O Diário de um louco é um conto de Nokolai V. Gogol (Николай Васильевич Гоголь) (1809-1852) onde os elementos cômicos e dramático, fundem-se de forma exemplar, beirando o terror e explicitando o absurdo cruel e o caráter fantástico da realidade russa. Para demonstrá-lo, o conto penetra de forma exemplar e evidente nas profundezas da loucura e de seus delírios. A loucura é aqui vista como maneira de mudar a ordem das coisas, mesmo que de maneira irreal e delirante. A narrador, que também é o protagonista da história, em primeira pessoa aumenta a tensão e a sensação de impossibilidade real de mudança das coisas.
O tema da loucura esteve presente na literatura do Século XIX, pois foi neste século que o desenvolvimento da psicanálise, da psiquiatria e psicologia acontecerá ou se aprofundará[1]. Posteriormente a Gogol outros escritores russos também abeirar-se-ão da temática da loucura. Entre eles não podem deixar de serem citados Anton Tchekov (1860-1904), com seu conto “Olhos Mortos de Sono”[2] , Leonid Andreiev (1871-1919) com seu conto Mentira (Memórias de um Louco)[3] e finalmente do simbolista Valiéri Briússov com seu misterioso “Dentro de um espelho”[4]. Tchekov pareceu usar do tema para evidênciar de forma realista o absurdo e a loucura da situação social da Rússia de sua época. Além disso, parece entrever em sua narrativa que a “loucura” espreita-nos assustadoramente nos “cantos obscuros” da “normalidade”. Já Andreiev pareceu pretender em seu conto incluir na “loucura” os dogmáticos e os portadores de idéias absolutas e fixas. Seu tom também é tenso e assustador. Assim como Gógol emprega um narrador em primeira pessoa. Já o simbolista Briússov parece utiliza-se do tema da loucura, acercando-se, porém o fantástico, para problematizar os temas da identidade e da individualidade, e até mesmo da que é ou não a realidade. Como Gógol e Andreiev, utiliza-se da primeira pessoa, o que parece aumentar a tensão, a sensação de fechamento e absurdo.
Já Gogol aborda em seu conto também a tragédia social dos costumes e a acidez viva a qual é submetido o miserável funcionário público em São Petersburgo (personagem e narrador). Esse funcionário busca uma compensação ilusória ao seu miserável e medíocre cotidiano, e mergulha de forma irreversível em delírios de grandeza, luxo e poder, elementos que servem como dados paradoxais e contrapontos para dar clareza ao absurdo da miséria e pequeneza deste pequeno personagem.
De acordo com E. M Meletínski no conto,
Aparece diante de nós a fantasia da loucura, sendo que esta fantasia já não é arquetípica, mas simplesmente uma modificação sonhadora compensatória da vida real. Se no conto popular o herói, ‘ que não promete muito’, freqüentemente humilde, é recompensado por uma transição real para um status social mais elevado(e na base disso está o fantástico compensatório), já em O Diário de um louco a compensação é falsa, subjetiva, doentia.[5]
Ou seja, nesse conto, o fantástico e o absurdo[6] estão tanto na impossibilidade e aridez da realidade quanto na saída/fuga encontrada pelo personagem: a loucura. A mudança de situação só é possível por meio do absoluto delírio. Parece que mesmo que a realidade e os costumes[7] pareçam tão delirantes quanto os delírios do louco. É justamente por isso que estes delírios são tão ameaçadores para os “normais” do conto, pois justamente colocam em cheque e em discussão o cotidiano, os costumes o mundo e a pretensa obviedade de dada realidade.
O filósofo, Remo Boldei em As Lógicas do Delírio lembra-nos que a loucura é uma tentativa desesperada de restaurar a integridade mental, uma espécie de febre que visa restabelecer a possibilidade de vida:
O delírio representa uma alternativa à obviedade de situações subjetivamente insustentáveis, algo menos pior do que o vazio irrepresentável que se figura mesmo na modalidade paradoxal da ausência, uma rebelião de quem não espera mais nada de bom na vida, um remédio para a insensatez e a destruição iminentes. Constitui uma defesa contra a angústia do terrificante que se esconde, com freqüência, em detalhes banais: ‘às vezes, na loucura manifesta-se o aspecto do real que o homem não pode ver para continuar são’”[8].
Assim, neste aspecto a loucura do personagem de Gógol é uma tentativa de restabelecer alguma vida e viabilidade existencial em um cotidiano social e culturalmente absolutamente miserável. Sua loucura, além de colocar em cheque esta realidade social, também coloca em cheque o conceito de normalidade e padrão social. Sua loucura é a tentativa desesperada para continuar a viver, sem ela, as opções seriam a morte, real ou existencial.
