sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

"Himno al mar"





"Oh mar! oh mito! oh largo lecho!
Y sé por qué te amo. Sé que somos muy viejos.
Que ambos nos conocemos desde siglos.
Sé que en tus aguas venerandas y rientes ardió la aurora de la Vida.
(En la ceniza de una tarde terciaria vibré por primera vez en tu seno).
Oh proteico, yo he salido de ti.
¡Ambos encadenados y nómadas;
Ambos con un sed intensa de estrellas;
Ambos con esperanzas y desengaños;
Ambos, aire, luz, fuerza, obscuridades;
Ambos con nuestro vasto deseo y ambos con nuestra grande miseria"


Borges - revista Grecia el 31 de diciembre de 1919

Resenha de La Edicion de Libros em la Argentin: uma empresa de cultura













SAGASTIZABAL Leandro de. La Edicion de Libros em la Argentin: uma empresa de cultura. Buenos Aires: Eudebo, 1995.




O livro trata da publicação e edição de livros na Argentina, do final do século XIX ao começo do Século XX. Considera que a atividade de livreiro, atividade bastante complexa que envolve várias atividades entre produção e distribuição, foi fundamental no advento da atividade editorial no país. Entre os pioneiros na atividade, destacavam-se os espanhóis, exilados políticos – como, por exemplo, Benito Hortelano que como muitos do ramo, já possuía experiência nesta atividade. De acordo com o autor, estes livreiros foram os iniciadores das atividades ligadas à difusão do livro e da cultura letrada na Argentina.

Ainda sob o governo de Rosas, a produção editorial e intelectual era bastante fraca e limitada aos livros clássicos: teologia, história, geografia, ciências, folhas soltas de poesias e coleções. A leitura ainda era uma atividade ligada à elite, que praticavam-na em ambientes como os Salões literários. Com a queda do governo Rosas a liberdade de pensamento e imprensa facilitaram a criação de um ambiente fértil no meio intelectual. Nesta época a atividade intelectual é marcada por um certo voluntarismo e “oportunismo político”

Em 1880, a integração da Argentina ao mercado mundial, sua modernização e a necessidade em se forjar uma união nacional causou uma mudança nos domínios da educação e da cultura – por exemplo escolaridade obrigatória, expansão do jornalismo, campanhas de alfabetização. Fatores estes que transformaram o país, e que deixariam conseqüencias posteriores. Há neste ano uma multiplicação de periódicos e percebe-se que “el mercado de lectores se estaba ampliando e iba contruyendo su cultura letrada. La lectura y el proceso educativo formal permitiam adquirir destrezas básicas.” (p.38). Nesta época são sucessos muitos livros traduzidos como aquele de Samuel Smiles.

Mesmo assim, o autor reconhece que nesta época ainda não existia uma atividade especifica do editor. Esta função era exercida, como no Brasil, por livreiros.

“La actividad editorial de época la impulsaban, por um lado, hombres que reunían las funciones del librero, el impresor y el editor, como Carlos Casavalle, quien publicó, por exemplo, las obras completas de Esteban Echeverría, em cinco tomos, entre 1870 e 1874.” (p. 43)

Houve, no entanto, uma transformação gradual da figura do livreiro para a figura do editor. No final do século XIX não havia um circuito específico de comercialização de livros: vendiam-se livros em lojas, sapatarias ou por meio de ambulantes. Porém, aos poucos, alguns homens começaram a trabalhar especificamente com livros (Valério Abeledo), vinculando-se, às vezes, a mercados específicos: “el librero vinculado com determinado âmbito específico (uma faculdad – ls más de las veces -, uma asociación de profesionales, etcétera) que luego se hace editor para esse mercado.” (p. 46)

A grande transformação na difusão da cultura letrada na Argentina parece ter sido com o começo da publicação de livros pelos jornais: “desde fines de 1870 es frecuente que los diários publiquen obras de autores locales y extranjeros, em lo que constituye outra modalidad – la tercera – de edición de libros em la época que estamos analizando.” (p. 47). Em 1901, o jornal La Nación publica de modo pioneiro uma coleção de livros: a “Biblioteca de La Nación” – coleção que ajudou a popularizar a leitura e fez desta um verdadeiro fenômeno cultural: “La prensa periódica, la educación, las campanas de alfabetización habían contribuído a ampliar el campo de lectores, pero la inclusión del libro como propuesta implicaba um processo más complejo y profundo. Leer libros era atractivo y posible em la medida en que comparían códigos y símbolos de uma cultura letrada.” (p.50). Neste caso a atividade de editor não consistia somente na tradução de textos europeus, mas uma homogeneização de uma proposta heterogênea “que criou um estilo de apresentação modelador de gostos estéticos e hábitos de consumo.” (literatura européia, francesa principalmente e alguns escritores nacionais). Em vinte anos de existência essa coleção editou mais de um milhão de exemplares.

A Revolução de 1848 na França – Uma leitura de textos de Marx e Tocqueville





Augusto Patrini Menna Barreto Gomes





Situando Questões

Compreendendo um período tradicionalmente associado ao intervalo que vai do ano de 1848 a 1849, a chamada “Revolução de 1848”, envolve uma série de acontecimentos e “movimentos” políticos – e engloba vários países europeus. Entre os vários ‘movimentos’ do período revolucionário de 1848, encontrasse a insurreição (ou Revolução) de fevereiro de 1848, acontecida em Paris, e que foi responsável pela derrubada da Monarquia de Julho e a instauração da efêmera Segunda República Francesa.
Com relação ao período, especificamente no que diz respeito à França, o período revolucionário e seus desdobramentos são bastante conhecidos, sobretudo pela ampla divulgação do texto de Marx; “18 Brumário de Luis Bonaparte”[1]- que aborda os desdobramentos da revolução e trata, em particular, do golpe de Luis Bonaparte.
Neste texto clássico Marx afirma que: “[...] a Revolução de 1848 não soube fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793-1795”. (MARX, p. 21).
Nesse ponto, um outro comentador do período, Tocqueville, em “Lembranças de 1848”[2], parece concordar, ao falar da revolução de fevereiro de 1848, afirma: “os homens da primeira revolução estavam vivos em todos os espíritos, seus atos e suas palavras presentes em todas as memórias. Tudo o que presenciei nesse dia trazia a marca visível de tais lembranças; sempre tive a impressão de que houve mais esforços para representar a revolução Francesa que para continuá-la” (TOCQUEVILLE, p. 75)
No entanto, o período revolucionário de 48 na França pode ser considerado algo bastante relevante na história contemporânea. Nesse país assim como em vários outros lugares da Europa, segundo vários autores da historiografia, os burgueses liberais aliados aos operários promoveram insurreições contra monarquias, as antigas aristocracias, e uma parcela burguesa associada a estes. No caso particular da França a revolução eclodiu sob o “reinado” do rei “burguês”, Louis Philippe, derrubado em fevereiro de 1848 – assumindo um governo provisório que logo proclamou a República.
Em poucas palavras todo o período revolucionário de 1848 na França abarca alguns fatos relevantes que podem ser relembrados:
1. A Revolução (insurreição) de Fevereiro acontece nos dias 22, 23 e 24, motivada pela questão da proibição dos banquetes, mas também por questões econômicas e sociais. Os organizadores da oposição radical, não conseguem controlar os insurretos.
2. O Governo provisório integrado por burgueses liberais, socialistas (os partidários do ‘La Reforme’ e do ‘Le National’) e um representante da classe operária (Albert), proclama a Segunda República. São implementadas as Fábricas Nacionais. É também reconhecido o direito ao trabalho. Posteriormente, o imposto Garnie-Pagés, que inside sobre a propriedade territorial, desagrada fortemente os camponeses que sentem-se prejudicados e culpam as Fábricas Nacionais.[3]
3. No dia 23 de abril acontece a eleição da Assembléia Nacional. Pela primeira vez o sufrágio é universal e masculino.
4. Dia 15 de maio ocorre a chamada queda da “democracia social” após manifestação de apoio a Polônia, a invasão da Assembléia Nacional e a prisão dos seus principais líderes. Uma tentativa de insurreição se evapora rapidamente e a comissão “operária” do Palácio de Luxemburgo é dissolvida.
5. No dia 24 de junho é finalmente derrubada a “democracia liberal” nas jornadas de junho, quando do fechamento das Fabricas Nacionais, os operários de Paris se revoltam e levantam barricadas por toda cidade. A Assembléia Nacional destitui a Comissão Executiva e concede amplos poderes ao general Cavaignac, que governa com poderes ditatoriais. A Repressão é brutal e sangrenta e sufoca a insurreição de junho.
6. Em dez de dezembro de 1849 a eleição de Luís Bonaparte para a presidência da República, sepulta definitivamente as esperanças revolucionárias. Radicais e liberais têm uma votação pífia.
Como nos lembra, porém, Jean-Luc Mayaud, além destes fatos; “les historiens reconnaissent en 1848 la fille de 1789 qui fixe la fin définitive de l’Ancien regime économique et social, qui innove par la plocamation du suffrage universal masculin, qui marque enfin par l’“esprit de 1848”. (MAYAUD, J., p. 328)[4]

Cabe, no entanto, perguntar-nos como estes fatos são interpretados pelos diversos autores que documentaram contemporaneamente os acontecimentos. Dois autores que tratam os acontecimentos de 48 na França são Marx e Tocqueville.
Como afirma o professor Renato Janine Ribeiro: “No começo dos anos 1850 dois homens que certamente nunca se viram, e que teriam bem pouca estima um pelo outro caso se conhecesses, meditam o mesmo assunto: as crises e a ruína da Segunda República francesa. [...] Um deles é Karl Marx, jornalista [...] militante de extrema esquerda, jornalista. [...] O outro estudioso contemporâneo de 1848 é Aléxis de Tocqueville, conde, já celebre por seu livro A Democracia na América e que nos anos da Segunda República participará do parlamento...” (RIBEIRO, Renato Janine in TOCQUEVILLE, 1991).
Apesar da grande variedade de textos a tratar do período revolucionário de 1848 – entre eles textos de Bakunin, Proudhon e Victor Hugo -, por motivos metodológicos trataremos, neste trabalho, prioriatariamente os acontecimentos de fevereiro na França de 1848 e algumas de seus desdobramentos, tratados igualmente em Tocqueville (autor do partido da ordem) e Marx (autor partidário da revolução) - autores que daremos prioridade.
Por isso neste trabalho nos concentramos nas obras:

· Tocqueville, Alexis de, Lembranças de 1848. São Paulo: Cia das Letras, 1991
· Marx, K. As Lutas de Classes em França. Lisboa: Edições Avante, 1884

