segunda-feira, 10 de março de 2008

Camomila







por Guilhermo Bazárov de Mont Serrat






Calou-se, no espaço branco entre as pernas do outro. Cansou-se, levantou e respirou fundo, como quem emerge do fundo de um rio. Achou graça naquilo tudo. Como podia, ser eles dois dentro do quarto. Eram amigos e simples. Podiam. Mas havia mais que isso entre as suas vidas. Seus corpos agora eram nítidos espelhos conhecidos, sem segredos e tão lindos. Um cheiro de camomila no campo.
Olhou-o. Com as pálpebras semicerradas era lindo, como menino na praça em dia de sol tomando sorvete de morango. Aquela felicidade corajosa e serena dos meninos da roça. Já conheciam agora, por fim, seus sexos tesos e suas lágrimas brancas e seus corpos enferrujados de sol, e que. Esperavam. A coragem dos encaracolados que era de ambos.
Vodca e Mao Tsé Tung tinham feito aquilo? Sabia que não, não era vodca nem qualquer momento maoísta dos seus botecos e esquinas, eram suas carnes todas, chamando-se tesas e quentes. Ali ao lado seu. A luz do inverno penetrando a janela, por entre as cortinas de azuis-escuros e desbotados, parecia aquela do hospício que lhe trazia ainda o medo, e lhe trazia de volta o escuro vivo e ríspido – tinha tempo: esqueceu. Não lembrarei mais, pensou – agora eram só os dois ali, ao seu lado o outro. Longo e marrom o corpo e alma daquele que tinha e era mais do que suas noites de expiação – por que esqueceria, para sempre, o filho da puta daquele que um dia o meteu no hospício. Amou demais o menino da escola. Os beijos dos dois adolescentes entre os pinheiros foram desenganados pela fúria daquele deserto que um dia chamara de pai, enchendo-lhe a cabeça de drogas e choques. Não queria mais saber se amar aquele garoto era errado, em seu tempo tinha que fazer o que sua alma pedia e tinha feito: vivido. Mesmo se depois lhe fosse o resto da adolescência de choques e drogas fundindo-lhe a cuca.
Mas agora. Abraçou-o, sentindo o cheiro do amigo que se tornara agora seu mantimento, muito longe dos choques e dos tetos assustadores do hospital imundo. Dormia, depois do gozo, puro e lento - sua boca ainda sentia o gosto. O quarto todo transpirava aquela penumbra estranha e roxa – de poeira e odor. O silêncio ali dentro, era alheio para a cidade tão grande: onde estavam os carros e os ônibus, lá fora, o mundo tinha todo parado. Dormiria agora, para não lembrar do inferno dentro daqueles corredores imundos e pretos, no fundo da sua história sórdida – o tempo tinha passado e tudo agora era diferente.
Naquela cidade anônima e longa, todos, pelas ruas, podiam se amar em paz, longe do interior rubro cheio fogo – correu e livrou-se daquilo – pois nunca sairia – o coronel nunca o tiraria dali, por que ele era um “viado” sujo, um maricas, uma vergonha para a dinastia cristã e déspota-latifundiária daquela família cheia de mãos sujas de sangue. Mudara de nome, de vida e de tudo, inventara um passado e uma história para si, não era mais aquele. Aquele morrera gemendo amarrado no escuro frio e vivo da casa de loucos. Junto daquele, Cristo apodreceu de pênis em riste e Maria virou uma puta na rua da esquina. Deus estava finalmente morto e ele estava livre. E com seu corpo podre e santo, fez uma nova vida.
Como era bom, tocar. A pele morena daquele amigo ali, e podia quase esquecer que não era quem se fazia. Aquele moço seu amigo, ajudara-o mais e mais, tirava com ele o pó dos livros e liam juntos os contos de Clarice. Começaram amigos no boteco da esquina, copo de cerveja na mão e um cigarro na do outro – alguém do outro lado da cidade se masturbava sozinho – e um papo sobre Mao e a revolução chinesa. Depois vieram os copos de vodca bebidos em seus apartamentos cheios de fantasmas e pó – era sempre algum poema de Baudelaire e muita Billy Holiday na vitrola antiga. Tinham os dois, apenas 20 e tantos anos – esqueciam da vida, podiam perder, mas não fazia mal. Pois tinham sido eles, os dois juntos, o que queriam.

Sua “oportunidade” foi sua tia, que ovelha negra renegada e sempre a “louca”, ela ajudou matar a sua fome e o seu passado. Quando chegou era ela, que de longe, ajudou, com o pouco que tinha, para ele não morrer de fome e a continuar sobrevivendo – ele fez alguns programas quando apertou, fodendo alguns velhos lamacentos e cinzas como seu pai, aquele covarde. E depois e depois e depois. O que podia fazer, esqueceu. Mergulhou no seu outro eu, por dentre os escombros e a carne podre de Deus, surgiu então, trabalhando nas paradas da vida - fazendo o que podia. Cresceu.
Agora, naquele bar, naquele dia, onde o sol se punha cinza, encontrou mais do que podia crer – de cerveja na mão foi encontrando aquele amor amigo que depois seria mais que amigo – seria fundo, triste e maravilhosamente medonho, para fazer esquecer tudo, para construir enfim em um momento de gloria seu outro eu – infinito amortecido. Viveria, sim viveria. Reviveria. Mesmo que tudo aquilo viesse da dor que sentia.
O outro abriu os olhos, trazendo-o salvador de volta para vida. Beijou-lhe a boca de leve e esticou os músculos, abraçando-lhe o corpo. Era de novo aquele cheiro, de camomila no campo e de pinheiro verde misturando o que era e o que tinha sido. Acariciou-lhe a nuca. Dormiu.

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