quarta-feira, 26 de março de 2008

Guia prateado para explorar Buenos Aires I


















A Argentina é atualmente, apesar de sua aparente decadência a única nação da América capaz de transformar-se, plasmando-se em um mundo sem fronteiras e cosmopolita. Dois motivos são dos mais importantes: a miséria intelectual e existencial ainda não dominou por completo seu povo, que orgulhoso, resiste. Há no país uma mística republicana, historicamente constituída, mas capaz de integrar e absorver qualquer homem ou mulher sem exceção – ela se estende por entre a minoria européia, pela maioria indo-ibérica e por entre os povos aborígines remanescentes.
Buenos Aires é um cosmos em si mesma – ainda mais se lembrarmos que em vários momentos históricos esteve separada do resto do país, hoje ainda dotada de grande autonomia legislativa e administrativa. É com certeza a cidade mais linda da América. A atual Ciudad Autônoma de Buenos Aires, assim como a província bonaerense foram integradas a força em uma guerra que no século XIX opôs unitários (Rosas) e federalistas (Sarmiento). Em seu livro, Facundo, civilização e bárbarie – Sarmiento constituiu claramente a oposição entre campo/interior e cidade – e a oposição de dois projetos de desenvolvimento. Venceram as Antigas Províncias do Rio da Prata, plasmando no canto meridional da América do Sul, um núcleo consolidado e permanente do projeto iluminista.
Hoje, porém, apesar e talvez por isso – pelas crises e revoluções que sacudiram o país – a Argentina possui instituições sólidas, atuantes, presente na vida de seus cidadãos, porém sem grande ingerências em suas vidas privadas. Além disso os argentinos possuem duas virtudes interessantes, aparentemente não se importam com as aparências das coisas, e estão abertos para o Outro, para o de fora e para o futuro. Seu maior defeito, pelo menos do portenho, talvez seja sua melhor qualidade – o mal humor – que os colocam nas ruas nos momentos de necessidade e que cotidianamente se manifesta nas relações de consumo e trabalho. Sua teimosia, as vezes parece beirar a estupidez, faz do portenho um orgulhoso quando se trata de fazer negócios.
Para conhecer bem Buenos Aires é preciso no mínimo 30 dias – ainda mais se o fizer de “coletivos” ou “subtê” (metrô). Seria muito difícil conhecer bem a cidade de carro, tendo em vista os engarrafamentos constantes nos meses a partir de março. Os Táxis são baratos, e eficientes, e pode-se conseguir muita informação com eles, se tentar falar o mínimo de espanhol que puder. É preciso ficar atento a falsos táxis, a espertalhões – e pegar somente os Táxis com o indicativo bem visível “Rádio Taxi”. Os portenhos em geral são solícitos, apesar da lenda e do seu costumeiro mal humor, se abordados com educação e em espanhol. Além de ser arrogante, é de bom tom, quando se viaja para um país falar mesmo poucas frases de seu idioma, com certeza serás melhor tratado e compreendido se falares português ou inglês.
Hospedar-se de forma barata pode ser um suplicio em Buenos Aires – mesmo que a cidade possua centenas de Hostels, a grande maioria é mal-cuidado prestando serviços que podem ir do péssimo ao regular. A melhor idéia é limitar-se aos Hostel filiados a Hostel Internacional, (
http://www.hostels.org.ar/), co isso evitarás dores de cabeça, estresse e necessidade de discussões. Não confie em sites, a grande maioria não condiz com a realidade. O melhor Hostel de Buenos Aires é o Obelisco (http://www.hostelsuites.com/) , localizado na Av. Corrientes, filiado a HI, conta com dependências higiênicas e um pessoal simpático e jovial. Outro bastante simpático mas com quartos bastante apertados é o Hostel Tango Inn City (http://www.hostel-inn.com/) , que tem o encanto de estar situado em San Telmo. Já o celebre Ostinatto Buenos Aires Hostel (www.Ostinatto.com), também em San Telmo, além de não ser filiado a rede internacional, têm um café da manhã “michado”, e tem sérios problemas com ordem, barulho e principalmente higiene. Sua única vantagem são os quartos bem ventilados, por que até mesmo simpatia falta aos seus donos e pessoal da recepção. O que se ganha com ventilação perde-se com um ambiente hostil e antipático. Os banheiros são o inferno na terra. Por isso vai de novo a recomendação, se quiser economizar com tranqüilidade e limpeza, limite-se aos Hosteis da rede internacional.