Posso ariscar – temerariamente - um paralelo com o célebre conto (talvez novela) de Machado de Assis, O Alienista[9], que tratou do mesmo modo do tema da loucura. Parece que ali Machado abordou a questão por outra lógica, aquela do questionamento dos limites entre a loucura e a normalidade, mas que, contudo possui estreita semelhança no resultado final de crítica a realidade (política e social) - como aquela feita por Gógol em Diário de um Louco. Inversamente ao conto de Gógol, que dá voz - no diário – ao louco, Machado coloca como protagonista da história o médico, responsável por ditar quem é louco e quem não é. Essa pergunta (quem é louco e quem não é?) é justamente aquela que podemos fazer ao ler cada uma das obras já citadas. A personagem do conto de Machado, Simão Bacamarte, decide em determinado momento que a loucura não é uma “ilha” mas um “continente”. Por fim, ironicamente conclui que loucos são os “sensatos” e aqueles de “moral ilibada”. No caso de Machado destacam-se assim o questionamento do padrão moral de comportamento e os limites da normalidade, além de suas implicações políticas e sociais. Já no caso de Diário de um Louco a relação normalidade-poder é questionada quando o autor sugere os meandros da burocracia czarista e sua hierarquia rígida e normatizadora[10]; para subvertê-la ou talvez apenas nela acender o personagem abraça, influenciado talvez por notícias recentes publicadas em jornais[11], o delírio de ser rei da Espanha[12].
Afinal, gotejando a reflexão dos dois contos, um russo e um brasileiro, ambos do século XIX, época fértil na fabricação dos loucos: quem afinal é o louco? Aqueles que aceitas e restringem-se à obviedade da vida, ou aqueles que desesperadamente subvertem as obviedades para continuar a viver? A literatura parece dar muitas e complexas resposta para essa pergunda.
[1] No século XX, Foucault estudará e evidenciará como a psiquiatria e a formatação do “alienado” no século XIX foram utilizados como instrumento de controle e repressão. No caso da história russa, pode-se igualmente lembrar que a psiquiatria também foi utilizada pelo regime soviético como forma de repressão e punição de dissidentes.
[2] TCHEKHOV, Anton . A Dama do cachorrinho e outros contos. São Paulo: 34, 2005.
[3] ANDREIEV, Leonid. Le Mensonge. Paris: Phébus, 1994.
[4] BRIÚSSOV, Valiéri. http://az.lib.ru/ – Bibliotieka Maksima Mochkova, 2005.
[5] MELETÍNSKI, E. M.. Os Arquétipos Literários. São Paulo: Ateliê Editorial: 2002
[6] O fantástico foi amplamente abordado por Gogol em novelas como O Nariz e O Capote. De acordo com Arlete Cavaliere, em seu artigo “Um espelho deformado” estes contos, assim como outros “trazem pequenos funcionários, heróis, ou melhor, anti-heróis, caricaturas pertencentes à massa urbana, um tanto ‘despisicologizados’ e que se assemelham a fantasmas perdidos sem destino numa cidade que nos parece estranha e absurda.” Um espelho deformado IN: Panorama da Literatura Russa. Cadernos Entre Livros. São Paulo: Duetta Editora:2007.
[7] Episódios que demonstram os hábitos das “moças” e seus cães de estimação, assim como o afrancesamento da elite, seus hábitos e costumes tão “alienados” e distantes da realidade dos russos “pequenos”.
[8] BOEDI, Remo. As lógicas do delírio. Razão, Aeto, Loucura. Bauru: Edusc: 2003. p. 121-122
[9] http://bibvirt.futuro.usp.br/content/view/full/211
[10] Como nos diz Remo Bodei: “[..] de modo geral, a verdade nem sempre é verossímil, porque – contrariando uma tradição filosófica ilustre – a evidência e a coerências excessivas têm, no delírio, a função mas de esconder do que de revelar, agindo mediante a formação de cortinas de fumaça ao redor da verdade que o indivíduo não consegue suportar, mas da qual deixa entrever aspectos marginais. (idem, p. 129).
[11] Podemos aqui lembrar do Conto de Guy de Maupassant chamado “Horla” (1886) cujo personagem enlouquece por causa de notícias um jornal de um jornal, que tratavam de acontecimentos fantásticos acontecidos na Província de São Paulo. Este mesmo autor escreveria vários contos sobre loucura, entre eles “Um Louco”, também escrito em forma de diário.
[12] Dodei também afirma: “[...] por meio de uma adequatio forçada, ou seja, capaz de adaptar a realidade a sus exigências, o sujeito delirante constrói para si um mundo novo, que continua a fortalecer mediante o delírio.” E “que o mundo novo do delírio apresenta-se, com freqüência, como uma descoberta, porque, para o individuo, ele está iluminado por evidencias nunca antes observadas e fixado com vínculos de absoluta coerência.” “que o delírio torna-se aceitável devido a um núcleo de ‘verdade histórica’ oculta, de forma que ele não representa um vaguear sem destino, mas um ir além da leira, da verdade.” (Idem, p. 128)
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