terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Os Demônios de Dostoiévski







“Cada qual ainda encontrou nos antigos,
aquilo que precisava ou desejava.
Sobretudo a si mesmo.”
Friedrich Schlegel



Os Demônios (Бесы) (1872) romance considerado profético – polêmico em sua época, foi atacado tanto pela esquerda quanto pela direita. Com sua trama complexa, extensa e polifônica, o livro ainda hoje é mal compreendido. Alguns o interpretaram como obra absurda, fruto de uma mente insana. Outros o analisam como um romance anti-revolucionário e reacionário.
Assim como Turgueniev havia feito em Pais e Filhos[1] o livro trata da relação entre as duas gerações de opositores ao regime czarista. E assim como Turgueniev havia feito de modo irônico e devastador em Rudin[2] (neste romance Turgueniev parece ter sido impiedoso, em sua fina ironia, com o revolucionário Bakunin) o romance trata do homem supérfluo. Porém, as motivações do livro parecem ser várias. A primeira motivação da obra parece ter sido um assassinato político cometido em 1869 pelo grupo de Netcháiev, e que causou forte comoção pública entre os russos. De acordo com E. M. Meletínski, em Os Arquétipos Literários, a obra é subestimada por ser vista como um panfleto reacionário na forma lítero-satírica:

Em Os Demônios Dostoiévski chega a atingir uma escala cósmico-escatológica na representação do caos, sem dúvida, historicamente concretizado. O título Os Demônios não é nem de longe decorativo, nem é simplesmente um símbolo de representação negativa do subterrâneo revolucionário.[3]

Ele ainda acrescenta:
Sobre um fundo de caos sobressaem também as figuras arquetípicas do herói e do anti-herói, que são levados até o último grau de evolução desses arquétipos na literatura universal. O cosmos quase sempre em Dostoiévski apresenta-se no âmbito nacional, partindo, essencialmente, da contraposição bastante arcaica do “próprio” e do “alheio”, ou seja, no presente caso, do cosmos russo “próprio” enquanto ainda vivo e que se desenvolve em sua luta contra o mal. O cosmos russo em Dostoiévski opõe-se ao Ocidente de além-fronteiras, onde já morreu tudo o que se afundou na busca egoísta e imoral do conforto individual.[4]

Entretanto pode-se afirmar que grande parte do livro, o autor ocupa-se de demonstrar como o espírito da época flertava perigosamente com o caos e a destruição. O assassinado do estudante I. I Ivanov, serviu, pois para laitf-motif para isso. O escritor parece neste livro demonstrar incrível sensibilidade para perceber as tendências históricas e as várias tendências políticas (ocidentalistas e eslavófilos) em luta sob um regime autocrático[5]. A crítica de esquerda sua época foi, no entanto, impiedosa com o livro (ex: N. Mikháilovski – cujo livro “enfoca um “punhado insignificante de loucos e canalhas”)[6]. As personagens parecem ser paradigmáticos. Piotr Verkhoviénski parece ser Netcháiev. Stepan Trofimovitch parece ser uma sátira de Turgueniev[7] ou qualquer outro ocidentalista. Kírilove parece representar aquele representante da Inteligentsia materialista que influenciado pelo idealismo alemão colocava o homem como centro do universo. Todavia o livro adquire força e expressão, quando se torna uma espécie de romance histriônico e multifacetado com o aparecimento da figura misteriosa de Stravóguin[8]. Chatov parece representar o eslavofilismo (assim como o estudante assassinado), igualmente como a esposa de Stravóguin, Maria é uma representação da fé ortodoxa. Somente ela, mesmo em sua perturbação vê além da máscara que representa a esfinge-impostora-Stravóguin-inteligensia (crítica a inteligentsia de ambas as gerações e de todas as tendências?). Essa figura esfinge, espécie de máscara e representação: misto das duas gerações, dandy anacrônico, niilista atormentado, amoral e moral, cheio de paradoxos dá complexidade ao que deveria ser apenas um “panfleto”. Ele representa, de acordo com Joseph Frank[9], uma questão que para Dostoiévski era terrível: a inteligentsia não sabia mais o que era certo ou o que era errado. Seu enlouquecimento no final cataclísmico – parece antever algo da história – o seu fim, a forma como Dostoiévski o condena[10], parece ser a forma de julgar e condenar a inteligensia e a elite governante russa.
De fato, o autor do livro parecia convencido de que a crise a qual colocaria a humanidade em risco havia chegado – há um forte conteúdo escatológico no livro. Ele escreve para o futuro Alexandre III sobre “Os Demônios:

C´est presque une étude historique, par laquelle j´ai voullu expliquer la possibilité dans notre étrange societé de phénomènes aussi monstrueux que lê mouvement Nétchaïv. Mon opinion est que ce phènomène n´est pas fortuit ni isolé.[11]

Para Pierre Lamblé, o objetivo do romance é demonstrar o curso dos fatos, mas também fazer uma “ameaça” e uma previsão para a Rússia. Para este Lamblé a genialidade do autor foi perceber que a força caótica do movimento revolucionário vinha justamente da violência, tirania, ineficiência e “miopia” da administração, da elite (autoridades, igreja) e do governo russos. Neste contexto, homens e forças políticas que seriam ineficazes e ridículos em outras condições adquirem força e potência.[12] Sua resposta às críticas de esquerda que recebeu o conto Bobók parece corroborar com essa interpretação.
Resposta à crítica ao livro Demônios: Bobók, de Dostoiévski
O conto Bobók é talvez uma porção da genialidade de Dostoiévski, que ao dialogar com a tradição das sátiras menipéias e com outras obras[13] da literatura russa, desenvolveu um texto intricado, rico e muito interessante. Nele estão presentes elementos como a interiorização das ações, uma trama diminuta e o fantástico construído por elementos do sonho e da perturbação mental do protagonista. Além disso, o texto é todo permeado pelo grotesco e pelo fantástico (os mortos falam e são tomados por impulsos “vivos” ou sensuais-carnais, absurdos grotescos como a busca de um médico depois de morto), pela carnavalização, de acordo com aquela concepção de Bakhtin: as inversões do status quo, o cômico no mundo dos mortos etc, o intricado conflito de vozes que entre outros elementos tornam a obra mais complexa do que poderia parecer sob uma leitura rápida e superficial.
Na verdade, este texto insere-se em um contexto interessantíssimo e apresentou-se como uma resposta[14] irônica e sarcástica às criticas recebidas por Dostoiéviski por seu algo profético romance “Os Demônios”, que é uma incrível crítica feroz ao niilismo político então em voga na Rússia, sobretudo entre os populistas. O conto Bobók foi, portanto publicado anonimamente em 1873 no semanário Gradjanin, onde Dostoiévski era redator chefe. Entretanto, talvez seu aspecto mais interessante, é que nesse conto é possível identificar um diálogo polifônico com as vozes dos críticos d´”Os Demônios”- por exemplo: quando o protagonista de “Bobók” é tachado de louco, uma chacota com fato que o próprio Dostoiévski ter sido tachado assim pela crítica que ao ler o referido romance. Para responder a estas críticas, muitas vezes de caráter ofensivo, Dostoiévski, cria um estranho narrador que não é ninguém, mas muitas vozes (a chamada polifonia identificada por Bakthin), a do próprio Dostoievski, mas também a dos seus críticos. O dialogismo de Dostoiévski, presente neste texto, deixa espaço para que outros textos, autores e obras possam se introduzir e interagir em seu texto.[15] O texto assim nos remete obrigatoriamente para a leitura de “Os Demônios”, mas também para a leitura de seu tempo, e das várias vozes críticas que lhe faziam oposição.
Além disso, o conto é uma violenta censura ao modo de vida da aristocracia russa de sua época, que segundo Dostoiévski era decadente, mal-cheirosa, imoral e “morta-viva”[16]. Há uma aberta crítica aos valores burgueses que penetram nesta dita “aristocracia” levando-a a um comportamento imoral, e vulgarmente ansiosa por prazer.
O fantástico introduzido no texto pelos elementos conflitantes de irrealidade-realidade também tornam interessante o texto Bobók, já que o autor utiliza-se do devaneio, do sonho, e da perturbação mental do protagonista para criar essa dúvida e tensão na natureza fantástica e ou doentia dos fatos narrados e diálogos travados. Porém, como nos lembra Paulo Bezerra[17], para Dostoiévski, o fantástico é apenas uma das formas de manifestação do real. Assim, os “fatos” narrados em “Os Demônios”, suas conseqüências, do mesmo modo que as críticas ao livro e ao seu autor são tão fantásticos e “extra-ordinárias” quanto os acontecimentos fantasmagóricos de Bobók. Nesta compreensão há, portanto, uma convicção que a realidade russa estava profundamente marcada por um certo sentido de absurdo e mentira – o que acaba por tornar tudo tão “extra-ordinário”, morto e putrefato.


[1] TURGUENIEV, Ivan S. Pais e Filhos. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
[2] TURGUENIEV, Ivan S. Rudin. São Paulo: Global Editora, 1983
[3] MELETÍNSKI, E. M. Os Arquétipos Literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 20003
[4] Idem, p. 233-234.
[5] BEZERRA, Paulo. A Perenidade de Dostoiévski. IN: CULT: Biografia e Crítica. – Fiódor Dostoiévski – O Profeta da Literatura Russa.
[6] Idem.
[7] Vários personagens parecem ser paródias de personalidades de sua época.
[8] Esse personagem chamou a atenção de Gidé por desafiar as convenções sociais.
[9] FRANK, Joseph. Dostoievski – 1865 a 1871 – os anos milagrosos. São Paulo: Edusp, 2003
[10] O personagem não encontra a redenção.
[11] DOSTOIÉVSKI, Plêiade, p. XXXIV apud: LAMBLÉ, Pierre. La Métaphysique de l´Histoire de Dostoïevki – La philosophie de Dostoïevski, tome 2, Essai de Littérature et Philosophie Compare. Paris: L´Harmattan, 2001.
[12] Idem, p. 72-77.
[13] De acordo com Paulo Bezerra este conto remete ao Diálogo dos Mortos, de Luciano de Samósata, e a algumas narrativas fantásticas de Púshkin – (A dama de Espadas e O Fazedor de Caixões), ao O Morto Vivo de Boboríkine e Diário de um Louco, de Gógol.
[14] É interessante lembrar que Dostoiévski utilizava-se da ficção para opinar sobre assuntos em pauta nos meios jornalísticos e intelectuais russos de sua época. Outro texto deste tipo, bastante interessante é A Dócil – onde o autor aborda o tema do suicídio.
[15] BEZERRA, p. 120
[16] “Como para Dostoiévski,(...) esses mortos aristocratas perderam o sentido da dignidade humana e a razão de viver, e por isso, não passam de cadáveres em decomposição (...) e não foram capazes de propor senão o mesmo hedonismo vazio, a mesma trivialidade que lhes marcaram a existência enquanto vivos.” BEZERRA, p. 162.
[17] Idem, 161.

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