uma crítica radical ao fundamento do Estado absolutista que começa a tomar forma em sua época (1549) por meio de uma forma plena de dominação política. A solução ao problema da servidão e da dominação talvez para o autor pela uma forma de «resistência passiva»[89] às formas de poder. Por isso sua contribuição tem muito valor em nossos dias. O poder, aqui, em nosso caso e em nosso tempo pode ser entendido em sentido largo, não somente o poder estatal, mas o poder micromolecular descrito por Foucault e desenvolvido por Antonio Negri em seus Livros Império e Multidão[90]. Trata-se de uma rebelião contra o fetichismo e a reificação, e uma proposta política por um “retorno do reprimido”.
Podemos lembrar-nos de um comentário feito por um leitor de Thoreau sobre o que hoje podemos chamar de reificação e fetichismo: “Uma Vida que não consiste em nada além de comer, beber e trabalhar não é uma vida humana – é a vida de um animal irracional. Essa vida não vale a pena ser vivida. Se é (sic) para perdermos todos os nosso dias e noites em uma espécie de servidão penal, continuamente labutando e sofrendo para viver, é melhor quebrarmos logo as correntes de nossa amarga escravidão e morrer.”[91]
Isto não nos leva a compreender ou entender o problema colocado: aquele da reificação da vida, que segundo teóricos como Axel Hommeth, aquela experiência determinada segundo fins calculáveis (segundo a Definição de Lukács no livro História e Consciência de Classe[92].),tornou-se um feixe de biopoder, uma reificação microfísica[93]. Hoje, como nunca antes as pessoas são cotidianamente tratadas como objetos, as relações sociais e afetivas passam por uma mercantilização; e o corpo e o sexo não são mais do que subprodutos dos interesses do capital, internalizado no nível das inconsciências[94]. Ora, o que fazer diante de um quadro tão absurdo e desolador, por que, penso que no fundo é disso tudo que se trata o objeto do filme “Into the Wild”. Quais as possibilidades de se quebrar com a lógica deste processo de desumanização do homem? Para Hommeth a solução parece estar no reconhecimento intersubjetivo, e em uma postura caracterizada pela participação ativa e pelo envolvimento existencial, atitudes que seriam absolutamente contrastantes com a atitude média de apatia e contemplação passiva. Na verdade penso que o problema é tão complexo, que mesmo que eu escrevesse uma tese talvez não encontrasse uma solução, pois acho mesmo que se trata do impasse em que a humanidade tem diante de si. Ou desperta de seu sonho mercantil, ou perecerá em um cataclismo ecológico.
Muitas podem ser as saídas, muitas pessoas, felizmente, estão pensando sobre o problema, e nesse sentido, temos um componente individual presente e ativo, mas penso, entretanto que a solução passa necessariamente por capacidades de ação coletivas, que nos retirem desta perspectiva egoísta em que mergulhamos.Infelizmente, sou forçado a admitir, no final deste trabalho, que sou um tanto cético quanto as reais possibilidades de a humanidade sair da beira do abismo, por isso, gostaria de terminar meu trabalho com uma longa citação de Albert Camus, do Livro o Mito de Sísifo: pois que a questão do suicídio colocada no filme, hoje está colocada para nós enquanto espécie:
“Cenários desabarem é coisa que acontece. Acordar, bonde, quadro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro horas de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta e sábado no mesmo ritmo, um percurso que transcorre sem problemas a maior parte do tempo. Um belo dia, surge o “por quê” e tudo começa a entrar numa lassidão tingida de assombro. “Começa”, isto é o importante. A lassidão está ao final dos atos de uma vida maquinal, mas inaugura ao mesmo tempo um movimento da consciência. Ela o desperta e provoca sua continuação. A continuação é um retorno inconsciente aos grilhões, ou é o despertar definitivo. Depois do despertar vem, com o tempo, a conseqüência: suicídio ou restabelecimento.[95]
[1] FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. IN: _____ Microfísica do Poder. RJ: Graal, 1984, p.23.
[2] O historiador Nicolau Sevcenko utiliza-se como referencias teóricas Ludwig Wittgentein e o cita na epigrafe: “A Filosofia é a batalha contra o enfeitiçamento da nossa inteligência por meio da linguagem.” L. Wittgenstein. Philosophical Investigations apud: N. Sevcenko. Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras:2003. pp 6.
[3] RICOEUR, P. La Mémoire, L´histoire, l´obli. Paris: Éditions de Seuil, 2000.
