Turgueniev, Ivan. Pais e Filhos. São Paulo, Editora COSAC NAIFY 2004.
O romance de Ivan Turgueniev, de 1862, coloca em cena duas gerações da Intelligentsia russa. Aquela de 1840 e aquela de 1860 – que no fim do século XIX se viram em campos opostos. O enredo é simples – a visita da nova geração (Bazárov e Arcádio) à velha geração (pais de ambos), todavia as entrelinhas do romance podem ser consideradas complexas. A oposição entre essas duas gerações foi questão candente no meio intelectual russo da época. A geração de 1840, em linhas gerais, era mais moderada, e defendia reformas para “modernizar” a Rússia e seu atraso – na visão da geração de 60 eram conservadores e conformistas. Já a geração de 60 se radicalizou até chegar a posições niilistas no final do século, defendendo posições revolucionárias e radicais.
Apesar da principal personagem do romance, Bazaróv, resvalar o niilismo, ela não é, porém, totalmente destituída de princípios: entretanto estes princípios são ancorados numa crítica radical à sociedade russa da época; e sua negação não é desprovida de ambigüidades. Mesmo assim. seus princípios parecem acompanhar um certo comportamento extremado que se manifestou em parte dos russos educados de sua geração.
Turgueniev parece ter captado, como artista, o ambiente tenso que existia entre os membros da Intelligentsia russa, do final do século, agrupamento heterogêneo que não podia entrar em um acordo sobre as soluções para o “anacronismo” russo.
O que nos perguntamos ao ler “Pais e Filhos” é quem seriam estes? Seriam os pais os dezembristas? Ou a geração reformista da Intelligentisia. Quem eram então os filhos? Seria Bazárov um niilista ou um populista?
Ao que parece, a caracterização do “homem supérfluo” da intelligentisia poderia caracterizar homens como Turgueniev, pode também muito bem servir para Bazárov, ao menos se seguimos a linha traçada por Isaiah Berlin em “Père et Fils. Tourgueniev et le Dilemme Liberal”[1]. Apesar, de “Pais e Filhos” ser considerado uma crítica aos chamados niilistas/populistas da época, há uma clara - e assumida pelo próprio -, do autor com identificação com Bazárov.
André Mourois, afirma do mesmo modo que Turgueniev queria com “Pais e Filhos” acentuar as diferenças entre a geração do materialismo científico (aquela de Bazarov) e a do liberalismo de inspiração lamartiniana.[2] Há, porém, um aspecto do livro que o aproxima de “Os Demônios”[3] de Dostoévski (romance profético, baseado no caso de S. G. Nietcháiev), uma crítica, mesmo que bastante nuançada, aos homens que falam e criticam terrivelmente todas as coisas mas que não sabem nada propor. Na verdade Bazárov é “absolvido” por Turgueniev, por suas ambigüidades, suas fragilidades e paradoxos. O que há de dramático em sua história, é o que dá à personagem um caráter mais humano.
O tipo de personalidade niilista que pareceu abrigar a Rússia do final do século e que ambos os escritores parecem ter representado com grande mérito é bem resumida pelo trecho da obra com o nome “Catecismo Revolucionário” de Serguei Nietcháiev: “O revolucionário é um homem que faz o sacrifício da sua vida. Não tem nem negócios ou interesses pessoais, nem sentimentos ou afeições, nem propriedade, nem mesmo um nome. Nele tudo está absorvido por um só interesse exclusivo, um só pensamento, uma só paixão: A Revolução.”[4] Este trecho parece ilustrar com alguma propriedade a personalidade de Bazárov, mesmo que não contemple suas ambigüidades. Talvez o modelo de comportamento buscado (mas não necessariamente realizado) pela personagem seja contemplado mais com outro trecho:
Um revolucionário despreza toda a teoria; renuncia à ciência atual e abandona-a para as gerações vindouras. Não conhece senão uma só ciência: a da destruição. É para este fim, e só para este fim, que estuda a mecânica, a física a química e, se a ocasião se apresentar, a medicina. É no mesmo propósito que se dedica, dia e noite, ao estudo das ciências da vida: os homens, os seus caracteres, as suas relações entre eles, assim como as condições que regem em todos os domínios a ordem social atual. O objetivo é sempre o mesmo: destruir o mais rapidamente e o mais seguramente possível esta ignomínia que é a ordem universal.[5]
Isso, explica por que Bazarov, não tinha fé suficiente para acreditar na medicina e por que se deixa destruir sob o efeito do amor pela senhora Odintsov. Era mais louvável para seu tipo (modelo) espírito destruir-se, do que se permitir viver, e amar. O que Bazárov por fim realiza é o tal sacrifício, porém como nos mostra Turgueniev, este é completamente em vão e inútil. Seu sacrifício é vazio de sentido. Isso, porém, lhe dá algum tipo de verossimilhança, e complexibilidade.
Nesse sentido – do sacrifício - ele é um personagem um tanto romântico[6], pois em nome de princípios resvala um destino de herói romântico, nega de acordo com suas idéias niilistas qualquer possibilidade de vida e realização. Entretanto, para a personagem, a negação do amor é sua destruição. Ele não é romântico – no sentido vivenciar, mas as suas situações e escolhas parecem aquelas do revolucionário romântico. Todavia, apesar deste aspecto curioso, trata-se de um romance, que claramente utiliza-se do método realista de representação.
Em certo sentido Bazárav parece inverossímil: um herói que se esforça em não possuir sentimentos, em exercer uma rígida e cruel crítica, irônica que não se preocupa com os sentimentos daqueles com quem se relaciona. Porém, como vimos, se lermos o absurdo que é o Manifesto de Nietchàiev, percebemos como estas características eram as desejadas por algumas pessoas de sua época, talvez as mesmas que cometiam atentados terroristas. Bazárov, de Turgueniev, assim considerado é bem crível, pois o autor expõe suas contradições, suas ambigüidades, que manifestam, sobretudo no relacionamento com sua paixão e com seus pais. São suas ambigüidades que o destroem, mas que o colocam próximo do herói romântico e da descrição do “homem supérfluo”.
É interessante notar, que apesar de Turgueniev ser considerado pelo senso comum um “flateur” parisiense, esteta despreocupado da realidade russa – talvez por considerar que arte não deveria se submeter a princípios ideológicos - se percebe logo, com a leitura de “Pais e Filhos”, que seu romance além de ser em alguma medida ideológico, é também preocupado em representar a realidade russa.
[1] Père et Fils. Tourgueniev et le Dilemme Liberal IN : Les penseurs russes. Paris, Albin Michel, 1984. « Peut-être cela suffi-il à expliquer la genèse de celui qu´on allait désigner, dans le primier quart du siècle, comme « l´homme de trop », l´héros de la nouvelle littérature protestataire. Il fait partie d´une minuscule minorité d´hommes instruits et sensibles. Il est incapable de se trouver une place dans son pays natal. Replié sur lui-même, il ne peut s´évader que dans les fantasmes et les ilusions, dans le cynisme, ou le désespoir, ou encore, les plus souvent, il finit par se détruire de ses mains ou par capituler. Une honte cuisante ou une indignation furieuse, suscité par la misère et la dégradation d´un sistème où des êtres humains – les serfs – étaient considérés comme des « biens baptisés », et surcroît un sentiment d´inpuissance devant le régne de l´injustice, de la bêtise et de la corruption, entraînaient les imaginations et les sentiments refoulés [...] » p. 327
[2] MOUROIS, André. Turgueniev e a Filosofia Russa. Rio de Janeiro, Editora Alba, 1942.
[3] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Demônios. São Paulo, editora 34, 2004.
[4] Nietcháiev S. G. Catecismo Revolucionário IN: http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/04/253458.shtml
[5] Op. Cit.
[6] Op. Cit: “É necessário que o revolucionário, duro para com ele próprio, o seja também para os outros. Todas as simpatias, todos os sentimentos que poderiam emocioná-lo e que nascem da família, da amizade, do amor ou do reconhecimento, devem ser sufocados nele pela única e fria paixão da obra revolucionária. Para ele não existe mais que um prazer, que uma consolação, que uma recompensa, que uma satisfação: o sucesso da Revolução. Não deve haver, dia e noite, mais que um pensamento e um objetivo: a destruição inexorável. E prosseguindo com sangue frio e sem descanso a realização deste plano, deve estar pronto a morrer, mas pronto a matar com as suas próprias mãos todos aqueles que se oponham à sua realização.”