Guia prateado para explorar Buenos Aires II


Outra coisa interessantíssima de Buenos Aires é perceber livros por todos os lados, as pessoas lêem nos metrôs, nos ônibus, nas ruas e cafés. Os livros são muito baratos se comparados aos objetos de luxo que se tornaram Brasil. Não é a toa que o país plasmou grandes escritores (J. L. Borges, Cortázar, Horacio Quiroga, Roberto Arlt etc) e continua a fazê-lo ainda na atualidade (Rodolfo Fogwill -
http://www.fogwill.com.ar/ , Martín Kohan entre outros). Pode-se comprar livros desde o Brasil pelo site: www.telematika.com ou ainda www.cuspide.com .
Pode-se visitar a cidade com um punhado de livros em baixo dos braços, acompanhando entre letras e ruas – uma confluência mística e poética. Esse tipo de turismo é raro, mas perfeito. Outra alternativa e prover-se antes da grande e recente quantidade de filmes argentinos para depois mergulhar nas ruas de Buenos Aires, elaborando um mix de realidade fílmica e “callerera”. Um filme ressente e interessante que dá uma boa pincelada em Buenos Aires e na História argentina é o interessante “El Hombre Robado” de Matias Piñero, recém lançado no Museo de Arte Latino Americana (
www.malba.org.ar) e ainda em cartaz. Este museu só perde em suntuosidade e excelência em acervo para o MNBA (Museo Nacional de Bellas Artes - http://www.mnba.org.ar/index.php ). Outros museus interessantes, mas pequenos são: O Museo Evita Perón (www.museoevita.org), uma experiência a parte que não pode ser descrita, o Museu Casa Carlos Gardel (http://www.museos.buenosaires.gov.ar/gardel.htm), interessantes para os amantes de música e história, e o Museu Fundacion Pan Klub-Muso Xul Solar, artista número um do país, criador de uma linguagem estética impar. Uma visita fora dos circuitos oficiais mas que não pode ser deixada de lado em hipótese nenhuma é a CGT (http://www.cgtra.org.ar) local onde o corpo de evita foi velado, enterrado e posteriormente roubado.
Para chegar à cidade de Buenos Aires várias alternativas são possíveis, – a mais rápida com certeza é a área, e a empresa aérea Aerolineas Argentinas (
http://www.aerolineas.com.ar/ ) é a mais barata para quem sai de São paulo, e oferece um ótimo serviço. Porém, sem dúvida a mais confortável e com linda vista sobre o país é a via terrestre pela empresa (http://www.crucerodelnorte.com.ar/cn/) que oferece verdadeiras camas para a viagem. Agora para os amantes das viagens de trem, e seguramente a opção mais em conta, existe a linha de trem Trenes Del Litoral (http://www.trenesdellitoral.com.ar/) mas que precisa ser pega a partir da cidade Argentina de Posadas. A viagem é deslumbrante, confortável, suas únicas desvantagens são: falta de pontualidade dos trens e a longa duração do trajeto Posadas-Buenos Aires; 36 horas, mas que mesmo assim vale a pena, a viagem é deslumbrante.