[4] Como afirma Croce, “(...) deve haver uma razão pela qual tanto a crônica como os documentos sejam aparentemente anteriores à história e sejam sua fonte extrínseca. O espírito humano preserva os despojos mortais da história – as narrativas vazias, as crônicas; e esse mesmo espírito recolhe os vestígios da vida passada, despojos e documentos, procurando conservá-los tanto quanto possível intactos e restaurá-los à medida que se vão deteriorando. Qual é o objetivo destes atos de vontade que se concretizam na conservação daquilo que é vazio e morto? (...) Mas os sepulcros não são estultícia e ilusão; são pelo contrário, um ato moral pelo qual se afirma, simbolicamente a imortalidade das obras realizadas pelos indivíduos que, embora mortos, vivem na nossa memória e viverão na memória do futuro. E um ato de vida é aquele transcrever de histórias ocas e aquele recolher de documentos mortos. O momento virá em que eles se apressarão a reproduzir no nosso espírito e a tornar presente, enriquecida, a história passada. Com efeito, a história morta revive e a história passada de novo se torna presente na medida em que assim o exige o desenvolvimento da vida.” CROCE, Benedetto. História e Crônica IN: GARDINER, Patrick. Teorias da História. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s/d. pp.281-282
[5] Podemos nos remeter a Croce que afirmava corretamente que a escrita da história vê sempre o passado com os olhos do presente. Para Croce o desvendar do “sentir e pensar” de uma época é o que torna possível a descrição e a interpretação históricas. Perguntamo-nos, porém, será possível pensar o passado e os documentos selecionados pelo tempo com a mentalidade (o sentir e o pensar) da época em que nos debruçamos? Pessoalmente penso que não. A mentalidade de uma época pode ser intuída, aproximada, mas nunca exatamente compreendida. De qualquer forma concordo que a apreensão do pensamento e o sentir de uma época seria o objetivo primordial que busca o historiador em suas pesquisas.
[6] Essa questão muito pertinente diz respeito a refletir sobre o fato que o trabalho do historiador não possui um conjunto fechado de regras a seguir para se eliminar a subjetividade - já que essa eliminação é impossível – a objetividade hoje pode ser considerada um mito criado pelo entender positivista da ciência, próprio do século XIX. Por isso, Michel Foucault, seguindo a trilha traçada por Nietzsche, lembra-nos em um trecho interessante de “A Microfísica do Poder” que o historiador não deve temer ser subjetivo e perspectivo. Não deve, pois, tentar empreender um aniquilamento do eu : “Em vez de fingir um discreto aniquilamento diante do que ele olha, em vez de aí procurar sua lei e a isto submeter cada um de seus movimentos, é um olhar que sabe tanto de onde olha quanto o que olha.” FOULCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Editora Graal, 2004. p.30. O historiador deve, assim saber de onde olha e para onde olha, e aceitar sua subjetividade, buscando penetrar na natureza do documento, em seu conteúdo e suas possíveis ausências.
[7] Seleção esta que pode ser feita pelo próprio tempo, pelo historiador, ou ainda outro ator envolvido no processo. Deve-se levar em conta que esta seleção pode ter sido feita com critérios variados, e muitas vezes, com fins específicos. É importante também lembrar que os documentos não são selecionados pelo tempo de forma estritamente objetiva, eles podem ser, por exemplos, guardados, produzidos ou encontrados de forma casual ou intencionada – o que pode modificar qualquer interpretação. Além disso, temos que lembrar que aquele que registra e/ou produz a fonte histórica, o faz com determinada ou indeterminada intenção – que nem sempre pode ser “apanhada” pelo historiador. Devemos então buscar quais eram esses critérios e quais estas intenções? É por isso que Collingwood, seguidor de Croce, afirma que temos que tentar nos aproximar da mentalidade da época para melhor interpretarmos qualquer documento. Para ele, o pensamento é conceito fundamental da investigação histórica.
[8] Lucien Lebvre por isso afirmava: Ora, sem teoria prévia, sem teoria preconcebida, não há trabalho científico possível. Construção do espírito que responde à nossa necessidade de compreender, a teoria é a própria experiência da ciência. De uma ciência (a história) que não tem como último objetivo descobrir lei, mas sim possibilitar-nos a compreensão. Febvre, Lucien. Combats pour l’histoire IN: MOTA, Carlos Guilherme. Febvre. São Paulo: Editora Ática, 1978. pp. 106
[9] É por isso que Gilles Deleuze e Félix Guattari afirmam: “O que a História capta do acontecimento é a sua efetuação em estados de coisas ou no vivido, mas o acontecimento em seu devir, em sua consistência própria, em sua autoposição como conceito, escapa à História. Os tipos psicossociais são históricos, mas os personagens conceituais são acontecimentos. A história não é a experimentação, ela é somente o conjunto das condições quase negativas que tornam possível a experimentação de algo que escapa à história. Sem história, a experimentação permaneceria indeterminada, incondicionada, mas a experimentação não é histórica, ela é filosófica.” DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997. p. 143, Ou seja, essa posição afirma que não podemos compreender o fato do passado em seu “devir”, apenas em estado de coisas, em outras palavras, a história apenas tenta recriar, através de um discurso, o vivido, o "fato como ocorreu". Para esses autores somente a filosofia poderia, realmente experimentar. Esta crítica é pertinente em alguns casos e posições historiográficas, porém, mesmo assim, parece esta ser uma crítica pautada em um fazer histórico visto ao modo de Ranke ou da escola metódica.
[10] Febvre, Lucien. Combats pour l’histoire IN: MOTA, Carlos Guilherme. Febvre. São Paulo: Editora Ática, 1978
[11] Whyte, Hayden. Trópicos do Discurso. Ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 2001.
[12] Meta-História: A imaginação histórica do século XIX. São Paulo, Edusp, 1995.
[13] Austen, Jane. The Northanger Abbey. Londres: Penguin Uk, 2001.
[14] Ginzbourg, Carlo. “Sinais: Raízes de um paradigma indiciário” in: Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História. São Paulo, Companhia das Letras, [s. d.].
[15] Devemos lembrar também que os documentos de caráter não-ficcional encerram em certa medida um caráter de ficção. Penso não ser mais possível, desde Nietzsche, falar em verdade sem aspas sem que usemos de alguma ironia. Assim, um documento encerra todas as contradições, subjetividade e paradoxos de seu produtor e sua época. Mesmo que o discurso deste documento pretenda-se verdadeiro, sabemos que o historiador deve consciente disso refletir sobre essa contradição, e fazer uma análise crítica em sua tentativa de re-apresentar um tempo. Nietzsche: A defesa Poética da História no modo metafórico. IN: Meta-História: A imaginação histórica do século XIX. São Paulo, Edusp, 1995.
[16] Le Goff, Jacques. História e Memória, Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.
[17] Por isso Antonio Candido escreve: “(...) a primeira tarefa é investigar as influências concretas exercidas pelos fatores socioculturais. É difícil discriminá-los, na sua quantidade e variedade, mas pode-se dizer que os mais decisivos se ligam à estrutura social, aos valores e ideologias, às técnicas de comunicação. O grau e a maneira por que influem estes três grupos de fatores variam, conforme o aspecto considerado no processo artístico. Assim, os primeiros se manifestam mais visivelmente na definição da posição social do artista, ou na configuração de grupos receptores; os segundos na forma e conteúdo da obra; os terceiros, na fatura e transmissão. Eles marcam, em todo caso, os quatro momentos da produção, pois: a) o artista, sob o impulso de uma necessidade interior, orienta-o segundo os padrões de sua época, b) escolhe certos temas, c) usa certas formas e d) a síntese resultante age sobre o meio”.” - Candido, Antonio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária, 6ª ed, São Paulo: Editora Nacional, 1980, p. 21.
[18] Pesavento, Sandre Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 113
[19] Berguer, Peter; Berger, Brigitte e Kellner, Hansfried.
[20] O primeiro, durante a segunda Guerra Mundial engajou-se na resistência francesa ao ocupante nazista, o segundo publicou panfletos anti-semitas, foi considerado colaborador e condenado a morte pela resistência. Com a invasão americana, teve que se refugiar na Dinamarca, onde com o fim da guerra cumpriu pena.
[21] MARCUSE, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial: O Homem Unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar Editores: 1978.
[22] MARCUSE, Herbert. Eros e a Civilização. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor: 2007.
[23] FREUD, Sigmund. Mal Estar na Civilização. Rido de Janeiro: Imago, 1997.
[24] Marcuse (1967) afirmou em A Ideologia da Sociedade Industrial que o estabelecimento da modernidade foi fruto da maquinização (tecnização), do nascimento das grandes cidades industriais e de todos as dificuldades ligados à relação do indivíduo com a sociedade de massa. O indivíduo passou a ser mantido por meio da labuta em uma condição letárgica que o empobreceu culturalmente e fisicamente.
[25] NIETZSCHE. Genealogia da Moral, 3ª Dissertação – O que significam ideais ascéticos. SP: Cia das letras, 20006. p. 149
[26] ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador Político. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor: 2007
[27] Seria interessantíssimo estudar como o pensamento de Nietzsche foi influenciado por Shopenhauer e a escola do pessimismo alemão, assim como Dostoievski, Leopardi e Paul Bourget – com sua teoria da decadência. Infelizmente me falta tempo, competência e espaço para tal pesquisa.
[28] O termo cunhado por Weber, inicialmente dizia respeito a um certo desencantamento do religioso do mundo, mas amplia-se aos poucos, como nos mostra bem o professor Pierucci sobre o mundo da ciência: “Se há ampliação de seu ponto de vista quando se passa do desencantamento religioso para o desencantamento cientifico do mundo, os dois usos se mostram ora simultâneos ou intercalados, nunca porém sucessivos no sentido de ir deixando para trás prismas de análise menos gerais.” (p. 218) PIERUCCI, Antônio Flávio. O Desencantamento do Mundo –Todos os passos do conceito em Max Weber. São Paulo: Editora 34, 2003.
[29] Nietzsche, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Paulo César de Souza. SP: Cia das Letras, 2006.
[30] Aqui uma das referências parece ser Oswald Spengler, que desenvolveu uma Teoria da História baseando-se nas idéias de Nietzsche, e que foi cortejado pelo nazi-facismo, sem, no entanto nunca aderir a ele. O tema da vida parece ser um tanto atual, já que encontramo-nos em época de aquecimento global e desastre ecológico eminente. SPENGLER, Oswald. A Decadência do Ocidente. Ed. Cond. Helmut Werner Trad. Herbert Caro. Brasília: Editora Universidade de Brasília.
[31] ADORNO & HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento, RJ: Jorge Zahar Editor, 1985.
[32] O livro La Raza Cósmica do mexicano José Vasconcelos parece ser um bom exemplo. Foi usado diversas vezes entre os mexicanos tanto pelos campos da direita como da esquerda. VASCONCELOS, José. La Raza Cósmica. Baltimore: 1997. Particularmente penso que um elogio a mestiçagem é sempre interessante, em um tempo em que cada vez mais muros são levantado entre os homens – o muro México/EUA, as cercas que “protegem” a Europa Unida dos imigrantes africanos no sul da Espanha, os muros israelenses etc. O Brasil poderia, neste contexto internacional dar um bom exemplo “levantando” radicalmente as suas fronteiras e abrindo-se para os povos.
[33] MARTINS, Hermínio. Heguel, Texas e Outros ensaios de Teoria Social. Lisboa: Século XXI, 1996.
[34] Há ainda em Nietzsche um flagrante recusar do Estado, que ainda pode ser bastante relevante, mesmo assim como nos diz Dupuy :Voilá pourquoi Nietzsche, em dépit de sa haïne de L´État. Certes, Il avait lu Max Stirner, non sans em subir la séduction, notamment par la tentative, menée au non de la liberté de l´esprit, par l áuteur de L´Unique pour exorciser ses fantômes que les hommes entretiennent dans leur ame, qu´il les aient créés eux-même ou qu´ils leur aient été inculqués par les maîtres de ce monde, souvarains ou penseurs dominants. Ce refus de l´idelisme, comme l antiéttatisme, a pu encontrer em lui qulque écho. Mais les conclusions sociales de Stirner ne pouvaint être les siennes, non plus que celles des autres membres des diverses sectes anarchistes. (Politique de Nietzsche, Presenté e org. René-Jean Dupuy. Paris: Librarie Armand Colin, 1969.)
[35] Toda aquela moral que nega a vida.
[36] CORAZZA, Sandra, TADEU, Tomaz e Zordan Paola. Linhas de Escritas. São Paulo: Autêntica, 2004
[37] HORKHEIMER, MAX. Ascensão e declínio do indivíduo. Eclipse da razão. Rio de Janeiro: Labor, 1976.
[38] DUPAS, Gilberto. O
[39] HORKHEIMER, Max.
[40] Há certamente um eco do espírito dos anos trinta do século XX e do movimento romântico de volta à natureza nesta ação.
[41] Certamentes versos de Byron como: What Exile from himself can flee?/To zones though more and more remote,/ Still, still pursues, where´er I be,/ The blight of life – the denin Tgought. (Byron. Poemas, trad. Péricles Eugênio da Silva, ed. Bilíngüe, SP: Editora Hedra, 2008, p. 58.
[42] Talvez ele também tenha lido Dostoiévski que afirmava: “A falta de liberdade não consiste jamais em estar segregado, e sim em estar em promiscuidade, pois o suplício inefável é não se poder estar sozinho."
[43] SIMMEL, G. As grandes cidades e a vida do espírito. MANA 11(2): 577-591, 2005. [Tradução de Leopoldo Waizbort].
[44] SIMMEL, Georg. Questões fundamentais da sociologia. Rio: Jorge Zahar Ed., 2006.
[45] MAFFESOLI, Michel. O Ritmo da Vida. SP: Record, 2007
[46] “Le monde se développe uniquement en fonction des hérésies, en fonction de ce qui rejette le présent, apparemment inébranlable et infaillible. Seuls les hérétiques découvrent des éléments nouveaux dans les sciences, l'art, la vie sociale. Seuls les hérétiques sont l'éternel ferment de la vie.” (Zamiatine, Ievgueni. Nous Autres (dystopie), 1920 - traduit par B. Cauvet-Duhamel, L'Imaginaire Gallimard, 1979.