O romance de Ivan Turgueniev, de 1862, coloca em cena duas gerações da Intelligentsia russa. Aquela de 1840 e aquela de 1860 – que no fim do século XIX se viram em campos opostos. O enredo é simples – a visita da nova geração (Bazárov e Arcádio) à velha geração (pais de ambos), todavia as entrelinhas do romance podem ser consideradas complexas. A oposição entre essas duas gerações foi questão candente no meio intelectual russo da época. A geração de 1840, em linhas gerais, era mais moderada, e defendia reformas para “modernizar” a Rússia e seu atraso – na visão da geração de 60 eram conservadores e conformistas. Já a geração de 60 se radicalizou até chegar a posições niilistas no final do século, defendendo posições revolucionárias e radicais.
Apesar da principal personagem do romance, Bazaróv, resvalar o niilismo, ela não é, porém, totalmente destituída de princípios: entretanto estes princípios são ancorados numa crítica radical à sociedade russa da época; e sua negação não é desprovida de ambigüidades. Mesmo assim. seus princípios parecem acompanhar um certo comportamento extremado que se manifestou em parte dos russos educados de sua geração.
Turgueniev parece ter captado, como artista, o ambiente tenso que existia entre os membros da Intelligentsia russa, do final do século, agrupamento heterogêneo que não podia entrar em um acordo sobre as soluções para o “anacronismo” russo.
O que nos perguntamos ao ler “Pais e Filhos” é quem seriam estes? Seriam os pais os dezembristas? Ou a geração reformista da Intelligentisia. Quem eram então os filhos? Seria Bazárov um niilista ou um populista?
Ao que parece, a caracterização do “homem supérfluo” da intelligentisia poderia caracterizar homens como Turgueniev, pode também muito bem servir para Bazárov, ao menos se seguimos a linha traçada por Isaiah Berlin em “Père et Fils. Tourgueniev et le Dilemme Liberal”[1]. Apesar, de “Pais e Filhos” ser considerado uma crítica aos chamados niilistas/populistas da época, há uma clara - e assumida pelo próprio -, do autor com identificação com Bazárov.
André Mourois, afirma do mesmo modo que Turgueniev queria com “Pais e Filhos” acentuar as diferenças entre a geração do materialismo científico (aquela de Bazarov) e a do liberalismo de inspiração lamartiniana.[2] Há, porém, um aspecto do livro que o aproxima de “Os Demônios”[3] de Dostoévski (romance profético, baseado no caso de S. G. Nietcháiev), uma crítica, mesmo que bastante nuançada, aos homens que falam e criticam terrivelmente todas as coisas mas que não sabem nada propor. Na verdade Bazárov é “absolvido” por Turgueniev, por suas ambigüidades, suas fragilidades e paradoxos. O que há de dramático em sua história, é o que dá à personagem um caráter mais humano.
O tipo de personalidade niilista que pareceu abrigar a Rússia do final do século e que ambos os escritores parecem ter representado com grande mérito é bem resumida pelo trecho da obra com o nome “Catecismo Revolucionário” de Serguei Nietcháiev: “O revolucionário é um homem que faz o sacrifício da sua vida. Não tem nem negócios ou interesses pessoais, nem sentimentos ou afeições, nem propriedade, nem mesmo um nome. Nele tudo está absorvido por um só interesse exclusivo, um só pensamento, uma só paixão: A Revolução.”[4] Este trecho parece ilustrar com alguma propriedade a personalidade de Bazárov, mesmo que não contemple suas ambigüidades. Talvez o modelo de comportamento buscado (mas não necessariamente realizado) pela personagem seja contemplado mais com outro trecho:
Um revolucionário despreza toda a teoria; renuncia à ciência atual e abandona-a para as gerações vindouras. Não conhece senão uma só ciência: a da destruição. É para este fim, e só para este fim, que estuda a mecânica, a física a química e, se a ocasião se apresentar, a medicina. É no mesmo propósito que se dedica, dia e noite, ao estudo das ciências da vida: os homens, os seus caracteres, as suas relações entre eles, assim como as condições que regem em todos os domínios a ordem social atual. O objetivo é sempre o mesmo: destruir o mais rapidamente e o mais seguramente possível esta ignomínia que é a ordem universal.[5]
Isso, explica por que Bazarov, não tinha fé suficiente para acreditar na medicina e por que se deixa destruir sob o efeito do amor pela senhora Odintsov. Era mais louvável para seu tipo (modelo) espírito destruir-se, do que se permitir viver, e amar. O que Bazárov por fim realiza é o tal sacrifício, porém como nos mostra Turgueniev, este é completamente em vão e inútil. Seu sacrifício é vazio de sentido. Isso, porém, lhe dá algum tipo de verossimilhança, e complexibilidade.
