segunda-feira, 3 de março de 2008

A vida não está no andar de cima







" A vida não está no andar de cima: a vida está aqui, agora,no momento
em que dizemos sim, no momento em que abrimos mão do controle.
A vida são quatrocentos e quarenta cavalos num motor de dois cilindros..."
(Henry Miller traduzido por Sergio Flaksman,
em Sexus, primeiro volume de A Crucificação rosada.)

"Iniciei mil vezes o diálogo. Não há jeito. Tenho me fatigado tanto todos os dias vestindo,
despindo e arrastando amor, infância, sóis e sombras." (Hilda Hilst)


"Não importa o que se ama. Importa a matéria desse amor.
As Sucessivas camadas de vida que se atiram para dentro desse amor.
As palavras são só um princípio - nem sequer o princípio.
Porque o amor os princípios, os meios, os fins são apenas fragmentos
de uma história que continua para lá dela,
antes e depois do sangue breve de uma vida.
Tudo serve a essa obsessão de verdade a que chamamos amor.
O sujo, a luz, o áspero, o macio, a falha, a persistência."
Inês Pedrosa - Livro: "Fazes-me Falta"
Por Guilhermo Mont Serrat


Também tenho sofrido tanto, chorado daquele tipo de lágrima seca, por causa daquele tipo de dor que não tem nem nome. No entanto, sei que estou pronto; pronto para não ter mais esperança, pronto para não ter mais saudade, e nem desejar um ideal. Decidi abraçar o amor e a vida, hoje e agora. Como já dizia há várias rosas. Albert Camus: “L'espoir, au contraire de ce qu'on croit, équivaut à la résignation. Et vivre, c'est pas se résigner.”
Mas tudo bem, certo, já estou cansado de arrastar uma certa impossibilidade, uma frustrante limitação ao infinito e ao amor que nos cabe. Sei que tudo que quero é o infinito de um sentimento devastador, das bocas entreabertas, dos abismos medonhos e loucos, mas. Porém. É sempre a mesma coisa, quando nos olhamos no espelho e vemos além. Há dias que tenho essa impressão, que me vistes no espelho e disseste tudo aquilo, sobre meus olhos cinzas de gato, sobre o poema de Hilda - há cristais coloridos/ nos teus olhos/ vida viva nos teus dedos.”- e o livro que eu lia (era Niétotchka Niezvânova, não?). Bom, depois você me ofereceu aquele mate, aquele líquido verde e quente que escorria para dentro de mim como um pressentimento, um antegozo amargo do que teríamos, do que seriamos. Você, com teus olhos puxados castanhos-medonhos e eu com seus ecos cinzas e úmidos. Agora aqui pensando, faz-me falta tuas mãos, teus dedos, teu toque. Por que por eles acreditava que tudo seria bom e o bastante, e que a partir daquele gramado verde – um oásis no meio da fumaça cinza – estaríamos a salvo e teríamos tudo aquilo que pensávamos.
Quantas gerações já se perderam desde então. Quantos homens como nós tornaram-se cinzas e tristes, abandonaram suas vidas e tornaram-se cadáveres sem sepulcro.
Mas por que sei disso tudo, sabe das traições e da natureza humana, que tenho que te matar. Pois que mataste em mim a luz que brilha além do que é... São tantas as dores e infernos deste mundo, que hei de evitar que mais um perfídio ser viva. Calma, será devagar, encontrar-te-ei por que ainda lembro do cheiro de tuas pernas, do calor delas em minha cabeça. Não serei cruel, mas o farei por questões metafísicas e justas. Com uma longa e poderosa haxa, picarei-te todo, em pequenos pedacinhos, e livrarei mais uma vez o mundo de um monstro. Não sobraras nada de ti, de teus cabelos ruivos, mas te tratarei com carinho, será devidamente embalado em sacos pretos de devidamente esquecido no fogo de uma fornalha útil e prestativa. Por que estamos condenados a ser livres, eu estou condenado a vingar-me e você a morrer, por que não fostes humano, nem justo, nem fiel. Fostes cruel, traidor e sem ética. Esperarei, em vida ou na morte, o tempo que for necessário, até encontrar-te e fazer-te em pequenos pedaços, como fizestes com meu coração e com minha vontade de viver. A vingança é um prato que se come frio, sim, mas é um preto envenenado que me mata aos poucos, turva-me as vista e me ferve o sangue.
Aos que realmente um dia me amaram, perdoem-me, mas a Dinamarca é uma prisão para mim e já que não posso mais viver, tenho que matar. Matar-te, matar-me, e fugir para onde o amor mundi levar o vento que me assombra. O que fizestes não tem nome, nem posso escolher palavras para tua traição e monstruosidade, mas estou consciente que és humano como eu, e que o mal que lhe causo hoje nem é mais pessoal: é apenas administrativo e burocrático. Tenho que me vingar, como Hamlet, por que o fantasma de meu pai não se cala. E estou pronto para sacrificar-me burocraticamente à justiça e ao destino. Aceite, pois, o destino que lhe será servido. Em pequenos pedaços de carne crua, que depois serão devidamente assados, triturados até se transformarem em pó – então: estará feito, ninguém mais, lembrar-se-á de ti, pois que se em vida podia ser insignificante como um verme, morto não será mais que pó, cinza e protocolar.

Nenhum comentário: