Introdução de André Gorz ao Manifesto Utopia: “Mas então, disse Alice, se o mundo não tem nenhum sentido, o que nos impede de inventar um?”
Editora Paragon/Vs
Traduzido do francês por Augusto Patrini
A saída do Capitalismo já começou
André Gorz
A questão da saída do capitalismo nunca deixou de ser atual. Ela está colocada em termos e com uma urgência radicalmente novos. Por seu desenvolvimento mesmo, o capitalismo atingiu um limite tanto interno como que externo, que ele é incapaz de ultrapassar, e que o torna um sistema morto vivo, que sobrevive se camuflando por subterfúgios a crise de suas categorias fundamentais: o trabalho, o mérito, e o capital.
Esta crise do sistema tem como fato marcante que a massa dos capitais acumulados não é mais capaz de se valorizar pelo crescimento da produção e pela ampliação do mercado. A produção não é mais o bastante lucrativa para poder valorizar os investimentos produtivos adicionais. Os investimentos de produtividade por meio da qual cada empresa tenta restaurar seu nível de lucro têm como efeito a liberação de formas de consumo assassinas que se traduzem, entre outros efeitos, pela redução competitiva dos efetivos, terceirização, desalocação e precarização dos empregos, a baixa das remunerações, e assim, em escala macro-econômica, a baixa do volume de trabalho produtor de mais-valia, e a baixa do poder de compra. Ora, quanto menos às empresas empregam trabalho e cada vez mais taxa de capital fixo por trabalhador é substancial, maior é a taxa de exploração, quer dizer de sobre-trabalho e sobre valorização produzida por cada trabalhador deve ser mais elevada. Há nesta elevação um limite que não pode ser indefinidamente recuada, mesmo se as empresas se transfiram para a China, para as Filipinas ou para o Sudão.
Os números atestam que este limite já foi atingido. A acumulação produtiva de capital produtivo não para de regredir. Nos Estados-Unidos, as 500 firmas do índice Standard & Poor´s dispõem, em média, de 631 bilhões de reservas liquidas, a metade dos benefícios das empresas americanas provêm de operações nos mercados financeiros. Na França, o investimento produtivo das empresas do CAC 40 não aumenta, mesmo quando seus benefícios explodem. A impossibilidade de valorizar os capitais acumulados pela produção do trabalho explica o desenvolvimento de uma economia fictícia fundada na valorização de capitais fictícios. Para evitar uma recessão que desvalorizaria o capital excedente (sobre-acumulado), os poderes financeiros habituaram-se a incitar os consumidores ao endividamento, a consumir sua renda futura, seus ganhos financeiros futuros, a alta futura de seus imóveis, enquanto que a Bolsa capitaliza primeiro o crescimento futuro, os lucros futuros das empresas, as compras futuras dos consumidores, os ganhos que fariam os cortes e as reestruturações impostas pelos LBO, das empresas que ainda não tenham colocado em prática a precarização, a superexploração e a terceirização do seu pessoal.
O valor fictício (das Bolsas) dos ativos financeiros dobrou em um espaço de tempo de aproximadamente seis anos, passando de 80 000 a 160 000 bilhões de dólares (ou seja, três vezes o PIB mundial), criando para os Estados-Unidos um crescimento econômico fundado no endividamento interior e exterior, o qual cria em seus domínios uma liquidez da economia mundial e o crescimento da China, dos países vizinhos, e por efeito colateral, da Europa.
A economia real tornou-se um apêndice das bolhas financeiras. É necessário, imperativamente, um novo fluxo de capital para a bolha financeira não explodir – e uma alta continua do preço imobiliário para que não se destrua a bolha dos certificados de investimentos imobiliários por meio da qual os bancos atraíram poupança dos indivíduos prometendo-lhes mil maravilhas – pois a explosão destas bolhas ameaçaria o sistema bancário com falências em cascata, e a economia real de uma depressão prolongada (a depressão japonesa dura quinze anos). “Nós caminhamos na beira de um abismo”, escrevia Robert Benton. Aí está, por que, nenhum Estado ousa tomar para si o risco de se alienar ou de inquietar os poderes financeiros. Não há nada a esperar de decisivo dos Estados nacionais que, em nome do imperativo da competitividade, abdicaram passo a passo no curso dos últimos trinta anos aos seus poderes para entregá-los a um quasi-Estado supranacional que impõe leis feitas sob medida para o benefício do capital financeiro mundial, de que ele é a emanação. Estas leis, promulgadas pela OMC, OCDE, FMI impões na fase atual o “tudo-é-mercadoria”, quer dizer a privatização dos serviços públicos, o desmantelamento da proteção social, a monetarização dos magros restos das relações não comerciais. Tudo acontece como se o capital, após ter ganhado a guerra que ele decretou a classe operária em meados dos anos setenta, tratasse de eliminar todas relações sociais que não sejam relações comprador/vendedor, quer dizer aquelas que não reduzem os indivíduos em seres consumidores de mercadorias e vendedores de seu trabalho ou de outra “prestação de serviço” considerada como “trabalho”, independentemente do pouco que ela seja tarifada. O “todos-somos-comerciantes”, o “tudo-é-mercadoria” como formas exclusivas de relação social, seguidas da liquidação completa da sociedade, o que Margaret Thatcher tinha anunciado como projeto. O totalitarismo do mercado se explicitou como estratégia de dominação. Desde então que a globalização do capital e dos mercados, e a ferocidade da concorrência entre capitais particulares exigiam que o estado não fosse mais o garantidor da reprodução da sociedade, mas garantidor da competitividade das empresas, suas margens de manobra em matéria de política social estando condenadas a diminuir, os custos sociais eram denunciados como estorvos a livre concorrência, e entrave para a competitividade, o financiamento público deveria ser então aliviado pela privatização.
O “todos-somos-comerciantes” desferia ataques ao que os britânicos chamam de commons e os alemães de Gemeinwesen, quer dizer a existência de bens comuns indivisíveis, inalienáveis, inconfiscáveis, incondicionavelmente acessível a todos. Contra a privatização dos bens comuns, os indivíduos têm a tendência em reagir com ações comuns, unidas por apenas um objetivo. O Estado tem a tendência de impedir, e em muitos casos impedir e reprimir esta união de todos, cada vez mais rigidamente, que agora ele não possui mais margens suficientes para apaziguar as massas pauperizadas, precarizadas, despojadas de direitos adquiridos. Cada vez mais sua dominação torna-se mais precária, mais as resistências populares ameaçam de se radicalizar, e mais a repressão é acompanhada por políticas que direcionam os indivíduos, uns contra os outros e designam os bodes expiatórios sobre os quais concentrar seu ódio.
Se percebermos o espírito deste cenário, os programas, os discursos e os conflitos que ocupam o centro da cena política parecem derrisórios e deslocados em relação aos mecanismos da realidade. As promessas e os objetivos colocados como prioritários pelos governantes e pelos partidos aparecem como diversões irreais, que mascaram o fato que o capitalismo não oferece nenhuma perspectiva, se não aquela de uma degradação continua das condições de vida, do agravamento da crise, passando por degradações econômicas cada vez mais longas, com curto e fracos períodos de recuperação. Não há nenhum “melhor” a ser esperado, se julgamos o melhor segundo os critérios habituais: não haverá “desenvolvimento” sob a forma do aumento do emprego, do salário e da segurança social. Não haverá mais “crescimento” de cujos frutos possam ser socialmente redistribuídos e utilizados para um programa de transformações sociais que transcendam os limites e a lógica do capitalismo
A esperança colocada, há quarenta anos, nas “reformas revolucionárias” que nasceram do interior do sistema sob pressão das lutas sindicais, que acabaram por transferir para a classe operária os poderes arrancados do capital, esta esperança não existe mais. A produção necessita cada vez menos de trabalho, e distribui cada vez menos poder de compra com cada vez menos ativos; elas não são mais concentradas em grandes indústrias, e nem lá mais se concentra a força de trabalho. O emprego é cada vez mais descontinuo, disperso em prestadores de serviço externo, sem contato entre eles, com um contrato comercial em vez de um contrato de trabalho. As promessas e os programas de “retorno” ao pleno emprego são miragens cuja função é somente manter o imaginário salarial e comercial, quer dizer, a idéia que o trabalho deve necessariamente ser vendido a um empregador e os bens de subsistência comprados com o dinheiro ganho; de outra forma dito: que não há salvação fora da submissão as necessidades do consumo de mercadorias; que não há vida, não há sociedade além da sociedade da mercadoria e do trabalho mercantil, além e fora do capitalismo.
O imaginário comercial e o reino da mercadoria impedem a qualquer um imaginar a possibilidade de sair do capitalismo, e impedem conseqüentemente o “querer sair”. Também há tanto tempo que permanecemos prisioneiros do imaginário salarial e mercantil, que o anticapitalismo e a referência de uma sociedade além do capitalismo torna-se abstratamente utópica, e as lutas sociais contra as políticas do capital permaneceram lutas defensivas que, no melhor dos casos, poderão frear, mas não impedir a deterioração das condições de vida.
A “reestruturação ecológica” somente vai agravar a crise do sistema. É impossível evitar uma catástrofe climática sem romper radicalmente com os métodos e a lógica econômica que são empregados há 150 anos. Se prolongarmos a tendência atual, o PIB mundial será multiplicado pelo fator 3 ou 4 no ano 2050. Ora, segundo o relatório do Conselho sobre o Clima da ONU, as emissões de CO2 deverão diminuir em 85% até esta data para limitar o reaquecimento climático em 2o C, as conseqüências serão irreversíveis, e não controláveis.
A desaceleração é então um imperativo de sobrevivência. Mas ela supõe uma outra economia, um outro estilo de vida, uma outra civilização, outras relações sociais. Em sua falta, a desaceleração corre o risco de ser imposta a força, com restrições, racionamentos, e alocações de fontes características de um socialismo de guerra. A saída do capitalismo se imporá então de uma forma ou de outra. A reprodução do sistema é assobrada ao mesmo tempo por seus limites internos e externos engendrados pela pilhagem e pela destruição de uma das duas “principais fontes de onde provêm toda riqueza”: a terra. A saída do capitalismo já começou sem que ainda se tenha desejado-a conscientemente. A questão é então somente com que forma e com que cadência ela vai acontecer.
A instauração de um socialismo de guerra, ditatorial, centralizador, tecnocrático, seria uma conclusão lógica, somos tentados a dizer “normal” - de uma civilização capitalista que na preocupação de valorizar massas crescentes de capital, procedeu ao que Marcuse chama de “dessublimação repressiva”, quer dizer a repressão das “necessidades superiores”, para criar metodicamente necessidades crescentes de consumo individual, sem se preocupar com as condições de sua satisfação. Ela é aludida desde o começo da questão que está na origem das sociedades: a questão entre a relação das necessidades e as condições que tornam sua satisfação possível: a questão é a forma como gerenciar os recursos limitados de maneira que eles sejam suficientemente duráveis para cobrir a necessidade de todos; e inversamente a procura por um acordo geral sobre o que será suficiente para cada um, de maneira que as necessidades correspondam aos recursos disponíveis.
Nós chegamos então ao ponto onde as condições não existem mais para permitir a satisfação das necessidades que o capitalismo nos deu, inventou, impôs, persuadiu a ter, para poder fazer escoar as mercadorias que ele nos ensinou a desejar. Para nos ensinar a renunciar a isto, a eco-ditadura parece a muitos ser o caminho, o mais curto. Ela seria a preferência daqueles que sustentam o capitalismo e o mercado para apenas serem capazes de criar e redistribuir as riquezas, e que preveria uma reconstituição do capitalismo sob novas bases depois das catástrofes ecológicas tenham recolocado o “medidor” no zero, provocando o anulamento das dividas, e do crédito.
Portanto uma via totalmente diferente é possível. Ela leva a uma extinção do mercado e do salariado pelo desenvolvimento da autoprodução, da disponibilização comum, da gratuidade. Encontramos os exploradores e os pesquisadores desta via nos movimentos dos softwares livres, da rede livre (freenet), da cultura livre que com licença CC (Créative Communs) torna livre ( e livre: free em inglês, ao mesmo tempo, significa acessível, utilizável por todos, e gratuito) do conjunto dos bens comuns culturais – conhecimentos, programas, textos, musicas, filmes, etc – reproduzíveis em um número ilimitado de cópias por um custo negligenciável. O passo seguinte seria logicamente a produção “livre” de toda vida social, começando-se por subtrair do capitalismo certos flancos suscetíveis de serem autoproduzidos localmente por cooperativas comunais. Este gênero de subtração da esfera mercantil é compreendida por bens culturais onde ela foi batizada de “auto-cooperating”, um exemplo clássico é a Wikipedia que está em processo de “autocooperar” a Enciclopédia Britânica. A extensão deste modelo aos bens materiais tornou-se cada vez mais fraca graças à baixa dos meios de produção e a difusão dos saberes técnicos requisitados para a sua utilização. A difusão de competências informáticas, que fazem parte da “cultura do cotidiano” sem terem sido ensinadas, é um exemplo entre tantos outros. A invenção dos fabbers, também chamados digital fabricators ou factories in a box – trata-se de uma espécie de ateliês flexíveis transportáveis e instaláveis em qualquer lugar – obra da autoprodução local, com possibilidades praticamente ilimitadas.
Produzir aquilo que nós consumimos e consumir aquilo que nos produzimos é a via real da saída do mercado: ela nos permitiria perguntar-nos de que realmente temos necessidade, e em que quantidade e em qual qualidade, e de redefinir pela concertação tendo em conta o meio-ambiente e as matérias primas, a norma do suficiente que a economia de mercado tenta de toda forma abolir. A auto-redução do consumo, sua autolimitação – o self-restreint – e a possibilidade de reencontrar o poder sobre nossa forma de viver, passam por isso.
É mais provável que os melhores exemplos de praticas alternativas de ruptura com o capitalismo nos venham do sul do planeta, julgando-se a criação no Brasil nas favelas mas não somente das “novas cooperativas” e dos “pontos de cultura”. Cláudio Prado, que dirige o departamento da “cultura numérica” no ministério da Cultura, declarou recentemente: “O “job” é uma espécie em via de extinção... Nós esperamos pular essa fase sem valor do século XX para passar diretamente do século XIX para o século XXI.” A autoprodução e a reciclagem de computadores, por exemplo, são sustentadas pelo governo: Trata-se de favorecer “a apreciação das tecnologias pelo usuário dentro do objetivo da transformação social”. Tão bem, que três quartos de todos os computadores produzidos no Brasil em 2004/5 foram autoproduzidos.
Setembro 2007
2 comentários:
Manifesto Radical Cosmopolita
União Cívica Radical Cosmopolita
Ou o Lado Luminoso de Osíris.
1. As nações não existem, são ficções conceituais construídas historicamente, por isso todas as fronteiras devem ser abolidas. A humanidade é apenas uma e toda vida se comunica. O nacionalismo é uma opção política de direita. Pelo advento Radical de uma cidadania Cosmopolita e Universal.
2. Pelo fim das nacionalidades. Por um pacifismo radical e não violento.
3. A América Latina e o cone sul devem dar o exemplo e abolir radicalmente suas fronteiras, permitindo a livre circulação de cidadãos.
4. É preciso amar a vida mais que o sentido da vida. Todo homem deve ter direito a um vir-à-ser eterno
5. Todo homem é singular, e deve ter as suas possibilidades intelectuais e físicas fomentadas. Todo homem deve ser livre e capaz de pensar, sem intermediários. Todo homem é um vir-à-ser eterno com múltiplos potenciais e que deve ser respeitado e deixado livre.
6. Tudo aquilo que é comumente aceito, os consensos, as práticas estabelecidas, os hábitos, as tradições são fatores que tornam o ser humano mais pobre, menos inteligente, mais indolente e apático. O questionamento, a dúvida, o ceticismo, a sublevação, e a revolta é um direito de todo cidadão. Todo pensamento transformador é insubmisso e perigoso para o poder estabelecido.
7. A moral cristã – e outras de fundo religioso - é nociva para os povos, promove apatia e à resignação, à culpa e à hipocrisia. Toda moral é hipócrita e nefasta. Que o homem seja amoral, livre e pensante. Que ninguém precise se sacrificar pelo coletivo ou por outro alguém. Pelo fim dos sacrifícios. Dar-se em sacrifício seja por qual causa é uma demonstração de fraqueza, medo e falta de caráter. A vida está acima de qualquer sacrifício. Que todo homem tenha o direito de ser laico e livre.
8. As utopias não libertam, criam monstros totalitários e Estados terroristas. Pelo fim das transcendências escatológicas – que a vida seja feita hoje e agora.
9. Pelo fim da centralidade do econômico na vida humana. Que todo cidadão consciente e livre negue-se a realizar trocas comerciais com dólares. Por uma comunidade de livre troca sul-sul.
10. Que o planeta, em sua totalidade seja respeitado e considerado em sua materialidade biologia e vivente. Por um radicalismo ecológico cotidiano.
11. Pelo fim de tudo que destrua ou que promova a morte. Por um planeta sem automóveis.
12. Por um nomadismo selvagem, radical e cosmopolita. Que todos sejamos bons anfitriões e fraternos. Que a multidão nômade seja respeitada, mas que a singularidade de cada ser humano seja garantida e respeitada.
13. Pela expansão da cultura, do saber, da arte e do viver pensante – radical e cósmico. Pelo fim dos fins: pelo fim dos utilitarismos. Os meios já são o fim. O utilitarismo existencial é algo que faz dos seres humanos vegetais.
14. Que todo ser humano, seja qual for sua história, seja considerado como ser singular, único, sujeito artístico de sua própria vida. Que o coletivo não esmague nunca o artístico do viver singular do individual e do privado.
15. Pelo fim de qualquer certeza, qualquer dogma – inclusive das afirmações deste manifesto – por uma prática de alteridade radical e cotidiana. Somos todos únicos e diferentes.
Saludo el Manifiesto radical cosmopolita. Es un documento valioso que alienta la crítica permanente de dogmas y certezas que hasta ahora han frenado el desarrollo de la humanidad. Rigoberto Rodríguez, Facultad de Historia, USinaloa, México
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