Nesse sentido – do sacrifício - ele é um personagem um tanto romântico[6], pois em nome de princípios resvala um destino de herói romântico, nega de acordo com suas idéias niilistas qualquer possibilidade de vida e realização. Entretanto, para a personagem, a negação do amor é sua destruição. Ele não é romântico – no sentido vivenciar, mas as suas situações e escolhas parecem aquelas do revolucionário romântico. Todavia, apesar deste aspecto curioso, trata-se de um romance, que claramente utiliza-se do método realista de representação.
Em certo sentido Bazárav parece inverossímil: um herói que se esforça em não possuir sentimentos, em exercer uma rígida e cruel crítica, irônica que não se preocupa com os sentimentos daqueles com quem se relaciona. Porém, como vimos, se lermos o absurdo que é o Manifesto de Nietchàiev, percebemos como estas características eram as desejadas por algumas pessoas de sua época, talvez as mesmas que cometiam atentados terroristas. Bazárov, de Turgueniev, assim considerado é bem crível, pois o autor expõe suas contradições, suas ambigüidades, que manifestam, sobretudo no relacionamento com sua paixão e com seus pais. São suas ambigüidades que o destroem, mas que o colocam próximo do herói romântico e da descrição do “homem supérfluo”.
É interessante notar, que apesar de Turgueniev ser considerado pelo senso comum um “flateur” parisiense, esteta despreocupado da realidade russa – talvez por considerar que arte não deveria se submeter a princípios ideológicos - se percebe logo, com a leitura de “Pais e Filhos”, que seu romance além de ser em alguma medida ideológico, é também preocupado em representar a realidade russa.
[1] Père et Fils. Tourgueniev et le Dilemme Liberal IN : Les penseurs russes. Paris, Albin Michel, 1984. « Peut-être cela suffi-il à expliquer la genèse de celui qu´on allait désigner, dans le primier quart du siècle, comme « l´homme de trop », l´héros de la nouvelle littérature protestataire. Il fait partie d´une minuscule minorité d´hommes instruits et sensibles. Il est incapable de se trouver une place dans son pays natal. Replié sur lui-même, il ne peut s´évader que dans les fantasmes et les ilusions, dans le cynisme, ou le désespoir, ou encore, les plus souvent, il finit par se détruire de ses mains ou par capituler. Une honte cuisante ou une indignation furieuse, suscité par la misère et la dégradation d´un sistème où des êtres humains – les serfs – étaient considérés comme des « biens baptisés », et surcroît un sentiment d´inpuissance devant le régne de l´injustice, de la bêtise et de la corruption, entraînaient les imaginations et les sentiments refoulés [...] » p. 327
[2] MOUROIS, André. Turgueniev e a Filosofia Russa. Rio de Janeiro, Editora Alba, 1942.
[3] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Demônios. São Paulo, editora 34, 2004.
[4] Nietcháiev S. G. Catecismo Revolucionário IN: http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/04/253458.shtml
[5] Op. Cit.
[6] Op. Cit: “É necessário que o revolucionário, duro para com ele próprio, o seja também para os outros. Todas as simpatias, todos os sentimentos que poderiam emocioná-lo e que nascem da família, da amizade, do amor ou do reconhecimento, devem ser sufocados nele pela única e fria paixão da obra revolucionária. Para ele não existe mais que um prazer, que uma consolação, que uma recompensa, que uma satisfação: o sucesso da Revolução. Não deve haver, dia e noite, mais que um pensamento e um objetivo: a destruição inexorável. E prosseguindo com sangue frio e sem descanso a realização deste plano, deve estar pronto a morrer, mas pronto a matar com as suas próprias mãos todos aqueles que se oponham à sua realização.”
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