Ambos os documentos constituem fonte interessante de pesquisa para o historiador interessado em descobrir a os acontecimentos parisienses do ano de 1848.
A avaliação destes dois autores é, no entanto, em alguns pontos, diametralmente oposta. Para Tocqueville a revolução fracassa por ser demasiadamente radical, já para Marx por ser demasiadamente branda. O primeiro faz uma narrativa minuciosa, descritiva e impressionista, muito meticulosa em relação aos fatos e aos homens. O segundo faz uma análise social dos acontecimentos, sem se fixar em fatos particulares, olhando, sobretudo para as estruturas, não esquecendo de abordar fatores econômicos e estruturais da revolução[5]. Apesar disso os dois autores, concordam em interpretar os acontecimentos de 1848 como momento onde acontece um “combate de classe”.
No entanto seria interessante lembrar que para Marx, a revolução de fevereiro foi um levante de parte das elites que se encontravam alijadas do poder político, aliada a parcela do operariado parisiense. Porém, com a posterior derrota proletária nas Jornadas de Junho (1848) e, especialmente com o golpe de Napoleão ficou bastante evidente que a burguesia mesmo “dividida em dois setores dinásticos-monárquicos, mas exigindo acima de tudo sossego e segurança para suas transações financeiras” (F. Engels in K Marx, p. 19)[6] e não pretendia dividir seu poder político conquistado com e às custas do proletariado. Nestes dois momentos fatídicos, para luta popular, a ilusão da República “Solidária” – que propunha acabar com a tensão entre as classes – cai por terra. A classe burguesa antes revolucionária torna-se, por fim, claramente anti-revolucionária. Alia-se, na França como em toda Europa, neste momento à reação da aristocracia. Para Marx é exatamente a aliança “duvidosa” que fazem os insurretos em 48, o principal motivo do fracasso da revolução. Para as interpretações marxistas que o seguiram a derrota foi também das formas pré-revolucionárias de luta.
Como afirma Mayaud, em seu texto sobre a revolução de 48: “Pour la tradition marxiste, l’alliance consuse des classes scellés sur les barricades de février éclate devant la question sociale et la “republique bourgeoise” jette alorns le masque.”(Mayaud, p. 330).
Uma leitura comparada

Analisando os dois textos observa-se a correção da análise de Marx que interpreta o objetivo do chamado “partido da ordem” como a busca radical em garantir a ordem social. O texto de Tocqueville parece confirmar essa visão, pois este defende “toda uma sociedade que se via ameaçada pela desordem e pela anarquia” (RIBEIRO, P. 10).
É bastante interessante notar que os dois autores, além de concordarem com a natureza de classe do embate, confluem em mais um ponto de sua crítica, aquele que acusa a retórica. Tocqueville critica enfaticamente em seu texto o que chama de retórica dos demagogos de esquerda e o poder baseado em apenas uma classe, enquanto Marx crítica os chamados radicais “pequenos burgueses”, ao seu ver moderados demais, iludidos com as reais possibilidades do novo regime. Apesar de os dois autores, estarem posicionados ideologicamente em lados opostos das “barricadas” concordam na critica violenta a retórica incendiária dos “irrealistas”.
Em trecho significativo e sintético do 18 Brumário Marx afirma:
“A Revolução de Fevereiro foi um ataque de surpresa, apanhando desprevenida a velha sociedade, e o povo proclamou esse golpe inesperado como um feito de importância mundial que introduzia uma nova época. A 2 de dezembro, a Revolução de Fevereiro é escamoteada pelo truque de um trapaceiro, e o que parece ter sido derrubado já não é a monarquia e sim as concessões liberais que lhe foram arrancadas através de séculos de luta. Longe de ser a própria sociedade que conquista para si mesma um novo conteúdo, é o Estado que parece voltar à sua forma mais antiga, ao domínio desavergonhadamente simples do sabre e da sotaina. Esta é a resta que dá ao coup de main de fevereiro de 1848 o coup de tête de dezembro de 1851. O que se ganha facilmente se entrega facilmente. O intervalo de tempo, porém, não passou sem proveito. Entre os anos de 1848 e 1851 a sociedade francesa supriu - e por um método abreviado, por ser revolucionário - estudos e conhecimentos que em um desenvolvimento regular, de lição em lição, por assim dizer, teriam tido que preceder a Revolução de Fevereiro se esta devesse constituir mais do que um estremecimento da superfície. A sociedade parece ter agora retrocedido para antes do seu ponto de partida; na realidade, somente hoje ela cria o seu ponto de partida revolucionário, isto é, a situação, as relações, as condições sem as quais a revolução moderna não adquire um caráter sério.” (MARX, p. 24 e 25)

Para Tocqueville, no entanto, a revolução é um distúrbio na ordem, algo a ser lamentado por transgredir o que chama de “espírito público” – ou o bem comum. Em seus relatos, assim como nos de Marx (mas por motivos diferentes), não há entusiasmo com os acontecimentos, como podemos observar, por exemplo, em Bakunin: “Parecia que o universo inteiro havia mudado; o inacreditável tornara-se habitual; o impossível, possível; e o possível e o habitual, insanos. Em uma palavra, o estado de espírito era tal que, se alguém viesse dizer: ‘Deus acaba de ser expulso do céu onde a República foi proclamada!’, todo mundo teria acreditado e ninguém teria se surpreendido” (BAKUNIN, Michael A., p. 10 e 11)[7].
Porém, como se sabe, esse momento da história contemporânea foi interpretado pela historiografia de várias formas: algumas vezes como revolução política,outras como revolução social, também revolução romântica, e até revolução liberal, revolução interrompida, desvio etc. Porém, como vimos ela é, sem dúvida, uma revolução social para nossos dois autores: Marx e Tocqueville. Para ambos há nos acontecimento de 1848 uma subversão da sociedade e não somente da forma do Estado.
Para Tocqueville era possível perceber antes de 1848 “sinais que em geral anunciavam a aproximação de uma revolução [...]”(TOCQUEVILLE, p. 41). Em discurso na Assembléia Legislativa ainda em 1847, ele afirma:

“[...] Logo, a luta política travar-se-á entre os eu possuem e os que não possuem, o grande campo de batalha será a propriedade, e as principais questões da política girarão em torno das modificações mais ou menos profundas que serão introduzidas no direito dos proprietários. Então, voltaremos às grandes agitações públicas e aos grandes partidos. Diz que não há perigo, por que não há desordem material na superfície da sociedade, as revoluções estão longe de nós. [...] Senhores, permiti-me dizer-vos que creio que vos enganais. Sem duvida a desordem não está nos fatos, mas entrou bem profundamente nos espíritos. Olhai o que se passa no seio dessas classes operárias, que hoje, eu reconheço, estão tranqüilas. É verdade que não são atormentadas por paixões políticas propriamente ditas, no mesmo grau em que foram atormentadas outrora; mas não vedes que suas paixões tornaram-se sociais? Não vedes que pouco a pouco propagam-se em seu seio opiniões, idéias que de modo nenhum irão derrubar tal lei, tal ministério, mesmo tal governo, mas a sociedade, abalando as bases nas quais hoje repousa?[...]Tal é, senhores, minha convicção profunda: no momento em que estamos, creio que dormimos sobre um vulcão[...]” (idem, p. 42 e 43).

Percebemos que ele identifica como responsável pela “agitação do povo” idéias. Para Marx, no entanto, os motivos da revolução não são idéias, mas razões concretas; a praga da batata e as más colheitas de 1845 e 1846 e carestia de 1847 e, também, as “ escandalosas orgias da classe financeira” que exaltaram os ânimos das classes populares e fizeram que lutassem pelos gêneros de primeira necessidade. Outro motivo bem destacado por Marx foi a crise geral do comércio e da indústria na Inglaterra: “A devastação que a epidemia econômica causara no comércio e na indústria tornou ainda mais insuportável a dominação exclusiva da aristocracia financeira. Em toda a França, a burguesia oposicionista promoveu agitação de banquetes por uma reforma eleitoral que conquistasse a maioria na Câmara e derrubasse o ministério da Bolsa”. (Marxs, p.42)
Como se vê, ao contrário de Tocqueville que identifica o motivo da revolução como a “degradação dos costumes públicos”, Marx ao ligar uma causa política a um fator (os banquetes) que teria grande implicação na insurreição de fevereiro, não deixa de relacioná-lo com fatores econômicos.
Sobre os banquetes Tocqueville acrescenta que “a agitação criada no país pelos banquetes ultrapassa não somente as esperanças, mas também os desejos daqueles que a haviam feito nascer; trabalhavam mais para reduzi-la que para aumentá-la. Tinham a intenção de não mais realizar banquetes, em Paris ou mesmo em qualquer outro lugar, depois da convocação das Câmaras.” (TOCQUEVILLE, p. 48)
E acrescenta ainda sobre o caráter dos seus organizadores e a reação governamental: “De sua parte o governo empurrava a oposição com seus desafios a essa empresa perigosa, acreditando estar conduzindo-a à sua destruição. A oposição seguia o caminho por bravata e para não parecer que recuava, ambas as partes excitando-se e aguilhoando-se, empurrando-se assim em direção ao abismo comum ao qual já estavam chegando, sem contudo vê-lo.” (idem, p. 48). Mas ainda, ressalta que uma das estranhas características da insurreição de fevereiro é “que o fato que a originou tenha sido dirigido e quase desejado por aqueles que seriam derrubados do poder, e que ele tenha sido previsto e temido apenas pelos homens que iriam vencer.” (idem, p. 50).
Ou seja, o que Tocqueville critica é justamente que a monarquia de julho deveria ter sido conciliatória e que a oposição apesar de exultante foi demagógica. Ao contrário, Marx identificaria na ruína da 2ª República justamente a hesitação da oposição e uma política de conciliação de classes. Porém, os argumentos de Marx sobre o vacilo dos democratas radicais é confirmado pelo texto de Tocqueville.
Ao comentar o ataque sofrido pelo ministério de Guizot, percebemos outra crítica interessante presente em Tocqueville. Essa crítica diz respeito a dinâmica política institucional, quando os homens são motivados por cargos e instrumentos de poder: “Se muitos conservadores só defendiam o ministério com vista a manter emolumentos e cargos, devo dizer que, a meu ver, muitos membros da oposição só o atacavam para conquistá-los. A verdade, deplorável verdade, é que o gosto pelas funções públicas e o desejo de viver à custa dos impostos não são, entre nós, uma doença particular de um partido: é a grande e permanente enfermidade democrática de nossa sociedade civil e da centralização excessiva de nosso governo; é esse mal secreto que corroeu todos os antigos poderes e corroerá igualmente todos os novos.” (idem, p. 57). Nessa crítica também parece confirmar as teses de Marx sobre a ação da oposição burguesa e da pequena burguesia.
Para Tocqueville um dois principais motivos da queda do governo da monarquia de julho foi o fato de se apoiar em apenas uma parcela da classe burguesa: “[...] na França, um governo equivoca-se toda vez que toma como ponto de apoio unicamente as paixões egoístas e os interesses exclusivos de uma só classe. Isso só pode dar certo em nações mais interessadas e menos vaidosas que a nossa; entre nós, quando um governo assim fundado torna-se impopular, ocorre que os membros da própria classe em favor da qual ele se impopulariza preferem o prazer de o criticar, como todo mundo, aos privilégios que o governo lhe assegura.”(idem, p. 64). E ainda acrescenta: “Penso, pois, que no final das contas, o método mais seguro a ser adotado entre nós pelo governo, para se manter é o de governar e, sobretudo visando o interesse de todos” (idem, p. 64 e 65). Mais uma vez alguns argumento do nosso autor partidário da ordem, parecem confirmar as teses de Marx, sobretudo no que se refere ao apoio da monarquia de julho em uma parcela da burguesia: “[...] sob Louis-Philippe não era a burguesia francesa quem dominava. Quem dominava era apenas uma fração dela: banqueiros, reis da bolsa, reis do caminho-de-ferro, proprietários de minas de carvão e ferro e de florestas e uma parte da parte da propriedade fundiária aliada a estes – a chamada aristocracia financeira. [...] A burguesia industrial propriamente dita constituía uma parte da oposição oficial”.(MARX, p. 37). E acrescenta mais: “A monarquia de julho era apenas uma sociedade por ações para explorar a riqueza nacional da França e cujos os dividendos eram distribuídos por ministros, câmaras, 240 000 eleitores e o seu séqüito. [...] Num tal sistema, o comércio, a indústria, a agricultura, a navegação, os interesses da burguesia industrial não podiam deixar de estar constantemente ameaçados e de sofrer prejuízos. [...] A burguesia industrial via os seus interesses em perigo; apequena burguesia estava moralmente indignada; a fantasia popular estava revoltada; Paris estava inundada de folhetos.” (idem, p. 40 e 41).
Sobre o caráter de conciliação de classes do Governo Provisório, erguido pelas barricadas de fevereiro, Marx afirma que era composto pela pequena-burguesia , pela classe operária e, na sua grande maioria, pela burguesia, seja representada pela burguesia republicana, seja pela “oposição dinástica”. Para ele, está claro que “o porta-voz da revolução de Fevereiro pertencia a burguesia” (MARX, p. 43). Ao povo era reservada a função de levantar as barricadas e lutar nas ruas.
“A pequena burguesia republicana estava representada por Ledru-Rollin e Flocon; a burguesia republicana por gente do Nacional; a oposição dinástica por Crémieux, Dupont de L’Eure, etc. A classe operária tinha apenas dois representantes.” (idem, p. 23).
Com a queda da monarquia em fevereiro de 1848, Tocqueville afirmará: “[...] o mau governo do príncipe havia preparado a catástrofe e o precipitado do trono. [...] Acredito que os acidentes desempenharam um importante papel na Revolução, porém que nem tudo se deve a eles.” (Tocqueville, p. 83). Ele parece, assim como Marx consciente das modificações causadas pela “Revolução Industrial” (termo empregado por ele), porém apesar disso relaciona entre as causas da revolução também idéias:

“[...] o ardor dos gozos materiais que, sob o aguilhão do governo, excitava cada vez mais essa multidão [operários]; a inquietação democrática da inveja que minava surdamente; as teorias econômicas e políticas que surgiam e que tendiam a fazer crer que as misérias humanas eram obra das leis e não da Providência, e que a pobreza podia ser suprimida mudando-se a base da sociedade; o desprezo que se devotava à classe governante, sobretudo aos homens que a encabeçavam, desprezo tão geral e profundo que paralisou a resistência daqueles a quem mais interessava a manutenção do poder que derrubava; a centralização que reduziu toda operação revolucionária a apoderar-se de Paris e pôr a mão sobre a máquina administrativa montada; a mobilidade enfim de todas as coisas, instituições, idéias, costumes e homens em uma sociedade movediça, que fora sacudida por sete grandes revoluções em sete anos, não se considerando a infinidade de pequenos abalos secundário: estas foram as causas gerais sem as quais a Revolução de Fevereiro teria sido impossível.” (idem, p. 84 e 85)

Como já foi dito, Tocqueville, assim como Marx, acredita que a revolução de 48 foi em vários pontos uma repetição da revolução francesa de 1789:
“Ao Antigo Regime havia sucedido a Monarquia Constitucional; à Monarquia, a República, o Império, a Restauração; depois viera a Monarquia de Julho. Após cada uma destas mutações sucessivas, foi dito que a revolução Francesa, tendo acabado o que presunçosamente chamava-se “sua obra”, havia terminado: era o que se dizia e no que se acreditava. [...] e eis a revolução Francesa que recomeça, pois é sempre a mesma. (idem, p.87)
Já para Marx o significado da proclamação da República, além de significar uma repetição farsista dos fatos de 1789, foi que o proletariado passou a ocupar um plano importante em toda França, esse lugar ocupado agora como partido autônomo “que desafiou contra si toda França burguesa”[8]. Os operários, instalados juntos com a burguesia no poder, pretenderam conseguir fazer valer suas demandas, como de fato foi reconhecido pelo governo provisório o direito ao trabalho de todo “cidadão”. Assim, a República de Fevereiro travestiu-se de uma “Fraternité” conciliatória embriagaria o proletariado e determinariam sua derrota. Isso porque o proletariado somente poderia, segundo Marx, fazer avançar a revolução arremessando-se contra os “direitos” burguesia. Porém por estar comprometido com “um gouvernement qui suspend ce malentendu terrible que existe entre lês différentes classes”[9] - segundo a expressão de Lamartine, encontrava-se com as mãos atadas.
Marx conclui então, que: “A República de Fevereiro teve isso sim de começar por consumar a dominação da burguesia fazendo entrar, ao lado da aristocracia financeira, todas as classes possidentes para o círculo do poder político.” (Marx, p. 44).
É interessante notar que nesse ponto Tocqueville parece discordar de Marx quanto ao caráter do governo provisório. Porém, parece confirmar o argumento de Marx que o proletário surgiria, enfim, como partido autônomo.
Ao falar sobre a questão da propriedade Tocqueville afirma ser este o principal “signo de desigualdade porquanto todos os privilégios que a envolviam e até a escondiam haviam sido destruídos ” (Tocqueville, p.95). Talvez o modo de ver de Tocqueville seja marcado por seu lugar de defensor da ordem: “A Revolução de Julho fora feita pelo povo, mas a classe média, que a havia suscitado e conduzido, colhera os principais frutos. A revolução de fevereiro, ao contrário, parecia feita inteiramente à margem da burguesia, e contra ela. Nesse grande choque, as duas partes que na França compunham substancialmente o corpo social haviam, de certo modo, se separado, e o povo a parte permanecia sozinho na posse do poder. Nada mais novo havia em nossos anais [...]” (Tocqueville, p. 92)
Apesar disso afirma que ao desaparecer a monarquia o povo perdera um inimigo claro a combater e isso fazia com que a revolução perdesse a força sob a ação dos burgueses republicanos e legitimistas. No entanto afirmará que a Revolução de Fevereiro estará marcada por um caráter socialista, que segundo ele, foram responsáveis e suscitar “a guerra entre as classes”. Para ele, “O socialismo permanecerá como caráter essencial e lembrança mais temível da Revolução de Fevereiro. De longe, a república só aparecerá como um meio, não como fim.” (idem, p. 95).
Para Marx, no entanto, “A emancipação dos operários – mesmo como mera frase – tornou-se um perigo insuportável para a nova república, pois constituía um contínuo protesto contra o restabelecimento do crédito que assenta no reconhecimento do crédito imperturbado e enconturbado das relações econômicas de classe vigentes. Era preciso, pois, acabar-se com os operários”(MARX, p. 53). Assim, a república acaba declarando na Assembléia Nacional que somente a república burguesa é legitima e a violência a ordem burguesa deve ser combatida.A partir daí, como já vimos a derrota da luta operária será definitivamente selada pelo fracasso das Jornadas de Junho e pelo golpe de Luís Bonaparte. Para Marx, portanto a ilusão das formas de luta pré-revolucionárias cai para parte do proletariado.
Por isso sobre as Jornadas de Junho Marx afirma: “A revolução de junho é a revolução feia, a revolução repugnante, porque o ato substituiu a palavra, porque a república pôs a descoberto a cabeça do próprio monstro ao derrubar a coroa que o protegia e ocultava. Ordem! era o grito de Guizot! [...] Ordem! Grita Cavaignac, o eco brutal da Assembléia Nacional Francesa e da burguesia republicana.” (MARX, p. 61). Assim conclui que qualquer mudança para melhor na situação de vida dos proletários seria uma utopia criminosa. Fica, portanto muito claro, que para Marx, o objetivo do Estado burguês “é eternizar a dominação do capital e a escravidão do trabalho”. Para ele é nesta derrota de junho que surge o novo grito do povo: “Derrube da burguesia! Ditadura da classe operária!”[10].
Para Tocqueville, que ao cair a monarquia “encontrava repugnância instintiva ao recordar esse miserável mundo parlamentar que [...] havia freqüentado durante dez anos e no seio do qual tinha visto germinar a Revolução (Tocqueville, p. 97), o povo experimentava pela primeira vez um sentimento “onipotência”. “Os revolucionários de 1848, não podendo imitar as loucuras sanguinárias de seus predecessores[11], consolavam-se com freqüência reproduzindo as loucuras ridículas (idem, p. 141), e conclui que a revolução desta vez “não teve por objetivo mudar a forma de governo, mas alterar a ordem da sociedade. Não foi, para dizer a verdade, uma luta política [...] mas um combate de classe, uma espécie de guerra servil.” (idem, p. 149).
Como já falamos, ao contrário de Marx, Tocqueville afirmará que o fracasso da revolução, e, sobretudo das Jornadas de Junho foi seu caráter radical e sua acefalia: “Se a revolta tivesse tido um caráter menos radical e aspecto menos radical e um aspecto menos feroz, é provável que a maioria dos burgueses ficasse em suas casas; a França não teria acorrido em nossa ajuda; a própria Assembléia Nacional talvez tivesse cedido [...]. Os únicos homens que poderiam colocar-se no comando dos insurgentes de junho tinham sido presos prematuramente, como tolos, em 15 de maio, e só viram o som dos combates pelos muros da prisão de Vincennes.” (idem, p. 156 e 157)
E finalmente afirma, como partidário da ordem que é, que as Jornadas de Junho foram “necessárias e funestas” apesar de infelizmente não acabarem com o impulso revolucionário dos operários: “puseram fim pelo menos por algum tempo, ao que se pode chamar o próprio trabalho da Revolução de Fevereiro. Elas livraram a nação da opressão dos operários de Paris e a recolocaram na posse de si mesma.” (idem, p. 173)
E assim, como Marx completa há uma “falência” das utopias “pequeno-burguesas” socialista-democráticas ou radicais: “As teorias socialistas continuam a penetrar no espírito do povo sob a forma de paixões cúpidas e invejosas, nele depositando a semente de revoluções futuras; mas o partido socialista, enquanto tal, ficou vencido e impotente. Os montanheses, que a ele não pertenciam, logo sentiram que haviam sido irremediavelmente atingidos pelo mesmo golpe que abatera o partido socialista.”[12] (idem, p. 173 e 174).
Para concluir finalmente, e tomarmos como uma síntese do período, o que León Trotsky afirmou sobre 48: “No período heróico da história francesa nós nos vimos diante de uma burguesia esclarecida e ativa, que ainda não havia descoberto suas próprias contradições. A história havia lhe confiado a tarefa da liderança na luta pela nova ordem. Não só contra as instituições antiquadas da França, mas também contra as forças reacionárias de toda a Europa. Como conseqüência a burguesia unificou a nação reunindo as massas para a luta, transmitindo-lhe palavras de ordem e lhes mostrando uma tática para combate. A democracia unificou a nação baseada numa ideologia política. O povo – pequeno-burgueses, camponeses e operários – elegia burgueses como deputados e as instruções dadas a esses deputados por seus constituintes eram escritas segundo a linguagem de uma burguesia que era consciente de seu papel messiânico. Durante a revolução propriamente dita os antagonismos de classe se destacam claramente, mas o poder da inércia da luta revolucionária não foi tão grande para tirar do caminho os elementos mais conservadores da burguesia.”(TROTSKY, p. 104).