[47] RICOEUR, Paul. Indivíduo e identidade Pessoal in: Veyne, P. Indivíduo e Poder. Lisboa: Edições 70, 1988.
[48] ELIAS, N. Mudanças na Balança nós-eu. In: A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: J. Zahar Editor, 1994.
[49][49] Ver um lindo romance de Coeetze chamado “A vida e o Tempo de Michael K.”
[50] FOULCAULT, Michel Vigiar e Punir. História da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1977.
[51] LOEWITH, K. – Racionalização e liberdade: o sentido da ação social. In: Foracchi, M. & Martins, J. S. Sociologia e sociedade. Leiruras de Introdução à Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1977.
[52] Lembra-me as palavras de Emma Goldmann: “O individuo é a verdadeira realidade da vida, um universo em si. Ele não existe em função do Estado ou dessa abstração denominada “sociedade” ou “nação”, que não é senão um ajuntamento de indivíduos. O homem sempre foi e é – necessariamente – a única fonte, o único motor de evolução e progresso. A civilização é o resultado de um combate contínuo do indivíduo ou dos agrupamentos de indivíduos contra o Estado, e até mesmo contra a sociedade, quer dizer, contra a maioria hipnotizada pelo Estado e submetida a seu culto. As maiores batalhas já travadas pelo homem foram contra obstáculos e prejuízos artificiais que ele próprio se impôs e que paralisam seu desenvolvimento. O pensamento humano sempre foi falseado pelas tradições, pelos costumes, pela educação enganadora e inícua, dispensada para servir os interesses daqueles que detêm o poder e gozam de privilégios; ou seja, pelo estado e pelas classes proprietárias. Esse conflito incessante dominou a história da humanidade” A visão da anarquista é decerto a-histórica, mas possui elementos que o personagem do filme parece trazer – a resistência radical ao Estado e suas instituições, à Escola. O escrito é do entre-Guerras quando Goldman se encontrava exilada nos Eua. GOLDMAN, O indivíduo, a sociedade e o Estado; e outros ensaios (org e trad: Plínio Augusto Coelho. SP: Editora Hedra: 2007. pp. 31-32. Não posso deixar de pensar também no livro de Henry Miller, Pesadelo Refrigerado.
[53] CANETTI, E. Masse et puissance (1960), (trad. Robert Rovini), éd. Gallimard, coll. Tel, 1998, p. 25
[54] “Toutes les distances que les hommes ont créées autour d’eux sont dictées par cette phobie du contact.” (CANETTI, Elias Masse et puissance (1960), (trad. Robert Rovini), éd. Gallimard, coll. Tel, 1998, p. 11)
[55] Neste aspecto ele me parece um bom seguidor de Thoreau, entretanto no fim do filme ele faz uma “autocritica” com a frase: “Happiness only real when shared”
[56] SIMMEL, G. Indivíduo e liberdade; (1009-117) In: Souza, J. e Öelze, Berthold (org) Simmel e a modernidade. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1998.;SIMMEL, Georg. Questões Fundamentais da sociologia. RJ: Jorge Zahar Editor, 2006.; SIMMEL, George. As Grandes Cidades e a Viça do espírito, tradução Leopoldo Waizbort. Mana 11 (2): 577-591, 2005.; MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: O declínio do individualismo nas sociedades de massa. RJ: Editora Forense Universitária, 2006. Idem, O Ritmo da Vida. SP: Record, 2007; Idem, Sobre o Nomadismo. SP: Record, 2001.MARTINS, Hermínio. Heguel, Texas e Outros ensaios de Teoria Social. Lisboa: Século XXI, 1996., HARDT, M.; NEGRI, A. Império. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2001 / idem, Multidão. RJ/SP: Record, 2005, BAUMAN, Zygmunt. Identidade. São Paulo, Jorge Zahar Editores, 2005, BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. Capítulo II: Interrogando a Identidade.
[57] SIMMEL, G. Sociologies, Paris: Puf, 1999. p. 200.
[58] IDEM, Sociologie et épistémologie, Paris: Puf, 1981, pp. 137-138
[59] RICKERT, H. Les problèmes de la philosophie de l'histoire une introduction. Toulouse: Presses Universitaires Mirail-Toulouse
[60] Particularmente penso que nossa sujeição não passa somente pelo estado, hoje ela é muito mais complexa. Se pensarmos, por exemplo no fenômeno da moda, onde o que está a venda não são roupas mas “identidades”, percebemos que essa sujeição vai muito além do problema do Estado.
[61] Grifo meu.
