segunda-feira, 3 de março de 2008

A Utopia





Por Augusto Patrini Menna Barreto Gomes


MORUS, Thomas. A Utopia. São Paulo: Martin Claret, 2000.

O quadro descrito por Thomas Morus de seu “lugar nenhum” nos remete a algumas questões interessantes. Parece que a Ilha de Utopia seria um modelo ideal do que seria uma boa organização social e política, de acordo com a razão e os valores humanistas (cristãos). A crítica à condição da Inglaterra em sua época parece ser feito, sobretudo no diálogo do primeiro livro, porém se realiza quando se faz o contraste com a perfeição da Utopia. O contraste é tão grande que podemos nos perguntar se sua mensagem não seria “é inútil procurar tal perfeição” na terra. Apesar de criticar em muitos ponto características da sociedade Inglesa - individualismo do príncipe, a forma de governo,, a guerra e a corrupção de parte do clero – retomando muitas das críticas de Erasmo, ele parece, no entanto, bastante cético quanto à sua realização.

Um dos pontos mais interessantes é a descrição da ilha de Utopia parece unir elementos do novo mundo, do mundo clássico e antigo oriental. O autor deixa claro que Utopia foi influenciada por romanos, egípcios que haviam naufragado na ilha, e há também uma certa assimilação de elementos gregos. Alguns elementos persas aparecem no que diz respeito à religião dos Utopianos. Os elementos do novo mundo parecem estar contidos na idéia de colonização de um novo espaço geográfico, presente na idéia da colonização da ilha Abraxas pelo exercito de Utopos. É possível aqui uma analogia com a descoberta da América? Possivelmente sim. Podemos mesmo nos perguntar se algumas tentativas evangelizadoras empreendidas por religiosos influenciados por Las Casas[1] não foram influenciadas pelo modelo de More. Segundo alguns historiadores, entre eles Marcel Bataillon et Sivio Zavala é possível encontrar os traços desta influência em tentativas como a de Michoacan Vasco Quiroga que entre 1530 e 1565 estabeleceu na Nova-Espanha “pueblos-hospitales”, replica do modelo das cidades-hospitais[2] do livro de More. (Mattelart, p. 21).

Porém também se pode remeter (ou relacionar) à “descoberta” e colonização do novo mundo (América) quando Morus aborda a idéia de “Guerra Justa”[3] e quando aborda a questão da colonização do países vizinhos pelos utopianos. A guerra justa para os habitantes de Utopia se daria para defender a pátria e a terra de seus aliados, libertar um povo do julgo da tirania, levar a razão à um outro povo. Este último ponto é bastante esclarecedor como More compreende, apesar de sua crítica à guerra, o direito que um povo tem de fazer a guerra ou colonizar um outro em nome da razão, justiça e lei natural: “No caso de, numa cidade, a população exceder o número limite, os habitantes em excesso são enviados para cidades cuja população é demasiada restrita. No entanto, se a população de toda ilha for excessiva, são escolhidos, em cada cidade, alguns cidadãos, que irão construir uma urbe, com lei própria, no paíss vizinho, onde os habitantes possuem grandes extensões desabitadas e incultas, recebendo do próprio país indígena que a eles se quiram juntar e com eles viver. Esta comunidade de vida origina um estilo de vida comum que contribui para o progresso de ambos os povos. De tal maneira se organizam, auxiliados pelas leis de Utopia, que a terra, até aí estéril e desaproveitada, é agora suficiente para ambos os povos. Mas, se os habitantes desta região não quiserem viver com eles, sob suas leis, expulsam-nos para fora dos limites determinados e destinados aos utopianos. E, se encontrarem resistência, recorrem à guerra, considerando como justa causa de guerra o fato de um povo possuir uma extensão de terra vazia e sem qualquer utilidade, impedindo os outros de dela se utilizarem e aproveitarem, pois, de acordo com a lei da natureza, todo homem tem direito a alimentar-se e a tirar da terra o seu sustento.” (More, p.64 e 65) Neste trecho pode-se observar com bastante clareza a mentalidade dos europeus contemporâneos de More, que acreditam contribuir com a invasão da América. Tratava-se então, em sua mentalidade, de ajudar os povos “sem razão” ou “sem religião” à reencontrar o bom caminho. Por isso, o intenso debate que se estabeleceu quando da colonização da América do trato dos europeus, sobretudo espanhóis para com os índios.[4]