Apesar das diferenças marcantes entre os textos documentais de Marx e Tocqueville, percebemos que em muitos pontos os dois autores confluem para uma mesma opinião, sobretudo, no que diz respeito aos motivos da queda da monarquia, à natureza do novo governo republicano e seus integrantes ‘radicais’ e o motivo pelo qual a 2ª República acaba sendo “vencida” pela reação. É claro por sua diferença ideológica, e de classe social, olham para os fatos de forma diversa. Tocqueville parece olhar para os faltos com um misto de horror e medo; enquanto Marx, que já escreve com um certo recuo, só pode lamentar as “hesitações” dos radicais e a incapacidade de se chegar a uma verdadeira transformação social. Marx, não deixa de considerar que as condições econômicas e materiais não estavam “desenvolvidas” suficientemente bem para que o proletariado lutasse de forma independente nas lutas de 1848. Portanto, a conclusão importante de Marx, que a mesma de Trotsky, é que durante a revolução e posteriormente a ela ficou claro nesse momento histórico o antagonismo de classe entre a burguesia e o proletariado.


Bibliografia:
· Bakunin, Michael A. A revolução de fevereiro de 1848 vista por Bakunin in Textos Anarquistas. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2000.
· Castelot, André. Quarante-Huit in Histoires de France: restaurations et révolutions 1815 – 1845. Paris : Perrin, 2001.
· Hobsbawn, Eric, A primavera dos Povos in A Era do Capital. São Paulo: Paz&Terra, 2002
· Marx, K. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997.
· Marx, K. As Lutas de Classes em França, Lisboa, Edições Avante, 1884.
· MAYAUD, J. La Révolutionde 1848: une histoire Sainte Revisitée in Les Révolutions Françaises. Paris: Fayard, 1989.
· Proudhon, P.-J. Les confessions d'un révolutionnaire : pour servir à l'histoire de la révolution de février. Paris : Garnier frères, 1851
· Rosenberg, Arthur A França em 1848 in Democracia e Socialismo. São Paulo : Global, 1986
· Sigmann J., 1848 Las revoluciones românticas y democráticas de Europa, in Historia de los Movimentos Sociales. Argentina: Siglo Ventiuno Editores, s/d.
· TOCQUEVILLE, Alexis de, Lembranças de 1848. São Paulo: Cia das Letras, 1991.
· Trotsky, Leon. 1789 – 1848 – 190 in 1905: resultados y perspectivas. S.l. : Ruedo Iberico, 1971
·
[1] K. Marx, O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997.
[2] TOCQUEVILLE, Alexis de, Lembranças de 1848. São Paulo: Cia das Letras, 1991.
[3] Com relação a ação dos camponeses durante a revolução de 1848 há bastante controvérsia. Jean-Luc Mayaud afirma, por exemplo, ao ser revelada na área rural a insurreição parisiense os camponeses aproveitam-se do vazio de poder, redobram sua contestação e se reapropriam dos bosques comunais – então nas mãos do estado, empreendem um corte selvagem da madeira disputada com os grandes proprietários, guerras aos castelos e presbíteros e protestos coletivos pelo direito de uso das terras.(La Révolution de 1848, p. 335)
[4] La Révolutionde 1848: une histoire Sainte Revisitée in Les Révolutions Françaises. Paris, Fayard.
[5] Fatores estes quase que ignorados por Tocqueville, pesar de seu “sentido agudo das realidades sociais” (Braudel). O autor responsabiliza rei e sua política pela revolução.
[6] Introdução de F. Engels à Edição de 1895 in Marx, K. As Lutas de Classes em França, Lisboa, Edições Avante, 1884.
[7] Bakunin, Michael A. A revolução de fevereiro de 1848 vista por Bakunin in textos Anarquistas. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2000.
[8] MARX, p. 44
[9] LAMARTINE in MARX, p. 48
[10] MARX, P. 62
[11] Tocqueville refere-se a Revolução Francesa e aos Jacobinos.
[12] Grifos meus.

Ele






*ou Uma Psicose Urbana


Ele ali. O escuro. Transpiração e o sangue escorrendo pelas paredes imundas. E o mundo, lá fora, cruel e decomposto, com seus carneiros e lobos. A lua cáustica no céu. Réstia de luz entrando pela janela. Suas unhas presas naquela nuca lisa e branca.
Perdera-se, era verdade. Por uma porção de fatuidade, perdera-se para sempre entre as brumas e a umidade. Aquele cheiro de pedra e terra. Solidão. Por que nada era perfeito. Era, Ele era, simplesmente, assim, uma coisa. Não queria mais pensar e se explicar. Não sabia de onde vinha, nem para que era. Fazia tanto tempo que não lembrava mais. Era simplesmente. Simplesmente o lobo.
Tudo sinistro e perverso sempre, mas misteriosamente vivo. Mas nada a ver com a paz dos cemitérios. Sempre havia os carneirinhos brancos e românticos. Cheios de cachos ou, às vezes, com uma nuca lisa e tenra. Tiravam-Lhe de sua insônia eterna e davam-lhe paz. Em troca tinham dor, prazer e a eternidade. Como Cristo na cruz.
Tinha que ser assim. Sem nenhum colchão para se levantar. Sem o sol para aquecer, mas antes, bem, toda aquela monstruosamente fria. Deliciosamente cruel era. Mas. Gostava de descansar na terra fria, entre os vermes e os escorpiões. Acariciavam-Lhe as peles. Toda aquela escuridão e frio. A ausência completa de luz e alegria. Eram as labaredas frias do inferno enternecido. O inferno da eterna procura. O tormento voluptuoso e protegido da eterna fome. Ele era a Divindade viva. O espírito das labaredas frias e azuis. Era a escuridão, tão linda, em forma viva. Uma rocha fria. Repousando viva no ventre da terra mãe. Não lhe cabiam quaisquer dores.
Mas sempre achava que suas vítimas eram mais majestosas. Por que pequenas porções ensolaradas de glória celestial. Eram lindas. A pura frivolidade de Deus entediado. Mesmo quando de seus pescoços jorravam aquele sangue vermelho e quente. Eram pulcras. Era essa sua força malignamente ingênua e solar que o alimentava. Jorravam a luz solar avermelhada dos entardeceres entorpecidos. Nunca mais os tinha visto. Os entardeceres. Lembrava-se. De modo indefinido. Em seus sonhos, misturava sangue e crepúsculo sempre. Era como uma saudade estúpida. Lembrava-se também, às vezes, das manhãs frias cheias de sol. Da vida sob o sol restava-Lhe apenas um suspiro vago. Na brisa do mar, lembrava-se do gosto do sushi e do peixe cru. Mesmo assim adorava suas noites de sexo e sangue.
Mania, a sua. Crueldade. Deixara o pobre carneirinho debatendo-se, enquanto divagava. A garganta aberta e o pânico único das presas que prevêem o fim. Em seus olhos via aquela desesperação insana, que só as lebres têm: o medo do lobo. Tinha que ser rápido agora, antes que ela se empalidecesse rápido. Tinha que estar viva. Não era um carniceiro. Queria em um destes momentos, aonde o término chegava, ver seus próprios olhos e sentir o que elas sentiam. Teria o olhar dos predadores? Sabia de sua crueldade. Era sua natureza. Quase felino, gostava de brincar com os carneirinhos assustados. Como um gato brinca com um passarinho antes de matá-lo. Sexo e sangue. Mas tudo terminava sempre igual. Um corpo inerte. E Sua sonolência morna. Era triste. Depois. Era triste haver tanta fome. Nele, e no Mundo.
Era triste haver tantos gritos de dor. Havia algo de místico. Era guiado por uma característica única e ao mesmo tempo comum a todas as suas escolhas. Eram elas que o seduziam. Gritavam pelo seu nome, renunciando à vida e ao sol. Aquele grito místico de dor, silencioso e triste. Único dos que ainda estão vivos em vida e sofrem. Pois os mortos-em-vida não lhe interessavam. Apesar da abundância, suas carnes eram ruins e pestilentas. Fedorentas. Seus sangues embrulhavam-Lhe o estômago, causando-Lhe vômitos na lage fria. Por isso era sempre precisava, todas as noites, bem escolher. Gostava da luxuria das carnes tesas. Gostava do gosto dos carneirinhos saudáveis e belos. Ria-se, com freqüência, por chamá-los assim.
E também não podia apelar para o sangue dos mortos. Cemitérios e hospitais eram muito indigestos. Eram para as crianças. Para os tolos que não sabem saborear a frivolidade da vida. Alguns como ele, viveriam de ratos e pombos.
O carneirinho loiro de hoje debatia-se em seus braços. Inconsciente de seu glorioso destino. No seu rosto, dor e prazer, ungidos pela morte. O êxtase substituía agora aquele medo louco. Certamente, a morte que lhes dava era diferente. Acumulava todo o gozo da vida em um só momento. Esse seria o maior prazer que este carneirinho teria em sua curta e miserável experiência. Isso o deixava quase satisfeito. Sentia que em sua natureza de predador fazia algo quase bom. O deleite moribundo dos que morriam em seus braços era insuportavelmente luminoso. Era de sua natureza proporcionar-lhes isso. Seria a morte que lhes dava a redenção? O grito místico de dor, quase desaparecia. Era uma hora de troca. Ambos teriam prazer e paz. A dor e a tristeza cessariam. Pelo menos para o cordeiro moribundo. Para Ele, seria uma questão de tempo. Até que a fome insuportável o arrancasse de novo da sonolência.
Aí, levantaria, de novo, entre a fumaça dos carros, à procura de uma nuca lisa e tesa. Sua potência vinha desta fome, e do cheiro de sangue e de dor. Estas horas também eram vividas e prazerosas. Cheio de força, agradava-lhe muito a caça.


Gulhermo de Mont Serrat

Dois espaços entre silêncios




Белые ночи (Noites Brancas) (1848)
"Escute-me só por um momento! Perdoe-me se lhe digo mais uma coisa... É o seguinte: não posso deixar de aqui voltar amanhã. Sou um sonhador; a minha vida real tão reduzida que momentos como estes que agora vivo são para mim de tal modo preciosos que não poderei evitar de os reproduzir nos meus sonhos. Sonharei consigo toda a noite, toda a semana, todo o ano. Voltarei obrigatoriamente aqui amanhã, justamente aqui, a este mesmo local, a esta mesma hora, e sentir-me-ei feliz por recordar o que hoje aconteceu. Doravante, este lugar é sagrado para mim." (Dostoiévski)




Quero escrever-lhes, pois. A Todos aqueles que foram, aos que são ou que apenas não passaram ou passarão de uma possibilidade. Escrevo-lhes, principalmente, aos dois, pontos cegos da minha existência que voa. Pois bem, amo-os, por vezes, mais do que a mim mesmo. De fato, meu amor é cruel, meu amor é ilusão e loucura. É fogo-fátuo alucinado. Aprendiz. Mas, e, no entanto ai está alguma das graças do amor: o anular do inferno do ego e do Eu. Eu, aquele que gritava no espaço vazio entre tu e nós já não é mais unidade, e liberta-se para a vida e para as flores.
Mas ainda amar assim; forte, brutal e violentamente, pode trazer um pouco de dor. Ardor, dor e amor, postam-se sempre e eternamente juntos. Pois, então, não quero mentir-lhes. Mas minhas botas já têm tanta lama, e eu sei, “afinal quem pode viver sem ilusão?” Somente um mostro.
Mas sei do que sinto, quando olho direto para sarjeta tonta, para as margens e para o centro. Destroem-me as carnes, e me dizem, vai, deita e finge. Loucamente finge. Então, continuo ali, esperançando viver, contudo assim rezo “mate-me, matem-me, estraçalhem-me”, pois que se não há amor no mundo, só há ego e incompreensão... Prefiro o nada, o negro e profundo nada, onde se calam todos os humanos silêncios,... E de onde não há mais que. Em pequenos sonhos. Penso constantemente na morte, e na vida, por que tenho medo. Medo de amar demais. Medo de amar de menos.
Bom, tudo bem, vocês já sabem, vou assumindo esse ar cruel, essa coisa boba, esse fingimento radical, no meio daquela minha velha-nova e fresca inocência tosca - aquela guardamos todos, no meio de canela, cravos e mel – mas que ainda ouso-lhes revelar. É não hei de me submeter. Nem ao mortos, nem às moralinas. Nossos espectros são doces, e são a terra. São as cores. Merecem vibrar. Basta-nos de morte, basta-nos de expiação e tristeza. Aceitar a vida, o mundo envolve, assim, aceitar a dor e seu lado sombrio. A Solidão. Pura, imunda e funda. Inexorável. Mas aceitar o nada, o fim, as dores; é aceitar a vida. Pois já que nascemos, não temos outra opção.
Desculpe-me baby, desculpe-me, mas procuro ainda, e, no entanto a pura e doce vida, aquela sem transcendência, sem mortificação. Quero o ser puro das flores, dos pássaros e das feras. Quero mais e, porém. Não quero além. Quero hoje e agora e não amanhã. Estou farto do amor mortificador, vamos mutar nossos amores, e mais mudar nossa consternação. Nessa vida, são tantas as formas de amor. Por que devemos dizer não? Por deve-se aceitar o des-amor? Por orgulho, resignação, ego e mortificação? Depende de nós, isso de amar, é intencional, bestial e a única glória da vida. O resto é rosto. É máscara. São as personas que nem subsistem. Vai tudo para a tumba, para o pó. Vamos mesmo assim continuar a des-amar? Para que para conquistar mais amarras, mais forcas e selas? Chega dessa moralina mortificadora dos padres. Pois que deus já não existe, e se existe está entediado demais para prestar a atenção em nós. Façamo-nos, pois, um favor. Vivamos. Loucos, nômades e libertos. Pois que são tantas as formas de mistificação, e escravidão romperemos juntos as correntes.


Guilhermo de Mont Serrat

Carta de um fauno para os homens


A imprevisibilidade da vida é parte da fragilidade humana; somos todos frágeis e vulneráveis. Pois sim. Mesmo que o recusemos – além dos fatos e de nossas dores. Aceitar essa fragilidade faz-nos mais fortes, mais leves e mais serenos. Dá-nos consciência de nossa fugacidade, da efemeridade de todas as coisas. É inútil racionalizar nossas dores, nossos medos, nossos amores. Ora, seja, esteja, vida e ponto.
Está, tudo bem, dói muito às vezes. Dói ainda um pouco. Mas aceitar algumas coisas, dizer adeus e falar bem, tudo vai ficar bem... Mas aceitar a mediocridade, e o conformismo é pior, é um suicídio cotidiano, como já dizia Balzac. Faz parte então do jogo, da vida reformular as coisas, pensar as coisas, para ser e estar melhor. Mas quem pode saber do futuro. Quem? Quem pode saber quais separações nos farão sentir gosto da morte? Eu não quero mais me separar, de ninguém. Estou cansado de me limitar, limitar meus carinhos, meus sorrisos e afogá-los em lágrimas. Não quero mais aceitar estas limitações do tempo e do espaço, por que na verdade intuo que somos todos apenas Um. Mesmo que isso pareça naïf.
Mas vamos esquecer aquilo que se tornou pesado, aquilo que se tornou triste e para sempre soturno. Contudo mesmo assim aceitemos nosso lado escuro, aquele que com força diz: viva, continue e sinta. Foda-se o mundo e toda sua decadência! Fodam-se as bombas (H), os tiranos e todas as criancinhas pobres. Esse é um lado necessário, sombrio, demoníaco, meio que mágico e duro que diz: ‘sobreviva!’, pois que nesta tosca selva de plástico e lixo, ferram-se os poucos humanistas que restam, os inocentes e as polianas geralmente já bem descabeladas. Mas tudo bem, no meio de toda essa dor, todo esse derretimento e este fedor de enxofre, eu ainda quero, quero mais e além. Quero você(s). Quero sentir, comunicar, religare e amar. Quero ser mais que um, plural, múltiplo e brutal. Porquanto que tenho fome, tanta fome. Daquilo em você, nele, nos outros, em mim-outros, daquilo que nos olhos das vespas de gravata e terno não há... Daquele mistério insondável e terrivelmente vasto. Talvez isso que busco, que buscas, seja toda a poesia, todo o lúdico e o ilusionismo, algo que se perdeu no tempo, com toda essa eletricidade, toda essa técnica e mecânica – toda essa fumaça cinza. E é esse algo além que busco, esse além, como um fauno, ou um Pã. Selvagem e desgraçadamente. Vivo. Nômade. Te amo e te amarei para sempre.
Guilhermo de Mont Serrat

Bobók, de Dostoiévski









Augusto Patrini Menna Barreto Gomes




O conto Bobók é talvez uma porção da genialidade de Dostoievski, que ao dialogar com a tradição das sátiras menipéias com outras obras[1] da literatura russa, desenvolveu um texto intricado, rico e muito interessante. Nele estão presentes elementos como a interiorização das ações, uma trama diminuta e o fantástico construído por elementos do sonho e da perturbação mental do protagonista. Além disso, o texto é todo permeado pelo grotesco e pelo fantástico (os mortos falam e são tomados por impulsos “vivos” ou sensuais-carnais, absurdos grotescos como a busca de um médico depois de morto), pela carnavalização - de acordo com aquela concepção de Bakhtin - a inversões do status co, o cômico no mundo dos mortos etc, o intricado conflito de vozes que entre outros elementos que tornam a obra mais complexa do que poderia parecer sob uma leitura rápida e superficial.
Na verdade, este texto insere-se em um contexto interessantíssimo e apresentou-se como uma resposta[2] irônica e sarcástica às criticas recebidas por Dostoiéviski por seu algo profético romance “Os Demônios”, que é uma incrível crítica feroz ao niilismo político então em voga na Rússia, sobretudo entre os populistas. O conto Bobók foi portanto publicado anonimamente em 1873 no semanário Gradjanin, onde Dostoiévski era redator chefe. Entretanto, talvez seu aspecto mais interessante, é que nesse conto é possível identificar um diálogo polifônico com as vozes dos críticos d´”Os Demônios”- por exemplo: quando o protagonista de “Bobók” é tachado de louco, uma chacota com fato que o próprio Dostoiévski ter sido tachado assim pela crítica que ao ler o referido romance ultrapassou em muito os aspectos desta obra. Para responder estas críticas, muitas vezes de caráter ofensivo, Dostoiévski, cria um estranho narrador que não é ninguém, mas muitas vozes (a chamada polifonia identificada por Backthin), a do próprio Dostoievski, mas também a dos seus críticos. O dialogismo de Dostoiévski, presente neste texto, deixa espaço para que outros textos, autores e obras possam se introduzir e interagir em seu texto.[3] O texto assim nos remete obrigatoriamente para a leitura de “Os Demônios”, mas também para a leitura de seu tempo, e das várias vozes críticas que lhe faziam oposição.
Além disso, o conto é uma violenta crítica ao modo de vida da aristocracia russa de sua época, que segundo Dostoiévski era decadente, mal-cheirosa, imoral e “morta-viva”[4]. Há uma aberta crítica aos valores burgueses que penetram nesta dita “aristocracia” levando-a um comportamento imoral, e vulgarmente ansiosa por prazer.
O fantástico introduzido no texto pelos elementos conflitantes de ir-realidade - realidade também tornam interessante o texto Bobók, já que o autor utiliza-se do devaneio, do sonho, e da perturbação mental do protagonista para criar essa dúvida e tensão na natureza fantástica e ou doentia dos fatos narrados e diálogos travados Porém como nos lembra Paulo Bezerra[5], para Dostoiévski, o fantástico é apenas uma das formas de manifestação do real. Assim os “fatos” narrados em “Os Demônios”, suas conseqüências, do mesmo modo que as críticas ao livro e ao seu autor são tão fantásticos e “extra-ordinários” como os acontecimentos fantasmagóricos de Bobók. Nesta compreensão há portanto, uma convicção que a realidade russa estava profundamente marcada por um certo sentido de absurdo e mentira – o que acaba por tornar tudo tão “extra-ordinário”, morto e putrefato.

[1] De acordo com Paulo Bezerra este conto dialoga com o Diálogo dos Mortos, de Luciano de Samósata, algumas narrativas fantásticas de Púshkin – (A dama de Espadas e O Fazedor de Caixões), O Morto Vivo de Boboríkine Diário de um Louco de Gógol.
[2] É interessante lembrar que Dostoiévski utilizava-se da ficção para opinar sobre assuntos em pauta nos meios jornalísticos e intelectuais russos de sua época. Outro texto deste tipo, bastante interessante é A Dócil – onde o autor aborda o tema do suicídio.
[3] BEZERRA, p. 120
[4] “Como para Dostoiévski,(...) esses mortos aristocratas perderam o sentido da dignidade humana e a razão de viver, e por isso, não passam de cadáveres em decomposição [...] (...) e não foram capazes de propor senão o mesmo hedonismo vazio, a mesma trivialidade que lhes marcaram a existência enquanto vivos.” BEZERRA, p. 162.
[5] Idem, 161.

Breve Comentário sobre a Revolução Francesa












Augusto Patrini Menna Barreto Gomes


Dois são os principais significados da Revolução Francesa: a centralização política e a ampliação do poder estatal e o fim dos privilégios estamentais e o conseqüente estabelecimento da igualdade jurídica e formal entre os homens. Grande parte da historiografia considera a revolução francesa como o evento cataclísmico que promoveu uma ruptura definitiva nas estruturas políticas e sociais do mundo europeu, inaugurando assim o chamado mundo contemporâneo. Baseado nos textos de Tocqueville, e nas interpretações do historiador François Furet, pessoalmente descordo em parte desta interpretação. A suposta ruptura da revolução francesa deve ser considerada relativa, uma vez que esta compreensão pode ser decorrente da própria tentativa dos contemporâneos a ela em estabelecer ma ruptura e nega o passado.

É bastante claro que ouve, em certo sentido, uma “passagem” da sociedade tradicional – caracterizada por ordens e estamentos – para uma sociedade moderna caracterizada por indivíduos móveis e teoricamente iguais. No entanto, penso, assim como Tocqueville que existem elementos de continuidade entre o Ancien Régime e o mundo “inaugurado” pela Revolução. Estes elementos plenos de ambigüidades podem ser localizados precisamente nas transformações administrativas, e políticas centralizadoras que foram conseqüências de 1789. É bastante irônico que Napoleão, assim como anteriormente Robespierre, – fruto diretos da revolução, tenha empreendido uma ampliação destas modificações no caso de Napoleão por toda Europa, e ainda fortalecendo e ampliando a ação do Estado. É bastante irônico também que em nome da liberdade tenham se realizado o Terror e o Império Napoleônico, frutos da concentração de poder e do despotismo (ver Burke e Edgard Quinet).
Outro aspecto interessante, e talvez fundamental de ser notado é que a Revolução Francesa marcou a transferência das expectativas humanas para o político, anteriormente muito ligadas à religião. O ataque à religião, durante a revolução foi somente uma forma de talvez permitir uma ampliação do poder político-administrativo.
Por outro lado, é verdade que pautada em princípios dos filósofos do século XVIII, a Revolução Francesa promoveu as modificações no direito, e o estabelecimento jurídico da igualdade entre todos os Homens, revelando um assim um significado bastante demarcador.

O Sofrimento do Jovem Goethe, e o advento moderno do homem-indivíduo






Augusto Patrini Menna Barreto Gomes










Romance de 1774[1], “Os Sofrimentos do Jovem Werther” é o primeiro livro de Johann Wolfgang Von Goethe, e pertence à tradição do movimento Sturm Und Drang (Tempestade e Ímpeto)[2]. Lançado anonimamente na feira de livros de Leipzig (Alemanha), tornou-se rapidamente um sucesso. Baseado em fatos reais[3], o livro narra a experiência de um rapaz atormentado pelas agruras de uma paixão não correspondida.
O protagonista é um típico representante do Empfindsamkeit (Sentimentalismo), e seus conflitos são paradigmáticos para entendermos as tensões - surgidas após a Revolução Francesa e Revolução Industrial e as transformações da modernidade - entre o individuo e a sociedade (a aristocrática e a nascente burguesia), seus códigos, contradições e normas. Nesse sentido, pode-se mesmo afirmar que a própria noção de individualidade é muito tributária desta época, quando haverá um descompasso entre os hábitos consolidados e aqueles homens e mulheres com um espírito novo[4]. No caso da história do livro de Goethe, este conflito entre individualidade e sociedade é mais agudo ainda, na medida que é transpassado pelo triângulo afetivo: Werther, Albert e Lotte, o qual transgride em muitos momentos alguns códigos e posturas da antiga e moribunda sociedade aristocrática. A própria narrativa, de forma epistolar e em primeira pessoa, é sintoma especial da nova mentalidade surgindo e expressa uma introspecção psicológica e uma confissão lírico-dramática. Tanto Werther como Goethe, podem ser vistos como portadores deste novo tipo de mentalidade.
O livro “Os Sofrimentos do Jovem Werther” é considerado pela historiografia da literatura alemã obra inaugural do movimento artístico, político e – principalmente literário, “Sturm und Drang” (1765-1785), que de forma contestatória, revoltou-se “artisticamente” e existencialmente contra os valores tanto da aristocracia quando contra aqueles da burguesia. Os heróis dos livros pertencentes a este movimento são paradigmáticos na medida que ilustram a tentativa de se romper às convenções e representações morais.
O Sturm und Drang foi um movimento essencialmente alemão da segunda metade do século XVIII, que precedeu o período das Luzes (Aufkärung), nasceu em resposta ao racionalismo, pregando a superioridade dos sentimentos. As emoções são exaltadas constantemente pelo movimento: Werther diz no livro “Apesar disso, diga-se o que se disser, toda regra destrói o verdadeiro sentimento e a verdadeira expressão da natureza”.[5]
Pode-se afirmar que ele foi uma reação ao classicismo acompanhante do absolutismo[6], na medida em que também constituiu uma revolta dos “jovens cultivados” contra o status quo e contra os príncipes alemães. Apesar de ser representante de um irracionalismo, tinha como referências[7] fundamentais a Revolução Francesa, a liberdade e os Direitos dos Homens, já que era acompanhado por uma vontade de emancipar os indivíduos: “Como a espécie humana é uniforme! A maioria trabalha quase todo o tempo para viver, e o pouco tempo livre que lhe resta pesa-lhe de tal modo, que procura todos os meios possíveis para dele se libertar. Oh! O destino do homem!”[8] Werther parece ser um bom exemplo de individuo que se revolta contra as normas e busca uma libertação pelo seu contato com a natureza. Essa contestação (ou revolta), pode ser, então, levada ao extremo em que dar fim à própria a vida corresponde à única saída: “A natureza humana – prossegue – é limitada: ela suporta a alegria, a tristeza, a dor até um certo ponto, se ultrapassar, irá sucumbir (...) Nesse caso, acho tão absurdo dizer que um homem é covarde por haver dado cabo da própria vida, como seria absurdo chamar de covarde o que está morrendo de uma febre maligna”[9]. O trecho expressa bem o conflito, talvez aquele do próprio Goethe, exemplo do novo “homem-indivíduo” torturado pelas limitações impostas pelo meio social. É nesta época que aparece na arte e nas idéias a concepção de “gênio” – no momento que a igualdade humana é negada em nome das singularidades individuais.
Esse movimento é visto por parte da critica literária como precursor do Romantismo, e por isso, é eventualmente e normalmente chamado de pré-romantismo. Muitos de seus pontos são similares com o romantismo, porém algumas de suas idéias, principalmente políticas, são opostas aquele. O Sturm und Drang, movimento politicamente contestatório, foi fortemente marcado pela influência de Rousseau, Shakespeare, e Herder[10], além de claro, do jovem Goethe. Já o Romantismo do Século XIX, assume alguns aspectos de reacionarismo e foi fortemente influenciado por Fitchte e Shelling. Mesmo assim, é verdade, há uma intima ligação entre os dois movimentos. Grande parte dos historiadores considera o Sturm und Drag uma das varias forma de romantismo, assim parece proceder Benito Nunes quando escreve sobre o Romantismo:
(...) por trás destes aspectos do culto da natureza, enquadrados num confronto dramático com o mundo, está silhuetada a tácita insatisfação com o todo da cultura, misto de afastamento desencantado e de reprovação à sociedade, depois do assomo libertário do idealismo de 1789. [11]

O comentário pode, muito bem, se adequar perfeitamente ao livro de Goethe, e a seu protagonista. Sobre isso, escreve Gerd Bornheim em “A Filosofia do Romantismo”:

Estas idéias de Rousseau encontram profunda repercussão no espírito dos “gênios” do chamado pré-romantismo alemão, o Sturm und Drang. Esses jovens “gênios” levam a sério a oposição entre natureza e cultura, exagerando-a a ponto de se entregarem a uma rebelião frenética a todos os valores estabelecidos. [...] Assim, os “gênios”, como o Werther, de Goethe, também buscam refúgio na natureza, e inspirados em Rousseau, procuram uma participação que dá primazia ao sentimento. [12]

E ainda acrescenta sobre a diferença entre os dois movimentos:

O Sturm und Drang foi, sem dúvida, um grande precursor do romantismo. A filiação a Rousseau, sobretudo, apresenta-se com características eminentemente românticas. Mas é precisamente esta filiação que permite medir toda a distância que há entre o Pré-romantismo e o movimento romântico propriamente dito, pois este parte, não do genebrino protestante, mas do criticismo transcendental de Kant e do idealismo de Fichte. A despeito disso, o Sturm umd Drang revela-se um antecipador do Romantismo, pois constitui uma etapa decisiva na evolução da cultura romântica.

Finalmente Gerd Bornheim diferencia os dois movimentos vinculando o Sturm und Drang à reforma e ao irracionalimo pietista[13]. Já Anatol Rosefeld, lembra-nos que o que acaba por destruir o protagonista do livro é “seu subjetivismo exacerbado, nutrido pelo pietismo; é o voluptuoso e auto-devorador sentimentalismo que encontra satisfação no gozo da dor e acaba minando a relação entre este Eu-mórbido e o mundo real.”[14]
Portanto, talvez o sofrimento do Jovem Werther represente o sofrimento do próprio autor, Goethe, e uma sensação de inadequação, comum a muitos artistas e “homens-Indivíduos” perante um mundo semimoribundo, e por seus valores envelhecidos pelas modificações sociais, políticas, artísticas e culturais em curso a partir de 1789.

Bibliografia Auxiliar:

ANCELET-HUSTACHE, Jeanne. Goethe par lui même. Paris, Seuil, s/d.
Vários. Século XIX : O Romantismo. RJ: Museu Nacional de Belas Artes, 1979.
[1] Há uma segunda versão, modificada de 1787, as modificações o enquadram, porém, no Classicismo de Weimer, tendência artística (oposta ao anterior Sturm und Drang) a que Goethe representou em sua maturidade.
[2] O nome vem de uma peça de Friedrich Maximilian Klinger. São representantes desta escola, além de Goethe em sua juventude, também Friedrish Von Schiller (1759-1805) e Johann Georg Hamann, Johann Gottfried Herder, Göttinger Hain, Friedrich Leopold Heinrich Leopold Wagner, e Friedrich Maximilian Klinger. Um dos ídolos do movimento era Friedrich Gottlieb Klopstock.
[3] De acordo com alguns estudiosos, o livro é baseado no amor malsucedido de Goethe por Charlotte Buff, e o suicídio de Werther inspirado no caso de um colega da universidade que se suicidou para fugir dos conflitos de uma paixão.
[4] Um ótimo estudo realizado por Norbert Elias, sobre Mozart é exemplar para ilustrar este conflito que se aprofundaria posteriormente mais ainda no século XIX: ELIAS, Norbert. Mozart: Sociologia de um gênio. RJ: Jorge Zahar Editor, s/d.
[5] Goethe, Johann Wolfgang. Os Sofrimentos do Jovem Werther. São Paulo, Editora Martins Claret, 2005, p. 20
[6] É interessante notar que quando Werther se suicida encontram a peça Emília Galotti aberta, a qual critica os abusos dos príncipes absolutistas.
[7] Estas referências não estavam livres de ambigüidades.
[8] apud, p. 17
[9] apud, p. 50
[10] Johann Gottfried von Herder foi um filósofo e escritor alemão (Mohrungen, Prússia Oriental, 25 de agosto de 1744 - Weimar, 18 de dezembro de 1803). Autor de Ensaio sobre a origem da linguagem, de 1772, Herder publicou suas duas principais obras: Outra filosofia da história para a educação da humanidade, de 1774 e Idéias sobre a filosofia da história da humanidade (1784 a 1791).
[11] NUNES, Bento.A Visão Romântica. IN: guinsburg, J. O Romantismo. Editora Perspectiva, p. 67
[12] BORNHEIM, Gerd. Filosofia do Romantismo. IN: apud, p.81
[13] Movimento religioso alemão que fazia da religião algo estritamente individual.
[14] ROSENFELD, Anatol. Introdução. IN: Autores Pré-Românticos Alemães. São Paulo:EPU: 1992.

