segunda-feira, 3 de março de 2008

Blade Runner e nossa Esquizofrenia







Por Augusto Patrini Menna Barreto Gomes





O filme Blade Runner de Ridley Scott é um clássico dos anos 80, cultuado ainda hoje por milhares de fãs. É um filme ao que mesmo contendo elementos como ação, violência, amor e suspense – e muitos pastiches, conta com elementos críticos não-desprezíveis que podem levar o público a fazer uma reflexão sobre a lógica técnica-repressiva do mundo contemporâneo. Mais do que atual, a ficção cientifica filmada por Scott, e baseada na obra Do Androids Dream of Eletric Shepp do romancista americano Philip K. Dick[1], se tornou ainda mais atual após a queda do Muro de Berlim, dos atentados de 11 de setembro, do recente renascimento imperialista, e, sobretudo com o provável e eminente colapso ecológico do planeta.
A ação do filme se passa na caótica Los Angeles, no ano de 2019, onde um ex-policial (o Blade Runner) é obrigado a caçar um grupo de “replicantes” (andróides biológicos criados pela tecnologia genética e tão humanos que são capazes de pensar, intuir e se emocionar – porém condenados pelo sistema a uma vida fugaz de escravidão e labuta) rebelados. A caçada acontece em um planeta, onde as cidades multi-étnicas, assim como seus habitantes enfrentam poluição, chuva ácida, violência, contrabando, superpopulação, solidão, burocracia, neocolonialismo, individualismo, degradação urbana e desintegração social - mas, principalmente um sistema econômico e social dominado pela razão técnica e pelo medo – e que leva o homem inexoravelmente para a destruição física e emocional. Estes elementos do enredo de Blade Runner não nos são no atual mundo tão estranhos. Em cidades como São Paulo, o mundo de “Blade Runner” transborda a ficção para tornar-se aos poucos a única realidade possível. A condenação dos replicantes, parece também a nossa condenação - indivíduos mantidos por meio da labuta em uma condição letárgica que nos empobrece culturalmente e fisicamente. O produto de nosso trabalho também escapa de nosso controle e compreensão, e a divisão social do trabalho faz, como em Blade Runner, das forças produtivas da ciência e da tecnologia forças destruidoras.
Lembremos que Antonio NEGRI e Michael HARDT, já afirmaram em seu livro Império (2001), que o poder é também hoje em dia exercido “mediante a máquinas que organizam diretamente o pensamento (em sistemas de comunicação, redes de informação, etc...) e os corpos (em sistemas de bem-estar, atividades monitoradas, academias, etc.) no objetivo de um estado de alienação, independente do sentido da vida e do desejo de criatividade”. (NEGRI e HARDT, 2001, p.42). Também Hebert Marcuse, afirmou na década de 60 em a Ideologia da Sociedade Industrial (1968), que a individualidade humana passou na modernidade industrial e capitalista a ser apenas uma representação específica de tipos pré-concebidos e estereotipados de seres humanos que, assim como na produção industrial, em que a variedade tende a se resumir à produção de embalagens, cores e sabores. As liberdades, gratificações e as relações do indivíduo com o próprio corpo passaram a existir vinculadas aos requisitos pré-determinados de dominação e se convertem em instrumentos de dominação.
Além destas questões, em vários momentos do filme, Ridley Scott coloca na boca dos replicantes rebelados (homem) em luta com o policial Blade Runner (sistema) questões essenciais para nós, como por exemplo: “O criador pode consertar a criação?” Ou ainda: “Que experiência é viver com medo. Isso é ser escravo.” Ou “ É doloroso viver com medo.” São questões que também dizem respeito ao homem contemporâneo que vivem onde uma sociedade acostumada a administrar na política o espaço do medo.
Trata-se então, em Blade Runner, de nossa esquizofrenia psico-social e da perda de nosso livre arbítrio, por que talvez Blade Runner represente estes mecanismos alienantes e repressivos assimilados de tal forma que se tornou parte de nós - nosso “Blade Runner”. Mas também os replicantes rebeldes somos nós, em luta contra o poder opressivo de nosso “Blade Runner” interno e contra o sistema de absolutismo monetário, utilitarista e tecnocrático, meios de destruição e do medo planejados, buscando um significado maior, nossa liberdade e, sobretudo mais Tempo e mais Vida - em um cotidiano fragmentado, tecnicamente opressivo e muito fugaz.



[1] Este escritor de ficção científica tornar-se-ia um visionário, na medida que se pensarmos que toda projeção do tempo futuro fala mais do tempo presente e do que somos, do que poderá ser. Um livro talvez fundamental para discutirmos estas questões é o livro do historiador francês Serge Gruzinski Guerra das Imagens: de Cristóvão Colombo a Blade Runner, São Paulo: Cia das Letras, 2006. Além do já citado Império de Negri e Hardt, há também o intrigante livro Multidão dos mesmos autores.

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