[62] COETZEE, J. M. Diário de um ano Ruim, SP: Cia das Letras, 2008. pp. 10
[63] "O que é ser livre ? É não termos vergonha de sermos quem somos." (aforismo 275)
Nietzsche In: Gaia Ciência. SP: Cia das Letras, 2007, p. 186
[64] Emerson, Ralph Waldo. Société et
[65] "A falta de liberdade não consiste jamais em estar segregado, e sim em estar em promiscuidade, pois o suplício inefável é não se poder estar sozinho." (Dostoievski)
[66] NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a verdade e a mentira no sentido extra moral. (org e trad.: Fernando de Morais Barros. SP: Editora Hedra, 2007. p. 36-37. Também podemos observar os comentários de White: “(...) se não existem fatos brutos, mas eventos sob diferentes descrições, a factualidade torna-se questão dos protocolos descritivos para transformar eventos em fatos (...) Os eventos acontecem, os fatos são constituídos pela descrição lingüística. O modo da linguagem usado para constituir os fatos pode ser formalizado e governado por regras, como nos discursos científicos e tradicionais; pode ser relativamente livre, como em todo discurso literário modernista ou pode ser uma combinação de práticas discursivas formalizadas e livres.” WHITE, Hayden. "Teoria literária e escrita da história." In: Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 7, 1994, pp. 21-48.
[67] ADORNO & HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento, RJ: Jorge Zahar Editor, 1985
[68] grifo da autora.
[69] GAGNEBIN, Jeanne Marie. Homero e a Dialética do Esclarecimento In: Lembrar escrever esquecer. SP: Editora 34, 2006. p. 34.
[70] L'Homme unidimensionnel (1964), Herbert Marcuse (trad. Monique Wittig), éd. Les Éditions de Minuit, coll. Points, 1968, p. 29
[71] Honneth, A. La lutte pour la reconnaissance, Paris: Cerf, 2000
[72] Em um artigo posterior o mesmo autor acrescentaria sobre a possibilidade de realização individual depende da relação com o outro, e afirma de maneira crítica: De manière indirecte, j’ai déjà fait précédemment allusion à ma manière d’imaginer la justification normative de l’idée selon laquelle le point de référence d’une conception de la justice sociale doit trouver son ancrage dans la qualité des relations de reconnaissance mutuelle au sein d’une société. Pour les sociétés modernes, je pars ce faisant de la prémisse que l’égalité sociale consiste à permettre à tous les membres de la société de se forger une identité individuelle. Pour moi, cette formulation revient à dire que le véritable but recherché lorsque l’on parle de l’égalité de traitement de tous les sujets dans nos sociétés doit être la possibilité pour tous de réalisation individuelle. La question qui se pose est cependant de savoir à partir d’un tel point de départ (libéral), s’il est possible d’en arriver à la conclusion que c’est la qualité des conditions de reconnaissance sociale qui doit constituer le cœur d’une éthique politique ou d’une morale de la société. Mon idée est, ici comme je l’ai déjà évoqué, que nous devrions généraliser nos connaissances relatives aux conditions sociales de la formation de l’identité dans une conception qui prenne la forme d’une théorie de la moralité de type égalitaire. Dans une telle conception, nous exprimions quelles conditions nous considérons comme impératives pour donner à chaque individu la même chance de réaliser pleinement sa personnalité individuelle. (…) E conclui neste mesmo artigo: Il découle de ces réflexions qu’un concept de la justice basé sur la théorie de la reconnaissance peut assumer une fonction critique, et non pas seulement là ou il est question de la défense juridique de progrès moraux dans les sphères de reconnaissance respectives. On a également constamment besoin d’un examen réflexif des frontières qui se sont établies entre les territoires respectifs des différents principes de reconnaissance, car le soupçon ne peut jamais être levé, que le partage du travail établi entre les sphères morales ne porte atteinte aux possibilités de formation de l’identité individuelle. Et il n’est pas rare qu’une telle remise en question en vienne à la conclusion qu’un élargissement des droits individuels est nécessaire lorsque, sous le régime des principes normatifs de « l’amour » ou de la « contribution », les conditions de respect et d’autonomie ne sont pas suffisamment garanties. L’esprit critique d’un tel concept de justice peut bien sûr ici entrer en conflit avec sa fonction propre de préservation, puisque toutes les légitimations morales en faveur des déplacements de frontières comportent également la nécessité d’un maintien de la séparation des sphères, car les conditions de la réalisation individuelle dans la société moderne ne sont, comme nous l’avons vu, garanties que socialement, lorsque les sujets ont la possibilité de faire l’expérience d’une reconnaissance intersubjective, non seulement de leur autonomie personnelle, mais aussi de leurs besoins spécifiques et de leurs capacités particulières. Idem, Reconnaissance et justice In: Revue Le Passant Ordinaire, número 32, 2002 (http://www.passant-ordinaire.com/revue/38-349.asp)
[73] Ver: HARDT, M.; NEGRI, A. Império. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2001 / idem, Multidão. RJ/SP: Record, 2005.
[74] Idem
[75] WHITE, Hayden. "O fardo da história in: Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. Trad. Alípio Correia de Franca Neto. 2ª ed. São Paulo: EDUSP, 2001. p. 39-64.
[76] Indicada acima.
[77] Ver: MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: O declínio do individualismo nas sociedades de massa. RJ: Editora Forense Universitária, 2006.
[78] É exemplar o caso das periferias francesas onde uma “horda de novos bárbaros” incendiou carros em uma fúria aparentemente sem objetivos políticos concretos. Cabe pensar se este tipo de acontecimento é uma nova forma de resistência aos mecanismos biopolíticos de dominação.
[79] In:Cadernos Nietzsche 22, São Paulo: GEN/FFLCH, 2007
[80] Idem, p. 136-137
[81] Seria o verdadeiro homem, que é retratado no filme, esse tipo de indivíduo? Existe esse tipo de indivíduo?
[82] Iden, p. 127
[83] RICOEUR, Paul. Indivíduo e identidade Pessoal in: Veyne, P. Indivíduo e Poder. Lisboa: Edições 70, 1988.
[84] ELIAS, N. Mudanças na Balança nós-eu. In: A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: J. Zahar Editor, 1994.
[85] MOURA, Carlos A. R. de, Nietzsche: civilização e cultura. SP: Martins Fontes: 2005. p. 258-261
[86] LA BOÈTIE, Étienne, Discurso da Servidão Voluntária. São Paulo: editora Brasiliense, s/d.
[87] Antecipando uma questão levantada por Wilhem Reich: por que o povo não se revolta?
[88] “Incrível coisa é ver o povo, uma vez subjugado, cair em tão profundo esquecimento da liberdade que não desperta nem recupera; antes começa a servir com tanta prontidão e boa vontade que parece ter perdido não a liberdade mas a servidão.” (La BOÈTIE, Idem.)
[89] Principio este que será retomado por Henri David Thoreau, em seu livro A Desobediência Civil.
[90] HARDT, M.; NEGRI, A. Império. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2001 / idem, Multidão. RJ/SP: Record, 2005.
[91] Robert Blatchford em seu jornal The Clarion, fundador do Partido Trabalhista Britânico Independente. Apud: KIRK, A. Desobediência Civil de Thoreau. RJ: Jorge Zahar Editor, 2008. p. 70
[92] http://www.scielo.br/pdf/ln/n59/a08n59.pdf
[93] Pergunto-me se o problema da sublimação do gozo isso não se origina de algum conteúdo primitivo reprimido no homem moderno:
“Les instincts de l'homme restent intacts, voici la simple vérité qu'oublient les « rationalistes». Or, sa soif de salut fait partie de l'ordre naturel des choses. Quoi qu'il lui arrive, quels que soient les changements qui s'opèrent en lui, l'homme veut, espère, croit faire son salut, trouver le sens central de son existence, valoriser sa vie.” (Fragmentarium (1989), Mircea Eliade (trad. Alain Paruit), éd. éditions de l'Herne, coll. biblio essais (le livre de poche), 1997, p. 130)
Tradução: Augusto Patrini Menna Barreto Gomes:
“Os instintos do homem permanecem intactos, aqui está a simples verdade que esquecem os “racionalistas”. Ora, sua sede de bem-estar faz parte da ordem natural das coisas. Não importa o que lhe aconteça, e de que ordem sejam as suas transformações, o homem quer, espera, crê poder encontrar seu conforto, encontrar o sentido central de sua existência, valorizar sua vida.”
[94] Poderia-se questionar para quê? Por quê? Como o faz Albert Caraco: « Mais à quoi bon prêcher ces milliards de somnambules, qui marchent au chaos d’un pas égal, sous la houlette de leurs séducteurs spirituels et sous le bâton de leurs maîtres ? Ils sont coupables parce qu’ils sont innombrables, les masses de perdition doivent mourir, pour qu’une restauration de l’homme soit possible. Mon prochain n’est pas un insecte aveugle et sourd, n’est pas un automate spermatique. Que nous importe le néant de ces esclaves ? Nul ne les sauve ni d’eux-mêmes, ni de l’évidence, tout se dispose à les précipiter dans les ténèbres, ils furent engendrés au hasard des accouplements, puis naquirent à l’égal des briques sortant de leur moule, et les voici formant des rangées parallèles et dont les tas s’élèvent jusqu’aux nues. Sont-ce des hommes ? Non, la masse de perdition ne se compose jamais d’hommes » (Bréviaire du chaos, Collection Amers dirigée par le Collège du Revizor, Éditions L'Âge d'Homme, Lausanne, Suisse, 1999.)
“Mas para quê fazer despertar estes milhares de sonâmbulos, que caminham para o caos, com passos sempre iguais, apoiados na bengala de seus sedutores espirituais e sobre o bastão de seus mestres? Eles são culpados por que eles são inumeráveis, as massas da perdição devem morrer, para que uma restauração do homem seja possível. Meu semelhante não é um inseto cego e surdo, não é um autômato espermático. O que nos importa sua escravidão? Nada pode salvá-los nem mesmo deles mesmo, nem da evidência, que tudo tende a se precipitar na obscuridade, eles foram engendrados ao acaso nos cruzamentos, pois que nasceram como tijolos saindo do forno, aí estão eles formando de filas exatas e paralelas que se acumulam até as nuvens. Eles são homens? Não, a massa da perdição não se compõe jamais de homens” (Breviário do caos)
Albert Caraco, foi um filósofo de nacionalidade uruguaia e escritor de expressão francesa, nasceu em Constantinopla, no dia 10 de julho de 1919, em uma família sefaradita instalada na Turquia há quatro séculos. Ele morreu em setembro de 1971. Falava e escrevia quatro línguas: francês, espanhol, alemão e inglês. Tradução Livre: Augusto Patrini Menna Barreto Gomes
[95] CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. São Paulo: Record, 2004. p. 27
[i] Ouvi falar de um rival de Peregrinos, escritor do pós-guerra que, depois de terminar o primeiro livro, suicidou-se com o intuito de atrair atenção para a sua obra. A atenção realmente foi atraída, mas o livro foi considerado ruim.
Bibliografia auxiliar:
· ADORNO & HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento, RJ: Jorge Zahar Editor, 1985.
· ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador Político. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor: 2007.
· BAUMAN, Zygmunt. Identidade. São Paulo, Jorge Zahar Editores, 2005.
· Bhabha, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. Capítulo II: Interrogando a Identidade.
· CAMUS, A. O Mito de Sísefo. RJ: Ed. Record, 20004.
· DUPAS, Gilberto. O Mito do Progresso. SP: Editora Unesp, 2006.
· DURKAEIM, E. Lições de Sociologia. Martins Fontes, 2002. Lição: Relação entre o estado e o indivíduo; Lição: O estado e o Indivíduo. A Pátria (77-105)
· FOULCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Editora Graal, 2004.
· __________________ Vigiar e Punir. História da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1977.
· _________________ Arqueologia do Saber. RJ: Editora Forense Universitária, 1995
· Goldman, O indivíduo, a sociedade e o Estado; e outros ensaios (org e trad: Plínio Augusto Coelho. SP: Editora Hedra: 2007.
· HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. RJ: Labor do Brasil, 1976.
· HUNT, Lynn (org.). A Nova História Cultural. SP: Martins Fontes, 2006
· Mannheim, K. O Homem e a Sociedade. Estudos sobre a estrutura social moderna. RJ: Editora Zahar, 1962. Parte I Elementos racionais e irracionais na sociedade contemporânea. (p. 49-85)
· PIERUCCI, A.F. O desencantamento do Mundo: Todos os Passos do Conceito de Max Weber. SP: Editora 34, 2003
· MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: O declínio do individualismo nas sociedades de massa. RJ: Editora Forense Universitária, 2006.
· __________________ O Ritmo da Vida. SP: Record, 2007
· ___________________ Sobre o Nomadismo. SP: Record, 2001
· MARTINS, Hermínio. Heguel, Texas e Outros ensaios de Teoria Social. Lisboa: Século XXI, 1996.
· MOURA, Carlos A. R. Nietsche: civilização e Cultura. SP: Martins Fontes, 2005.
· NIETZSCHE. Genealogia da Moral, 3ª Dissertação – O que significam ideais acéticos. SP: Cia das letras, 20006.
· NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Paulo César de Souza. SP: Cia das Letras, 2006.
· ___________________. Sobre a verdade e a mentira no sentido extra moral. (org e trad.: Fernando de Morais Barros. SP: Editora Hedra, 2007.
· Simmel, G. Indivíduo e liberdade; (1009-117) In: Souza, J. e Öelze, Berthold (org) Simmel e a modernidade. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1998.
· SIMMEL, Georg. Questões Fundamentais da sociologia. RJ: Jorge Zahar Editor, 2006.
· Simmel, George. As Grandes Cidades e a Viça do espírito, tradução Leopoldo Waizbort. Mana 11 (2): 577-591, 2005.
· _______________ La tragédie de La Culture. Introduction: Vladimir Jankélévich. Paris: Rivages poche/ petit bibliotjèque, 1988.
· VERSEILLE, Christophe. (Org) Ni Dieu, ni maître!: De Diderot à Nietzsche, une anthologie. Paris: Librio, 2007.
· Waizbort, Leopoldo, As Aventuras de Georg Simmel. SP: Ed. 34, 2006.
· WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso: Ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 2001