A representação do Populismo Russo na Literatura.

















Augusto Patrini Menna Barreto Gomes





De acordo com Franco Volpi, no pensamento circulante na Rússia do final do século XIX o niilismo tornou-se um elemento presente e constante em toda atmosfera cultural do período. Na verdade Volpi refere-se ao caldo de desencantamento com as perspectivas sociais e políticas das esferas sociais “progressistas” russas (intelligentsia[1]), desiludidos e céticos com qualquer tipo de reforma ou modificação moderada da situação sócio-politica russa. Estas esferas, grupos político de coloração variada, em sua época eram conhecidos como populistas ou algo pejorativamente como niilistas - como veremos termo divulgado no país pelo escritor Turgueniev.
Apesar de os populistas dizer respeito a grupos variados e dispares em ideologia, propostas e métodos, pode-se afirmar que tivessem em comum a “revolta anti-romântica e antimetafisica dos ‘filhos contra os pais’, contestando a autoridade e a ordem vigentes e atacando especialmente os valores da religião, da metafísica e da estética tradicionais, consideradas ‘nulidades’ fadadas a desvanescer-se”[2] Porém como nos lembra Isaiah Berlin[3] os populistas russos, ao contrário dos bolcheviques (marxistas) não eram deterministas históricos, nem nacionalistas místicos como os eslavófilos: seus objetivos eram justiça social e igualdade social.
Talvez seja importante lembrar-nos que entre seus teóricos estéticos, autores de textos radicais interessantíssimos, já no final de século, encontravam-se Nikolai A. Dobroliubov (1836-1861) e Dimitri I. Pisariev (1840-1866). Ambos defendiam formas de utilitarismo estéticos extremados e um tanto limitados que talvez tenham influenciado várias gerações de artistas russos e soviéticos.
Porém também possuem importância, por motivos diferentes, Nikolai G. Tchernichévski e Serguei G. Nietchaiev (1847-1882). O primeiro foi um agitador cultural, estudante de economia defensor de uma visão crítica materialista e céptica, utilitarista, radical e cínica de tudo que existia, mas principalmente dos aspectos sociais e políticos. Ele foi o autor de um romance que atingiu grande prestigio entre os russos de sua época: “Que fazer?” de 1863, onde defendia em forma de um romance uma nova forma de vida, marcada pelo abolição das tradições, comunitarismo, onde novos homens e mulheres eram distinguidos pela luta pela emancipação popular. Vale lembrar, no entanto, que de acordo com Joseph Frank[4], o populismo radical russo, deve em parte sua gênese às idéias eslavófilas – ou seja, ao pensamento algo reacionário que pensava o mir, o mujique e a tradição camponesa como soluções para a Rússia.
Já Netchaiev era autor do chamado do chamado “Catecismo Revolucionário” cujos princípios destilam um impiedoso, frio e calculista sentido para a fé revolucionária defendida por seu autor[5].
Estas duas formas de ver “o problema russo” era característico da chamada nova geração da intelligentsia russa, típica da década de 60, do século XIX. Seu radicalismo estremado, às vezes quase grosseiro (principalmente no caso de Nietchaiev), e seu utilitarismo absurdo não eram completamente compartilhados por seus predecessores mais importantes como, por exemplo, Aleksander I. Herzen, possuidor de uma visão mais moderada e nuançada sobre as várias questões que afligiam então a Rússia. Apesar de ser considerado liberal pelos radicais do final do século[6], ele foi grande influenciador dos populistas, pois foi um dos primeiros membros da intelligentsia a idealizar o mujique, além de ter sido o preconizador da “ida ao povo”. Como nos lembra Volpi, Herzen fez uma crítica aos chamados “budistas da ciência” e defendeu o engajamento social e político. Mesmo assim, apesar de ser a principal base teórica dos populistas[7], ele era contra as formas estremadas como aquela de Nietchaiev.
Mas Herzen era, um representante da geração anterior da intelligentsia (40), chamada por Turgueniev[8] da geração dos ‘pais’ em seu romance mais conhecido. Essa obra talvez seja uma das representações do tipo populista mais importantes na literatura Russa. Turgueniev talvez tenha sido um dos intelligentsi a questionar a arrogância da nova geração.
O romance “Pais e Filhos”[9] de 1862, coloca em cena duas gerações da chamada intelligentsia russa. As duas gerações da intelligentsia representadas por Turgueniev são aquelas de 1840 e de 1860 – que no fim do século XIX se viram em campos opostos. O enredo é bastante simples – a visita da nova geração (Bazárov e Arcádio) à velha geração (pais de ambos), todavia as entrelinhas do romance podem ser consideradas complexas. A oposição entre essas duas gerações foi questão candente no meio intelectual russo da época. A geração de 1840 (da qual o próprio Turgueniv fazia parte), em linhas gerais, era mais moderada, e defendia reformas para “modernizar” a Rússia e seu atraso – na visão da geração radical de 60 estes eram conservadores e conformistas. Como já vimos os representantes históricos da geração de 60 se radicalizaram defenderam posições populistas-niilistas que no final do século assumem configurações revolucionárias e terroristas expressas em ações de grupos como “Vontade do Povo”, “Terra e Liberdade” e “Justiça Sumária do Povo”.
No romance de Turgueniev, apesar da principal personagem, Bazaróv, resvalar o verdadeiro niilismo, ela não é, porém, totalmente destituída de princípios: entretanto estes princípios são ancorados numa crítica radical à sociedade russa da época; e sua negação não é desprovida de ambigüidades. Na verdade Bazárov parece ser um protótipo de populista russo (conhecidos então como niilistas), existente na época: seus princípios acompanhem um certo comportamento extremado que se manifestou em parte dos russos educados. Uma crítica que corresponde aos princípios defendidos por Herzen.
Turgueniev parece ter captado magistralmente, como artista, o ambiente sócio-cultural e político tenso que existia entre os membros da intelligentsia russa, do final do século XIX. Esse era um agrupamento social heterogêneo que não podia entrar em um acordo sobre as soluções para o “anacronismo” russo[10].
Ao que parece, a caracterização do “homem supérfluo” da intelligentisia poderia caracterizar homens como Turgueniev, pode também muito bem servir para Bazárov, ao menos se seguimos a linha traçada por Isaiah Berlin em “Père et Fils. Tourgueniev et le Dilemme Liberal”[11]. Apesar, de “Pais e Filhos” ser considerado uma crítica aos populistas, há uma clara - e assumida pelo próprio -, do autor com identificação com Bazárov.
André Mourois, afirma do mesmo modo que Turgueniev queria com “Pais e Filhos” acentuar as diferenças entre a geração do materialismo científico (aquela de Bazárov) e a do liberalismo de inspiração lamartiniana.[12]
Na verdade Bazárov é “absolvido” por Turgueniev, por suas ambigüidades, suas evidenciadas fragilidades e flagrantes paradoxos. O que há de dramático em sua história, é precisamente o que dá à personagem um caráter mais humano e real. O tipo de personalidade “niilista” que pareceu abrigar a Rússia do final do século e que Turgeniev (assim como Dostoiévski) parece ter representado com grande mérito é bem resumida pelo trecho da obra com o nome “Catecismo Revolucionário” de Serguei Nietcháiev: “O revolucionário é um homem que faz o sacrifício da sua vida. Não tem nem negócios ou interesses pessoais, nem sentimentos ou afeições, nem propriedade, nem mesmo um nome. Nele tudo está absorvido por um só interesse exclusivo, um só pensamento, uma só paixão: A Revolução.”[13] Este trecho parece ilustrar com alguma propriedade a personalidade de Bazárov, mesmo que não contemple todas suas ambigüidades. Talvez o modelo de comportamento buscado (mas não necessariamente realizado) pela personagem seja aquele contemplado mais com outro trecho:

Um revolucionário despreza toda a teoria; renuncia à ciência atual e abandona-a para as gerações vindouras. Não conhece senão uma só ciência: a da destruição (grifo meu). É para este fim, e só para este fim, que estuda a mecânica, a física a química e, se a ocasião se apresentar, a medicina. É no mesmo propósito que se dedica, dia e noite, ao estudo das ciências da vida: os homens, os seus caracteres, as suas relações entre eles, assim como as condições que regem em todos os domínios a ordem social atual. O objetivo é sempre o mesmo: destruir o mais rapidamente e o mais seguramente possível esta ignomínia que é a ordem universal.[14]