Guia prateado para explorar Buenos Aires III

Isto é o terceiro guia prateado para explorar Buenos Aires, ou uma carta de intenções para um lânguido olhar sobre o Rio da Prata. Isto, verdade, é uma carta de amor, um convite para a contemplação, um convite para mais uma aventura terna e amorosa, sob uma nova terra, sob um novo olhar. A partir de novos olhares.
Lembra-te há dez anos, uma noite nem muito fria nem muito quente, uma noite sem estrelas. Sabíamos eu e você de uma rainha, mas eu não sabia que encontrava e encontraria em ti, refúgio, alento, calor, e uma guia. Você calava todas as vozes, todos os fantasmas, e me fazia quente e completo – assim foi e assim é durante dez anos. Eu tinha sempre para quem retornar, depois de batalhas e lutas, com fantasmas e silêncios, ou com portas e janelas, e se eu sangrava, você sempre, mesmo com medo me curava. Assim era e assim continua a ser. Contigo enfrentei vários demônios: raiva, inveja, orgulho, cobiça, e contido, posso dizer sobrevivi. Estou vivo, é por que uni minhas forças contigo. Por que juntos nos enriquecemos, não de prata, ou ouro outros objetos degradantes, mas com pensamentos, gestos, silêncios, olhares, beijos e calares. Juntos misturamos nossas vidas e saberes para construirmo-nos e plasmarmo-nos todos os dias em algo novo.
E, portanto, sempre juntos, apesar das dores, feridas e chagas, enfrentamos a discórdia, a inveja e a falta – mudamos de terra, mudamos de casa, de roupa – e continuamos livres. Enfrentamos hoje poeira, poluição e muitas máquinas de guerra, que rugem, e soltam fogo de dentro de seu ventre. Se a água que bebemos, e o ar que respiramos estão envenenados – resisto – por que juntos somos fortes, e transformamos, mesmo que com alguma dificuldade, fel em mel. Isto, caro amigo, é amor. Amor em estado ativo e prático – muito além de chagas, do tempo e do espaço.
Mas por que de tanto veneno, atualmente vivemos, proponho-te uma nova “mirada” sobre a vida – quero tornar nosso amor nômade e legionário – dançar contigo uma milonga e abandonar dias de veneno, fantasmas e dor. Quero mudar-me para onde o sol reflete em prata, plasmar-me contigo uma nova identidade, uma nova vida, novas formas de amarmos, sem tanto peso, sem tanta dor. Acho que não podemos continuar a respirar veneno e beber ácido. Está na hora, caro amigo, de abandonar este barco, pois eu te digo, e pressinto, ele afundará. Mediocridade, ilusão e utilitarismo não o salvarão por muito tempo. Quero convidar-te para uma tentativa louca, uma aventura, um lânguido olhar sobre a Paris da América. E que esse olhar seja carinhoso, reflexivo, e claro, construtivo. Mudemos, pois, nossos trapos e livros, para a outra margem. Do rio.
Por que desta margem, só vejo margem, só vejo ódio. Campos de concentração e violações dos direitos humanos – e pior, uma grande e massificada apatia. Por que não quero continuar lutando na margem, sem direitos, nem lei, nem me tornar apático ou pior amargo e conformado, mudemo-nos para outra margem do rio. Eu te chamo por que com você sou mais forte, mais lindo, e mais. Com você existo. Com você nunca estarei exilado, nem longe, por que você é minha única pátria. Minha única terra. Pois então venha, construamos um novo castelo, longe dessa fumaça e dessa mata que queima, e dessa apatia que nos entristece.
Contigo estou e estarei sempre. Por isso espero-te, e esperarei sempre. Pois é, e será sempre minha “radicación”. (
http://www.mininterior.gov.ar/migraciones/radicacion.asp )



Guia para explorar Buenos Aires IV – ou para se chegar ao rio da Plata.

Aviso: Antes de ler este Guia é preciso, ou recomendável, ler Cuentos de amor, de locura y de muerte, de Horacio Quiroga.