Finalmente, também é prova desta mentalidade “renascentista”, humanista-cristã, hierarquizada o fato que, ao destacar a liberdade religiosa existente na Ilha de Utopia, o narrador acredita que logo o cristianismo será o “destino natural” dos Utopianos[5] : “Quando no entanto, nos ouviram falar do nome de Cristo , da sua doutrina, leis e milagres, e da maravilhosa constância de tantos mártires, cujo generoso sangue conquistou para a doutrina tantas nações da terra, ficaríeis espantado com a alegria com que receberam esta revelação; ou por inspiração secreta de deus ou por que o cristianismo lhes parece semelhante à religião que entre eles é a mais importante.”(More, p.107)



Bibliografia auxiliar:

Mattelart, Armand. Histoire de l’utopie planétaire: de la cite prophétique à la société globale. Paris: éditions la découverte, 1999.

Theodoro, Janice. América Barroca. São Paulo: Editora Nova Fronteira/Edusp, 1992
[1]Las Casas tenta estabelecer em 1520 comunidades de índios e camponeses espanhóis na costa da atual Venezuela, tentativa essa de realizar uma comunidade ideal e salvaguardas os índios da escravidão que poderia estar ligas a idéia utopista de More. (Mattelar, p. 21)
[2] “Dentro do perímetro da cidade, um pouco fora das muralhas, existem quatro grandes hospitais, amplos e espaçosos, que se assemelham a quatro pequenas cidades. A sua amplidão tem como fim impedir que os doentes, por mais numerosos que sejam, não estejam demasiado amontoados [...] Os hospitais estão tão ber organizados e providos de tudo o que é necessário para o restabelecimento dos doentes, os cuidados assíduos dos médicos mais hábeis são tão carinhosos, que, não sendo ninguém obrigado a utilizá-los contra sua vontade, não há ninguém, no entanto, que, em caso de doença, não prefira tratar-se no hospital a fazê-lo em sua própria casa.” (More, p.66)
[3] Idéia esta que remonta de...?
[4] “Inicialmente, a temática dos descobrimentos nos remetem a duas ordens de significações. A primeira responde ao imaginário europeu do século XV, para o qual a América, habitada por povos bárbaros, deveria transformar-se em um "Novo Mundo". Nela, os descobridores e colonizadores deveriam implantar todos os padrões básicos da cultura européia, soterrando a barbárie. As cidades construídas, segundo as determinações dos europeus, representariam a implantação dos padrões básicos da cultura européia. Seriam a expressão primeira de um Novo Mundo criado à imagem e semelhança do velho. Assim, a América refeita, segundo os moldes europeus, tornar-se-ia parte substancial na montagem de uma economia mundial, centralizada em Portugal e na Espanha. A segunda permite comemorar os descobrimentos, retomando alguns fragmentos das culturas pré-colombianas. Estes fragmentos favorecem a produção de utopias centradas em nosso passado indígena. Utopias de sociedades sem classe, de comunidades, onde os latino-americanos poderiam escapar da trágica condição colonial. Comemorar, nesse sentido, significa trazer à memória as tradições indígenas ainda que de formas fragmentárias. Essas vivências (e não sobrevivências), tipicamente latino-americanas, constituíram desafios para o mundo do "sempre-igual" criado pela cultura européia” (Theodoro, J.
São Paulo, Editora Nova Fronteira/Edusp, 1992)
[5] Apesar disso More critica a imposição da religião cristã: “Uma das leis mais antigas ordena que ninguém seja censurado pela religião que professa” (More, p.102)

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