*ou Uma Psicose Urbana
Ele ali. O escuro. Transpiração e o sangue escorrendo pelas paredes imundas. E o mundo, lá fora, cruel e decomposto, com seus carneiros e lobos. A lua cáustica no céu. Réstia de luz entrando pela janela. Suas unhas presas naquela nuca lisa e branca.
Perdera-se, era verdade. Por uma porção de fatuidade, perdera-se para sempre entre as brumas e a umidade. Aquele cheiro de pedra e terra. Solidão. Por que nada era perfeito. Era, Ele era, simplesmente, assim, uma coisa. Não queria mais pensar e se explicar. Não sabia de onde vinha, nem para que era. Fazia tanto tempo que não lembrava mais. Era simplesmente. Simplesmente o lobo.
Tudo sinistro e perverso sempre, mas misteriosamente vivo. Mas nada a ver com a paz dos cemitérios. Sempre havia os carneirinhos brancos e românticos. Cheios de cachos ou, às vezes, com uma nuca lisa e tenra. Tiravam-Lhe de sua insônia eterna e davam-lhe paz. Em troca tinham dor, prazer e a eternidade. Como Cristo na cruz.
Tinha que ser assim. Sem nenhum colchão para se levantar. Sem o sol para aquecer, mas antes, bem, toda aquela monstruosamente fria. Deliciosamente cruel era. Mas. Gostava de descansar na terra fria, entre os vermes e os escorpiões. Acariciavam-Lhe as peles. Toda aquela escuridão e frio. A ausência completa de luz e alegria. Eram as labaredas frias do inferno enternecido. O inferno da eterna procura. O tormento voluptuoso e protegido da eterna fome. Ele era a Divindade viva. O espírito das labaredas frias e azuis. Era a escuridão, tão linda, em forma viva. Uma rocha fria. Repousando viva no ventre da terra mãe. Não lhe cabiam quaisquer dores.
Mas sempre achava que suas vítimas eram mais majestosas. Por que pequenas porções ensolaradas de glória celestial. Eram lindas. A pura frivolidade de Deus entediado. Mesmo quando de seus pescoços jorravam aquele sangue vermelho e quente. Eram pulcras. Era essa sua força malignamente ingênua e solar que o alimentava. Jorravam a luz solar avermelhada dos entardeceres entorpecidos. Nunca mais os tinha visto. Os entardeceres. Lembrava-se. De modo indefinido. Em seus sonhos, misturava sangue e crepúsculo sempre. Era como uma saudade estúpida. Lembrava-se também, às vezes, das manhãs frias cheias de sol. Da vida sob o sol restava-Lhe apenas um suspiro vago. Na brisa do mar, lembrava-se do gosto do sushi e do peixe cru. Mesmo assim adorava suas noites de sexo e sangue.
Mania, a sua. Crueldade. Deixara o pobre carneirinho debatendo-se, enquanto divagava. A garganta aberta e o pânico único das presas que prevêem o fim. Em seus olhos via aquela desesperação insana, que só as lebres têm: o medo do lobo. Tinha que ser rápido agora, antes que ela se empalidecesse rápido. Tinha que estar viva. Não era um carniceiro. Queria em um destes momentos, aonde o término chegava, ver seus próprios olhos e sentir o que elas sentiam. Teria o olhar dos predadores? Sabia de sua crueldade. Era sua natureza. Quase felino, gostava de brincar com os carneirinhos assustados. Como um gato brinca com um passarinho antes de matá-lo. Sexo e sangue. Mas tudo terminava sempre igual. Um corpo inerte. E Sua sonolência morna. Era triste. Depois. Era triste haver tanta fome. Nele, e no Mundo.
Era triste haver tantos gritos de dor. Havia algo de místico. Era guiado por uma característica única e ao mesmo tempo comum a todas as suas escolhas. Eram elas que o seduziam. Gritavam pelo seu nome, renunciando à vida e ao sol. Aquele grito místico de dor, silencioso e triste. Único dos que ainda estão vivos em vida e sofrem. Pois os mortos-em-vida não lhe interessavam. Apesar da abundância, suas carnes eram ruins e pestilentas. Fedorentas. Seus sangues embrulhavam-Lhe o estômago, causando-Lhe vômitos na lage fria. Por isso era sempre precisava, todas as noites, bem escolher. Gostava da luxuria das carnes tesas. Gostava do gosto dos carneirinhos saudáveis e belos. Ria-se, com freqüência, por chamá-los assim.
E também não podia apelar para o sangue dos mortos. Cemitérios e hospitais eram muito indigestos. Eram para as crianças. Para os tolos que não sabem saborear a frivolidade da vida. Alguns como ele, viveriam de ratos e pombos.
O carneirinho loiro de hoje debatia-se em seus braços. Inconsciente de seu glorioso destino. No seu rosto, dor e prazer, ungidos pela morte. O êxtase substituía agora aquele medo louco. Certamente, a morte que lhes dava era diferente. Acumulava todo o gozo da vida em um só momento. Esse seria o maior prazer que este carneirinho teria em sua curta e miserável experiência. Isso o deixava quase satisfeito. Sentia que em sua natureza de predador fazia algo quase bom. O deleite moribundo dos que morriam em seus braços era insuportavelmente luminoso. Era de sua natureza proporcionar-lhes isso. Seria a morte que lhes dava a redenção? O grito místico de dor, quase desaparecia. Era uma hora de troca. Ambos teriam prazer e paz. A dor e a tristeza cessariam. Pelo menos para o cordeiro moribundo. Para Ele, seria uma questão de tempo. Até que a fome insuportável o arrancasse de novo da sonolência.
Aí, levantaria, de novo, entre a fumaça dos carros, à procura de uma nuca lisa e tesa. Sua potência vinha desta fome, e do cheiro de sangue e de dor. Estas horas também eram vividas e prazerosas. Cheio de força, agradava-lhe muito a caça.
Gulhermo de Mont Serrat
Nenhum comentário:
Postar um comentário