De São Paulo à Curitiba não se pode ainda perceber bem o sul brasileiro indígena e mestiço. Em Curitiba, cidade campeã em número de homicídios per capita do Brasil, há uma fusão conflituosa de poloneses, portugueses, italianos, índios e alemães – abaixo de uma aparente ordem europeizante, e busca higienista pelo que é limpo, há todo um mundo brutal de exclusão, violência e segregação. Se São Paulo é a vanguarda do neo-liberalismo sem freios, Curitiba está na vanguarda da violência e da juventude que não vê mais futuro, e das brigas de gangue (punks x Skin Heads), homicídios etc.
Mas se rumamos para o sul, mergulhando nas províncias sulinas, o que aparece não tem nada de europeu, mas de indígena, mestiço, caboclo – algo que um dia pode ter sido chamado de “raça cósmica” (pelo mexicano José Vasconcelos), não somente em termos étnicos, mas, sobretudo em termos culturais. O alemão sul brasileiro é culturalmente profundamente caboclo, indígena.
As cidades de Santo Ângelo e São Miguel das Missões são cósmicas nesse sentido, pois são fruto da fusão forçada de uma “multitude” de povos, mesclados e misturados, a preço de muito sangue, muito ódio e luta. São profundamente sul-americanas.
São Miguel guarda um tesouro legado pelo passado, vestígios de reduções jesuíticas, provas e restos do que foi um encontro entre cultura e povos diferentes, do que foi uma violação simbólica e na cosmogonia dos povos aborígines. O exército de jesuítico foi bárbaro ao introduzir a força nestas terra a “moral dos fracos e medrosos” – e o mal em si que é o cristianismo – porém desse mal e de sua bárbara utopia totalitária, produziu-se um hibridismo cosmopolita que de certa forma enriquecem o sul do continente. Ao tentar transplantar para cá seus dogmas e a cultura européia – o que ocorreu foi um contato entre povos de culturas, compreensões e fés diferentes, criando uma multiplicidade mestiça, algo muito além do previsto pelos colonizadores. No sul brasileiro somos todos índios, poloneses, alemães, italianos, africanos – uma fusão cultural e cósmica de muitos povos, hoje quase que completamente empobrecida pela cultura da soja, dominante por todos os lados. Nessa multiplicidade híbrida, porém, não está excluída o viver e o vir a ser do embate e da luta, o jogo de forças. Talvez seja justamente esse jogo de forças que empurre parcelas da população sulista para o norte.
Aqui a história não parece “ter sido” em eixo, mas em caleidoscópio multicromático, pontilhado, esfumaçado, policêntrico e caótico. O sul brasileiro é imanência pura e sanguínea, estado de ser que permanece aberto, para um hibridismo negado e singular. Olhar hoje as ruínas de São Miguel das Missões parece ser um ato re-afirmativo do caráter mestiço do povo americano contemporâneo, naquele sentido dado por Serge gruzinski em seus livros ou Todorov, em seu belíssimo livro A Conquista da América. Mesmo que a falência da tentativa jesuítica de sua teodicéia terrena diante dos interesses políticos e econômicos de Portugal e Espanha, essas reinas parecem colocar em dúvida tanto aquele esquema histórico “escocês”, que divide o desenvolvimento humano entre “selvagens”, “bárbaros” e “civilizados”, quanto outros modelos históricos calcados em uma progressividade evolutiva positiva – positivismos, marxismos etc. Ora, o que foram estes homens guaranis que puderam de formular sob o impacto da imposição e violência simbólica mestiças obras de artes, singulares, e novas como antes nunca tinham sido vistas. Santas católicas com feições indígenas (estas obras de artes podem ser vistas aqui, mas, sobretudo em melhor estado de conservação e tratamento museológico em Buenos Aires no Museu de Arte Hispano-Americana, Suipacha, 1422), compreensões de cosmogonias e apocalipses que se sobrepunham, mitos e divinizações de homens e mulheres. Pergunto-me como compreendiam o Tempo. Se é que o compreendiam tal como os europeus de sua época o compreendiam. Se olharmos para as ruínas e todo o estatutário sacro realizado por estes homens, na região que hoje compreende Brasil, argentina e Paraguai, poderíamos acreditar, assim como Vico, Dante, e Spengler, que toda “civilização” está destinada ao declínio e ao fim. Assim como todos nós. Ou isso seria resquício de algum tipo de escatologia judaico-cristã – a crença ou certeza no “fim dos dias” ou “juízo final” – ainda muito presente na mentalidade moderna.
As ruínas de Saio Miguel dos arcanjos também desestabilizam outro modelo temporal, aquele que fundaram os franceses Condorcet e Turgot, onde a História é vista como uma escada progressiva, uma vez que o atual vilarejo de São Miguel das Missões é pálida imagem se comparado à beleza das ruínas e do estatutário sacro remanescente. Seria esta medida de valor, um julgamento estético equivocado? As ruínas não são resultado de uma acumulação de patos sobrepostos, assim como também não o é, a pequena cidade completamente dominada pela cultura da soja. No entanto, o que se pode ver e até tocar aqui são vestígios históricos reais, frutos do encontro de duas culturas completamente distintas. Estes vestígios são reais, existem, são palpáveis, e falam ao historiador atento. Não se trata aqui de algum tipo de ficção, mas de informações lastreadas em uma concretude material, mesmo que esta concretude estivesse em seu tempo calcada em uma utópica e escatológica vontade em realizar o paraíso sobre a terra. Assim estas ruínas, de feições renascentistas, reais visíveis aos olhos que vêem, “falam” da mentalidade híbrida de dois ou mais povos colocados em contato e em contradição. Sobre os critérios morais jesuíticos e indígenas elaborou-se um novo modo de ser e existir nestas terras, e deste modo contraíram-se casas, templos, fizeram-se artes, plasmaram-se idéias. Tudo isso pereceu, ou quase, sob o impacto destrutivo do Tratado de Madrid, que era calcado por outra lógica – diversa, nem pior nem melhor – apenas capaz de sobrepor-se sobre essa outra estabelecida nas Missões.
Se por um lado elas falam para um “eu” – sujeito determinado, com uma formação determinada – que ainda valoriza ideais iluministas como educação, conhecimento, liberdade etc, estas ruínas sobrepostas ao presente podem falar-nos do hoje. Aí o que se “ouve” é a voz do “pastiche” – de um “espetáculo de luzes” que se plasma em um patético misticismo new age – que beira ao messianismo dualista (bem x mal) completamentente ridículo, que mistura mito, história e ficção – para plasmar uma mística regionalista – que é infelizmente apoiado pelo IPHAN. Refletindo sobre isto se pode perguntar sobre uma suposta inevitabilidade que as coisas acontecessem para que desembocassem nestas ruínas históricas. Penso, assim como o historiador italiano Remo Bodei – que a história se dá em um estranho hibridismo de acaso e necessidade”. Ou seja a destruição e edificação das Reduções de São Miguel dos arcanjos aconteceram nesse “cruzamento” (kreuzengen) entre causas eficientes, causas finais e fatos naturais explicáveis e as motivações humanas compreensíveis.
Escrever história, neste caso seria tornar inelegível o cruzamento entre puras contingências e causas eficientes. Assim os historiadores sérios de hoje não podem mais postular ingenuamente qualquer tipo de determinismo ou “física das revoluções” como o fizeram Fichte e Marx (e mais toscamente seus seguidores).
Particularmente, penso que não cabe ao historiador unificar a diversidade histórica em apenas uma, a da Humanidade, mas ao contrário ler os vestígios históricos de uma perspectiva plural e microscópica. (Ref. Isaiah Berlin). Também não deve contribuir para mistificações nacionalistas ou regionalistas, que apenas contribuem para a destruição, e a aniquilação do algo há de belo nos seres humanos. Vale lembrar ainda as palavras de Marc Bloch: “historiador não é policial nem juiz”.

PS: Próximo capítulo: Rumo à Província de Missiones argentinas.


Guia prateado V – para chegar à Buenos Aires

Mais uma vez recomenda-se ler expressamente: Cuentos de amor, de locura y de muerte, de Horacio Quiroga.

Vindo de missões no Brasil, adentrou a Argentina por sua província mais insular e espremida entre Brasil e Paraguai. Aquele rincão de mundo onde se aceitavam pesos, reais e guaranis – era um mar de plantação de erva mate. A província de Misssiones não parecia nada com o que pensava sobre a Argentina, mestiçagem escancarada, barro, e umidade espalhadas por todos os lados. Lama cor de fogo. Chegou cansado na rodoviária, desorientado com uma viagem de seis horas e uma espera pelo ônibus na estrada. Tentou conseguir alguma informação no posto de turismo, queria saber algo sobre a cidade, em vão: portas fechadas. Queria saber sobre o trem del litoral que o levaria até a capital federal. Subiu uma escadinha, em uma sala enorme, vazia, havia, uma mesa à direita, e uma janela à esquerda, um funcionário fumando melancólico sobre a janela. Com seu parco espanhol perguntou-lhe sobre a cidade, a resposta, não há nada para fazer aqui, vá para Buenos Aires, e apontou para a empresa de ônibus Crucero Del Norte. Perguntou-lhe sobre o trem, no site dizia que saia às sete, disse que saiu ás duas, que não era muito pontual. A carga era mais importante que os passageiros. Agradeceu.
Desceu a escadinha, olhou para todos os lados, vasculhando na rodoviária algum lugar de refúgio: nada – somente um cassino, algumas putas perambulando, pessoas falando guarani, um sex-shop, nada de farmácia para sua dor de cabeça que não cessava. Uma pizzaria meio suja. Muitos cachorros vadios perambulando, e lojas de informática. Foi até o guichê, comprou uma passagem para a Capital Federal – leito ou semi-leito, perguntou-lhe o atendente? Leito, respondeu-lhe seu cansaço. Vinte pesos a mais. Assento número um. No segundo andar, de frente para a estrada e a imensidão do mar de erva mate e chá.
Esperou na pizzaria, tomou um café, leu alguma coisa sobre Deleuze e a educação, olhou em volta, o casal ao lado falava Guarani. Seriam da cidade ao lado Encarnación? Pediu duas medias-lunas. E depois, de duas ou três horas, finalmente pegou o ônibus. Deitou-se. Mergulhou sem medo naquele mar de erva mate. E dormiu, até Retiro.



Buenos Aires VI – Um Guia Prateado para o Exílio

Papara se compreender um pouco o que é um exílio pode-se ler Reflexões sobre o Exílio de Edward Said, Nestes ensaios, onde este brilhante intelectual britânico-palestino misturou experiências pessoais e reflexão teórica para abordar autores como Conrad, Nietzsche, Vico, Lukács e Foucault, além de temas essenciais ligados à política, antropologia, música e ao papel social dos intelectuais em mundo em que o exílio é situação recorrente. A guerra, o imperialismo e a ambição de governantes totalitários fizeram do século XX a era da imigração em massa e de uma condição de deslocamento psicológico ligado ao exílio. Outra leitura, fundamental, desta vez com uma mirada em direção ao Futuro é Multidão – Guerra e democracia na Era do Império, de Antonio Negri e Michael Hardt, obra profunda, que reflete sobre as recentes mudanças no estado político mundial, e em alguma medida sobre as ondas migratórias. Livro longo, porém otimista, algo raro, no oceano de desilusão e pessimismo que parece penetrar os poros de todos que pensam. Outra obra mais focada, talvez seja Nomadismo – sobre o nomadismo e vagabundagens pós-modernas. Para seu autor Michel Maffesoli, o nomadismo mostra que a fragmentação das sociedades contemporâneas corresponde a uma retomada da autonomia do indivíduo. Vale também lembrar Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, para quem somos todos, latino-americanos, desterrados numa terra hostil.
Se sairmos do mundo das letras, para se compreender com intuição, impressão, empatia outras obras – desta vez artísticas – e contemporâneas podem ser usufruídas – para se compreender a experiência do exílio. Um filme é fundamental antes “Felizes Juntos”, ou Happy Togheter, de Wang Kar Wai, que mergulha de forma absolutamente bela na experiência de exílio que é a própria cidade de Buenos Aires. O filme é um retrato a experiência do exílio e da falta de comunicação na figura de dois jovens orientais perdidos em uma Buenos Aires repleta de tango, amor, drama e escuridão. Perdidos também em uma relação amorosa cheia de dor e conflito.
Outra forma interessante é ouvir sem preconceito, as varias formas de tango eletrônico que surgiram nos últimos anos, sendo os mais conhecidos Gotan Project, mas também Tanghetto, Bajafondo, e o ótimo Supervielle e até um CD surpreendente de clássicos de Gardel remixados. O Tango mesmo não é propriamente um tipo de música, mas a forma que se dança o que se convencionou chamar de milonga – música-exílio, cantada geralmente acompanhada do bandanoeón, fruto direto da confluência de emigrantes nos portos do Rio da Prata (Montevideo e Buenos Aires), em uma mistura de influências espanholas, italianas, e africana. Esta última, vinda do candombé, estilo de música afro-uruguaia que se ouvia e dançava na periferia das duas cidades no século XIX. Os mais conhecidos interpretes ou compositores de milonga/tango são certamente Carlos Gardel, imigrante francês de nascimento e Astor Piazzola. Porém, outras lindas interpretações menos conhecidas são as de: Aníbal Troilo (conhecido como Pichuco), Osvaldo Pugliese, Hugo del Carril Alberto Moran, Roberto Polaco Goyeneche, Roberto Firpo, Isabel De Grana, entre muitos outros. A tradição de se cantar o sentimento de exílio continua ainda nos dias de hoje, na Voz de Adriana Varela ou ressurgindo com grupos de jovens como é Martín Fierro e La Furca – Orquestra Típica
www.lafurca.com .
Porém, para se compreender de maneira fundamental e plural a experiência do exílio há de se conhecer bem, ou mesmo morar em Buenos Aires. A cidade é como uma boneca russa dos exílios – exílios dentro de exílios – bairros dentro de bairros. Assim para penetrar neste mistério, que é estar exilado, é preciso deixar-se “flaneur” sem rumo pela cidade, sem seguir mapas ou guias turísticos. Um bairro fundamental nesta experiência é San Telmo. As linhas de “coletivo” 17 e 29 são formas de percorrer um caminho-exilar-mover-estar. Pois, que em um mundo onde as fronteiras econômicas, levantam-se muros para que homens não se mudem, não se exilem, não se percam – aproveite enquanto é tempo. Exile-se. O nomadismo tornou-se uma forma de resistência.

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