Isso, explica por que Bazarov, não tinha fé suficiente para acreditar na medicina e por que se deixa destruir sob o efeito do amor pela senhora Odintsov. Era mais louvável para seu tipo (modelo) espírito destruir-se, do que se permitir realmente viver, e amar. O que Bazárov por fim realiza é o tal sacrifício revolucionário, porém como nos mostra Turgueniev, este é completamente em vão e inútil. Seu sacrifício é vazio de sentido, e não traz nenhuma conseqüência para o povo da Rússia e seu Futuro. Isso, esse sacrifício inútil e tolo, porém, lhe dá algum tipo de verossimilhança, e complexibilidade[15].
Nesse sentido – do sacrifício - ele é um personagem um tanto romântico[16], pois em nome de princípios resvala um destino de herói romântico, nega de acordo com suas idéias niilistas qualquer possibilidade de vida e realização. Entretanto, para a personagem, a negação do amor é sua destruição. Ele não é romântico – no sentido vivenciar, mas as suas situações e escolhas parecem aquelas do revolucionário romântico. Seriam os populistas revolucionários românticos?
Porém, em certo sentido a personagem populista criada por Turgueniev parece inverossímil: um herói que se esforça em não possuir sentimentos, em exercer uma rígida e cruel crítica, irônica que não se preocupa com os sentimentos daqueles com quem se relaciona. Porém, como já vimos, se atentarmos para a impossibilidade que é próprio o Manifesto de Nietcháiev, percebemos como estas características eram as ansiadas por alguns russos da época, talvez aqueles mesmos que cometiam atentados terroristas. Bazárov, de Turgueniev, assim considerado é bem crível, pois o autor expõe suas contradições, suas ambigüidades, que manifestam, sobretudo no relacionamento com sua paixão e com seus pais. São suas ambigüidades que o destroem, mas que o colocam próximo do herói romântico e da descrição do “homem supérfluo”.
É interessante notar, que apesar de Turgueniev ser considerado em sua época pelo senso comum um “flateur” parisiense, esteta despreocupado da realidade russa – talvez por considerar que arte não deveria se submeter a princípios ideológicos - se percebe logo, com a leitura de “Pais e Filhos”, que seu romance além de ser em alguma medida ideológico, é também preocupado em representar a realidade russa. Postura típica da intelligentsia russa, foi muito defendida por críticos, notavelmente Belinski.
Há, porém, um aspecto do livro que o aproxima do interessantíssimo “Os Demônios”[17] de Dostoévski (romance profético, baseado no assassinato promovido por S. G. Nietcháiev e os membros da organização “Justiça Sumária do Povo”), uma crítica, - mesmo que bastante nuançada no caso de Turgueniev, aos homens que falam e criticam terrivelmente todas as coisas mas que não sabem nada propor, mas somente destruir. Dentre os adeptos desta destruição existiam os populistas que eram apenas propagandistas pacifistas como também outros que eram terroristas quase isolados, muito bem retratados em “Os Demônios”. Para os adeptos da violência, segundo I. Berlin, o assassinato a destruição e a mão de ferro, seriam formas – um tanto estranhas é verdade - de abrir “caminho para uma sociedade pacífica, tolerante, descentralizada e humana”. A critica avassaladora de Dostoiévski foi assim dirigida à este tipo de homem que defendia e belos ideais para transformá-los em horror, assassinato e tirania.
Em 1869, o grupo de Nietchéiev, “Justiça Sumária do Povo” executaram o estudante I. I. Ivanov, que tinha resolvido afastar-se do grupo. Dostoiévski, tomou conhecimento do fato pela imprensa e pela ampla polêmica que se instalou nos meios intelectuais russos e ocidentais[18]. O autor já havia refletido em “Crime e Castigo” (1863) sobre o niilismo, o ateísmo e suas implicações morais e práticas. Neste livro a reivindicação da liberdade absoluta feita pela personagem Raskolnikov, resulta em profundos problemas práticos e filosóficos. Porém será somente no livro de 1873 (Os Demônios) que fará uma crítica direta ao “niilismo” destruidor dos Populistas. Sua própria experiência no círculo socialista de Pietrachévski (que lhe valera uma condenação a morte), assim como o assassinato do czar Alexandre II em 1866 já tinham lhe levado a refletir sobre os rumos da esquerda russa. Neste novo livro o autor concentra-se nos aspectos da personalidade de Nietchaiev (protótipo para a personagem Piotr Stiepánovitch Vierkhoviéski), as bases ideológicas de sua organização, assim como o crime propriamente dito. No livro, como ressalta Volpi, as figuras d’“o anjo negro Stavragin – cujo modelo histórico real foi Bakunin -, niilista de inteligência luciferiana e depravada, que tudo corrói e destrói, sem conseguir transformar sua própria vontade diabólica”[19], além do ateu Kirillov, rígido defensor da lógica e amoralidade que se suicida para provar a não existência de Deus.
O objetivo panfletário do autor submeteu-se, no entanto, a sua visão da realidade como configuração histórica e dialética, e por isso a obra adquiriu feições de obra prima representando de forma irônica as várias vertentes de pensamento presentes na realidade russa.
A reação ao romance foi muito agressiva; populistas e ocidentalistas chamaram Dostoiévski de retrógrado[20]. Pensam que o caso de Nietchaiev era apenas um fato isolado, ao contrário do autor que considerava os movimentos internos e não somente a face dos fenômenos. Por isso afirmou:

Os principais propagadores da nossa originalidade nacional seriam os primeiros a se afastar horrorizados do caso Nietchaiev. Nossos Belinkis e Granovskis não acreditariam se lhes dissessem que eles são os pais diretos de Nietchaiev. Portanto, foram essa afinidade e essa sucessão do pensamento, que evoluíram dos pais para os filhos, que procurei expressar em minha obra.[21]

Além de termos neste romance uma critica profunda aos homens que em nome de idéias elevados, mas que na prática política acabam por negar estes mesmos valores, há nesta excelente representação do populismo russo feita Dostoievski uma aguda crítica ao conceito de homens e grupos políticos de vanguarda, arrogantemente auto-eleitos[22] como instrumentos únicos e capazes de libertar a humanidade. Essa apreciação pode ser entendida além dos populistas, mas também para os novos revolucionários que marcaram o destino da Rússia no século XX: os Bolcheviques. Pode-se mesmo concluir lendo o romance que alguns aspectos dos populistas adeptos dos métodos terroristas são resultantes de idéias anteriores a eles (a ver Herzen, Belinki etc) assim como também é possível inferir que alguns métodos dos bolcheviques (centralização, rigidez, frieza utilitarista, amoralidade) foram heranças legadas pelos populistas como Nietchaiev.


[1] A intelligentsia era um grupo social formado por homens relativamente instruídos que se caracterizavam, na Rússia czarista, por algum grau de oposição ao regime autocrático.
[2] FRANCO, Volpi. O Niilismo. São Paulo Edições Loyolas: 1999. p. 37.
[3] BERLIN, Isaiah. Les penseurs russes. Paris, Albin Michel, 1984.
[4] FRANK, Joseph. Pelo Prisma Russo: Ensaios sobre literatura e cultura. São Paulo: Edusp, s/d.
[5] Esse panfleto é o vestígio de como valores e objetivos nobres podem se transformar em ações cruéis e brutais, expressões da mais aguda tirania. Isso será profundamente denunciado, como veremos, por Fiódor Dostoiévski.
[6] Podemos considerar como lembra Joseph Frank que o populismo russo tinha duas vertentes, uma mais moderada e gradualista e aquela dos radicais frios e sem escrúpulos como era por exemplo Netchaiev.
[7] Ao falar sobre os populistas Herzen escrevia: “O niilismo é lógica sem restrições, a ciência sem dogmas, o respeito incondicional à experiência e a aceitação humilde de todos os seus efeitos, desde que brotados da observação e reclamados pela razão. O niilismo não transforma algo em nada, mas demonstra que o nada transformado por alguma coisa, é uma ilusão de ótica e que toda verdade, ainda que desfaça representações fantásticas, é mais saudável que elas e sempre obrigatória.” E ainda: “Tanto faz se esse termo é apropriado ou não. Estamos habituados a ele; amigos e inimigos aceitam-no; para a polícia é uma senha; transformou-se numa denúncia, ultraje para uns, elogio para outros.” Herzen apud:VOLPI, Franco. O Niilismo. São Paulo Edições Loyolas: 1999. p. 40
[8] Herzen escreveu ainda: “Evidentemente, se por niilismo entendermos o inverso da criação, ou seja, a redução dos fatos e das idéias a nada, num cepticismo estéril, num soberbo não fazer nada, numa desesperança que leva à inércia, nesse caso os verdadeiros niilistas jamais se encaixarão nessa definição e um dos maiores será I. Turgueniev, que atirou contra eles a primeira pedra, e talvez seu filósofo preferido Schopenhauer...” Herzen apud: VOLPI. Idem. p. 40
[9] Turgueniev, Ivan. Pais e Filhos. São Paulo, Editora Abril, 1971.
[10] O que nos perguntamos ao ler “Pais e Filhos” é quem seriam estes pais e filhos? Seriam apenas dois tipos de homens, ou uma variedade de tipos humanos presentes entre os intellientsi? Seriam os pais os dezembristas? Ou a geração reformista da intelligentisia. Quem eram então os filhos? Seria Bazárov um niilista iconoclasta ou apenas um populista?
[11] Père et Fils. Tourgueniev et le Dilemme Liberal IN : Les penseurs russes. Paris, Albin Michel, 1984. « Peut-être cela suffi-il à expliquer la genèse de celui qu´on allait désigner, dans le primier quart du siècle, comme « l´homme de trop », l´héros de la nouvelle littérature protestataire. Il fait partie d´une minuscule minorité d´hommes instruits et sensibles. Il est incapable de se trouver une place dans son pays natal. Replié sur lui-même, il ne peut s´évader que dans les fantasmes et les ilusions, dans le cynisme, ou le désespoir, ou encore, les plus souvent, il finit par se détruire de ses mains ou par capituler. Une honte cuisante ou une indignation furieuse, suscité par la misère et la dégradation d´un sistème où des êtres humains – les serfs – étaient considérés comme des « biens baptisés », et surcroît un sentiment d´inpuissance devant le régne de l´injustice, de la bêtise et de la corruption, entraînaient les imaginations et les sentiments refoulés [...] » p. 327
[12] MOUROIS, André. Turgueniev e a Filosofia Russa. Rio de Janeiro, Editora Alba, 1942.
[13] Nietcháiev S. G. Catecismo Revolucionário IN: http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/04/253458.shtml
[14] Op. Cit.
[15] As sutilezas apresentadas por Turgueniv são completamente diferentes do esquematismo desprovido de complexibilidade e verossimilhança presente em “Que Fazer?” de Tchernichévski.
[16] Op. Cit: “É necessário que o revolucionário, duro para com ele próprio, o seja também para os outros. Todas as simpatias, todos os sentimentos que poderiam emocioná-lo e que nascem da família, da amizade, do amor ou do reconhecimento, devem ser sufocados nele pela única e fria paixão da obra revolucionária. Para ele não existe mais que um prazer, que uma consolação, que uma recompensa, que uma satisfação: o sucesso da Revolução. Não deve haver, dia e noite, mais que um pensamento e um objetivo: a destruição inexorável. E prosseguindo com sangue frio e sem descanso a realização deste plano, deve estar pronto a morrer, mas pronto a matar com as suas próprias mãos todos aqueles que se oponham à sua realização.”
[17] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Demônios. São Paulo, editora 34, 2004.
[18] BEZERRA, Paulo. “Um Romance Profecia” IN: DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Demônios. São Paulo, editora 34, 2004.
[19] VOLPI, idem, p. 42.
[20] O autor escreverá o conto Bobók, como uma reposta irônica publicada anonimamente em 1873 no semanário Gradjanin, onde era redator chefe às críticas feitas à “Os Demônios”. Nesse conto é possível identificar um diálogo polifônico com as vozes dos críticos d´”Os Demônios”- por exemplo: quando o protagonista de “Bobók” é tachado de louco, uma chacota com fato que o próprio Dostoiévski ter sido tachado assim pelos críticos que ao lerem o referido romance ultrapassaram em muito os aspectos desta obra. O dialogismo de Dostoiévski, presente neste texto, deixa espaço para que outros textos, autores e obras possam se introduzir e interagir em seu texto. O texto assim nos remete obrigatoriamente para a leitura de “Os Demônios”, mas também para a leitura de seu tempo, contexto cultural e político, e das várias vozes críticas que lhe faziam oposição.
[21] DOSTOIÉVSKI apud: BEZERRA, Paulo. “Um Romance Profecia” IN: DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Demônios. São Paulo, editora 34, 2004. p. 69
[22] Há ai um claro assento messiânico e religioso presente nestes grupos populistas como em muitos outros grupos políticos “vanguardistas” tanto da esquerda e direita presentes em todo o mundo moderno.