Por que Lula é de esquerda
Por: Gilson Caroni Filho*
Precisamos, nós da esquerda, aprender de uma vez por todas que a história não está do lado de ninguém e muito menos há tribunal com leis objetivas. O resultado da luta política depende da capacidade que teremos para mobilizar, mas não é nem um pouco secundário analisar corretamente o que está ocorrendo.
Fossem outros os tempos e esse lembrete talvez fosse totalmente desnecessário. A distorção vista nas primeiras páginas dos jornais de hoje, 1º de julho de 2008, sobre os dados da pesquisa CNI/IBOPE, é a repetição de um exaustivo exercício da imprensa brasileira. A avaliação do governo por área de atuação cai como luva para manchetes como a do Jornal do Commercio, de Pernambuco: “Inflação assusta 65% dos brasileiros". O padrão de ocultamento é acintoso.
Recriando a realidade do seu jeito e de acordo com seus interesses político-partidários, o jornalismo reafirma, de forma inequívoca, sua instrumentalidade na luta das classes dominantes. Mostra que, tal como os partidos conservadores, os jornais procuram conduzir a sociedade de acordo com seus interesses históricos. E, nesse marco, operam toda sorte de deslocamentos semânticos possíveis. Ficar atentos a critérios interpretativos da grande imprensa, ao invés de endossá-los prontamente, é o mínimo que se pede a quem se supõe dotado de consciência crítica.
Um dos exemplos mais emblemáticos de descontextualização instrumental foi uma polêmica declaração de Lula, em 2006. Em uma entrevista, concedida no primeiro dia de campanha eleitoral, o presidente afirmou: ”eu nunca fui esquerdista. Quando alguns companheiros meus americanos, europeus, me chamavam de esquerdista, aqui no Brasil eu era chamado de agente da CIA pelo Partido Comunista Brasileiro e de a muleta da ditadura pelos trotskistas”.
Foi o bastante para que, sem qualquer mediação analítica, os detratores tanto à esquerda como à direita decretassem que aquelas palavras confirmavam o que já se sabia. Lula e o Partido dos Trabalhadores converteram-se após as eleições de 2002, respectivamente, numa liderança demagógica e em um partido conservador. Ações e retórica não deixavam dúvida: o país foi vítima de um escandaloso estelionato eleitoral.
Deixando-se levar pelo senso comum midiático, notórios acadêmicos e militantes conhecidos viram nas palavras do presidente o sinal de que antigas bandeiras tinham sido, definitivamente, jogadas ao chão. Uma necessidade de "requalificar a base" na ânsia de se livrar do próprio passado para ingressar no campo conservador estava em andamento.
Aos refinados críticos de esquerda faltou o essencial, a busca do nexo dialético que embasa o discurso de lideranças políticas. Sem isso, por deficiência ou má-fé, embica-se na direção da crítica política miúda, do dia-a-dia, desprovida de qualquer alcance histórico efetivo. Um convite às páginas amarelas da revista Veja.
Seria de bom tom, antes de acionar as metralhadoras giratórias contra Lula, ver o que ele concebia como “esquerdismo", ainda mais que havia menção explícita a duas correntes políticas: o antigo Partidão e organizações trotskistas.
Se aceitarmos que a justificativa histórica do socialismo está balizada pela democracia, cumpre indagar, como fez Hebert de Souza, em artigo publicado nos anos no JB, nos anos 1990 quando “a esquerda fez uma crítica global da realidade brasileira sob o prisma da democracia?" A capacidade de compreensão do desenvolvimento do capitalismo periférico foi acompanhada de uma história política que tivesse na ampliação do regime democrático sua questão central? Ou, por atuar em formação social adversa, a esquerda não assimilou um caldo de cultura tão autoritário quanto o da direita que combatia?
Antes de fazer coro com quadros conservadores que reverberam os interesses da elite em conhecidas colunas, seria o caso de investigar se tivemos uma tradição, no campo da esquerda, de contemplar a democracia como valor permanente ou se a enxergamos como “momento tático" que precede à tomada do Palácio de Inverno?
Talvez seja o caso de recorrermos ao pensamento de Togliatti que sempre chamou a atenção para o perigo de compreendermos democracia progressiva " como mera tática manipuladora, a ser abandonada no momento em que fossem criadas as condições para o "grande dia" .
Quem viveu sob o tacão do centralismo burocrático ou teve contato com organizações que, até hoje, acreditam que é possível uma transformação política levada a cabo por uma minoria, sem o apoio das grandes massas, há de entender o sentido preciso do “esquerdismo” a que aludia o presidente. Pois, se a democracia é atacada por uma elite que odeia o povo concreto, sua situação não é menos frágil quando a ação é comandada por uma esquerda que ama um povo idealizado, que só existe em velhos manuais.. Em ambos os casos, as possibilidades de superação são nulas.
Ao contrário do que afirmam seus críticos, Lula mantém profunda coerência com seu discurso da época em que era liderança sindical. Em depoimento concedido, em 1984, à revista Retrato do Brasil (Editora Brasil), o então metalúrgico afirmava textualmente:
"Embora eu ache que o socialismo seja a saída para os problemas do país, e não só do país, mas de todo o mundo, há uma questão que impede que eu me aprofunde mais nessa discussão: hoje há problemas mais prementes para serem resolvidos, hoje seria necessária uma política de amplo emprego, uma política salarial, uma reforma agrária ou assentamento das pessoas na terra para ter acesso ao trabalho, uma política de habitação, uma política educacional e muitas outras coisas que são necessárias para o povo continuar brigando. Com fome é muito mais difícil(...) Mas fazer esse povo discutir o socialismo é muito difícil ainda, porque o que acontece normalmente é que quem tem as idéias prontas na cabeça tenta enfiá-las pelas goelas dos trabalhadores, quando o necessário seria fazer com que as pessoas descobrissem a necessidade de ter essa reflexão sobre o novo projeto de sociedade".
Passados 24 anos, em que momento Lula contradisse o discurso? Onde está o estelionato? Quem capitulou de fato? Atualizar reflexões não significa renúncia a princípios. Longe disso, é fundamental para incrementar a ação dentro do tempo histórico em que se pretende intervir.
As modificações moleculares da sociedade brasileira passam por mais gastos com saúde, educação e renda vitalícia. Como destaca Immanuel Wallerstein (O Declínio do Poder Americano, p.260), "isso não é apenas popular; tem utilidade na vida das pessoas. E aumenta a pressão sobre as possibilidades de acumulação contínua de capital. Estas exigências deveriam ser promovidas vigorosamente, conceitualmente em todos os lugares. Nunca são demais"
Será que não é perceptível que é contra isso que a grande imprensa luta? A afirmação de que a inflação decorre dos gastos públicos do governo não representa apenas um discurso de mercado. É um discurso anti-povo, contra a democracia. Uma sabotagem repetida diariamente em revistas, jornais e emissoras de televisão.
Precisamos, nós da esquerda, aprender de uma vez por todas que a história não está do lado de ninguém e muito menos há tribunal com leis objetivas. O resultado da luta política depende da capacidade que teremos para mobilizar, mas não é nem um pouco secundário analisar corretamente o que está ocorrendo. O que se busca é a hegemonia. Em jornais, televisões e revistas. Em cada manchete, em cada subtítulo.
(*) Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Observatório da Imprensa.
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